Alzheimer/Velhice

terça-feira, 16 de junho de 2015

Bruxa

Na minha terra natal, lá no interior do Rio Grande, bruxa nunca foi coisa ruim. Pelo menos, não que eu soubesse. Ser bruxa, contava minha avó Tila, significava ser dona das ervas, senhora do tempo e dos sortilégios. Quando algum guri parava de saltitar pelos campos e quietava amuado no quarto, as mães saiam em busca das velhas bruxas, benzedeiras, que sempre tinham um remédio para sacudir os guriatãs. Elas preparavam as garrafadas, diziam palavras mágicas e vaticinavam: duas vezes ao dia e logo ele já estará correndo atrás das ovelhas outra vez.

E se as crianças apresentassem alguma febre ou qualquer outro mal, lá iam, de novo, as mães buscando as bruxas para um benzimento de emergência. Geralmente elas faziam a "benção da estrela" e era batata, a pessoa logo ficava boa. Minha mãe guardava esse segredo e, em casa, sempre vivemos esse cerimonial quando estávamos doentes. Por isso, ainda hoje quando me acomete algum mal eu murmuro as palavras sagradas que aprendi da mãe, que aprendeu da avó, que aprendeu da avó da avó. Conhecimento ancestral. Mulheridades.

No caminho do Toro Passo, interior de Uruguaiana, havia uma bruxa muito especial. Chamava-se Chica, e era também a parteira da comunidade. Praticamente todas as crias do lugar vieram ao mundo pelos seus braços negros e macios. Ela vinha a hora que fosse, com suas ervas e magias, tinha um riso largo e uma fé inabalável nas forças da natureza. Quando faltavam as garrafadas ela ia lá fora e pegava um ramo qualquer, de qualquer árvore porque, dizia, as coisas vivas e verdes são fonte do sagrado.

Eu mesma vim ao mundo nos braços dela e, conta minha mãe, foi Chica quem cantou no meu ouvido as primeiras canções da vida. Acho que soprou junto com o canto as suas bruxarias e, talvez por isso, nas noites de lua cheia me venha essa louca vontade de dançar. Porque, conforme seus ensinamentos, a bruxa mesmo, a verdadeira, tinha que render homenagens a grande Jacy, dançando no descampado quando a lua fosse gorda.

Chica trazia crianças ao mundo e fazia benzeduras. Mas, nunca fez sortilégio de amor. Dizia que um homem ou uma  mulher se deve conquistar por si e não por magia. Chica era bruxa mesmo, destas que nunca morre. Ela nem sabia, mas a origem desta palavra vem do sânscrito e significa mulher sábia. Por isso não acredito muito em embruxamentos como coisa ruim, como querem fazer crer algumas religiões. Estar embruxada, ao contrário, é estar carregada de todos os conhecimentos do mundo, grávida de sabedoria, parceira da natureza.

Não foi sem razão, que nos tempos tristes da inquisição, a igreja católica - que era também o poder - queimava mulheres acusando-as de bruxas. Porque elas eram seres que sabiam, detinham o segredo das ervas, estavam impregnadas de poder. Eram, portanto, perigosas demais.

Hoje, vivemos tempos estranhos outra vez. Pessoas que também vivenciam rituais se julgam "mais iguais" que outras, se entendem especiais, superiores, e, por isso, se permitem discriminar e apontar o dedo. Como nos dolorosos dias inquisitivos gritam: Bruxa! Negra! Viado!Macumbeiro!Puta!Pagão!

Olho tudo isso e respiro fundo, buscando a sapiência ancestral. Assoma o rosto gordo da Chica, seu riso de cristal, sua bondade, seu cuidado com a vida. Então, como Morgana, busco o caminho das brumas, a solidão. Dias há em que a presença do humano - o vil humano - esgota e oprime. Por isso, necessário é retomar a trilha da bruxa, comungando da sabedoria da raça. Única forma de não sucumbir ao ódio da malta malsã. 



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