Um belo momento da greve pelas 30 horas
Durante dez anos estive em um ou outro cargo de direção do
Sintufsc - o sindicato dos trabalhadores da UFSC. Nossa proposta era, além de
travar a luta corporativa, absolutamente necessária, preparar os trabalhadores
para grandes debates da vida nacional e internacional. O ponto central era, a
partir das atividades de formação, incentivar o despertar da consciência de
classe.
Marx diz, no Capital que a consciência de classe - o entendimento
de como funciona o sistema capitalista, formado por uma classe que explora e
outra que é explorada - brotaria no trabalhador na medida em que a classe
operária estivesse cada vez mais disciplinada, unida e organizada. Saber como
funciona o sistema, tirar o véu que cria a alienação, eram condições
necessárias para isso. Daí o trabalho de formação que os sindicatos precisavam
desenvolver.
Ter uma consciência de classe consiste em discernir as
relações de produção capitalistas e defender os interesses de sua classe - a
dos trabalhadores - contra o capital. Pressupõe ainda uma postura solidária com
todos os seus iguais - trabalhadores
explorados - e uma ação coletiva diante
do inimigo comum.
Conferências, seminários, cursos, tudo era organizado para
que os trabalhadores da UFSC pudessem desvelar a realidade e adquirir essa
consciência de classe revolucionária, capaz de atuar no sentido de destruir o
sistema capitalista, solidariamente unida com os demais companheiros na mesma
situação . De certa forma, isso não funcionou. Apesar de durante essa década
termos conseguido aglutinar novos trabalhadores nesse caminho, com o passar do
tempo eles foram se afastando e alguns chegaram abandonar totalmente o campo da
luta de classe.
É fato que algumas pessoas mantiveram o rumo, mas foram
poucas. Não conseguimos envolver a categoria no projeto de mudança de mundo. E
aí aparece uma questão que tem me ocupado nos últimos tempos. O trabalho de
informação sobre como funciona o sistema foi feito. Não há como dizer que os trabalhadores
desconhecem que existe um sistema capitalista, e que, nele, há os que exploram
e os que são explorados. Todos sabem disso. Também sabem que na sua relação com
o empregador eles são os explorados. Ainda que os trabalhadores públicos sejam
pagos pelo dinheiro dos impostos, logo, pelo povo, é o estado que assume o papel de patrão. Como
o estado existe para atender os interesses da classe dominante - os exploradores - também os trabalhadores
públicos estão imbricados nessa equação de dominação trabalho x capital. E as
pessoas sabem disso. Então por que não têm consciência de classe?
São históricas - e algumas até bizarras - situações em que
os trabalhadores da UFSC mostraram sua face mais conservadora e egoísta na
relação com outras categorias e mesmo com estudantes. Pedidos de ajuda que foram negados, houve rejeição
à lutas conjuntas e até a negativa de um prato de comida. Discursos dos mais
venenosos contra o MST e até mesmo contra os palestinos ou iraquianos. Por quê?
Se ao longo da vida laboral e sindical a categoria teve a possibilidade de
conhecer a realidade, saber como funciona a sociedade, sair da caverna da
ignorância, por quê?
De certa forma o pensador polonês Zygmunt Bauman apresenta
alguns elementos para refletir sobre esse questionamento. Segundo ele, os
tempos vividos hoje são outros, líquidos, no qual nada mais é feito para durar.
A sociedade da produção foi substituída pela sociedade do consumo, logo as respostas
para os problemas atuais precisam estar ancoradas na realidade presente. O
trabalhador, ao que parece, já sabe que é um explorado, tem clara consciência
disso, mas aparentemente ele não se importa, desde que possa estar incluído no
mundo do consumo.
O próprio sistema capitalista - sempre se renovando -
oferece ao empobrecido a possibilidade de estar na mesma órbita que o
explorador. Ou seja: o rico tem um celular de mil dólares, mas ao pobre também
é dada a possibilidade de ter um celular. Custará mais barato, será uma
imitação, mas as funções estão ali. Terá acesso à internet e ao uatizapi. Logo,
que se dane a exploração, estamos no fluxo. Nesses novos tempos já não basta "desvelar" ao trabalhador a realidade,
pois a ideologia já não está mais na consciência. A ideologia está na coisa.
Daí que é preciso trabalhar com outras categorias, ligar o contexto da
exploração - que é ruim e destruidora do humano - com o mundo de hoje, com os
desafios de hoje e com as alienações de hoje.
Se a ideologia está na coisa, no objeto que é vorazmente
consumido, é a partir daí que temos de começar a pensar. Os trabalhadores, seja no trabalho formal ou informal, que
conseguem garantir recursos para viver no mundo das coisas maravilhosas, não se
importam que esse mundo venha a conta gotas, ou em imitações baratas. Eles
querem comprar e participar. É o cidadão cliente, aquele que só é, se compra.
Esse é, então o desafio do sindicalismo. Debruçar-se sobre a
realidade. Não dá para ficar choramingando que as pessoas não querem lutar, que
não vêm para as manifestações. Há que entender por que isso acontece e traçar
novas respostas para esses novos desafios. Ou faz isso, ou estará fadado à morte,
ou a indiferença, que é também uma espécie de morte.
No campo do serviço público o desafio é ainda maior. Os
salários são seguros, os empregos estáveis. Assim, mergulhar no mundo das
coisas, do consumo, é bastante fácil. Nos últimos anos, os ventos foram
favoráveis. A economia estabilizou, o crédito fluiu, foi possível comprar
muitas coisas, viajar, consumir à larga. Agora, se anuncia um tempo de arrocho.
Os preços vão subir, o crédito escassear. Haverá desconfortos. O que não sabemos
é se, acostumados com a ilusão do consumo, os trabalhadores terão forças para
escapar a esse canto de sereia. Por isso, os sindicatos continuam sendo necessários.
Para que a luta contra a opressão e alienação não seja uma batalha solitária.
Mas, se os sindicalistas não estiverem preparados, teórica e politicamente,
perderão a batalha.
Nesses dias de paralisação do serviço público federal, a
UFSC se apresenta como um palco privilegiado desse debate. Setores fecharam as
portas atendendo ao chamado do sindicato de "cruzar os braços". Uma
resposta oca, a um chamado oco. Respostas velhas para novos desafios. Não há
movimento, não há debates, não há reflexões.
Basta lembrarmos que no ano passado, a nova safra de
trabalhadores, que entrou no serviço público nos últimos anos, apresentou uma
proposta de greve original e novidadeira: uma greve de trabalho. Não fechar as
portas, mas abrir. Aquilo foi uma proposta brilhante. Novas respostas para
novos tempos. O resultado dessa novidade foi um golpe dado por parte da categoria -
direção sindical, aposentados e alguns ativos da velha guarda - que boicotou o
movimento e, em uma assembleia melancólica, acabou com a greve que durou quase
três meses, cheia de atos, movimentos e atividades culturais e políticas. O golpe, desagregador e inusitado, veio por conta da incapacidade de compreender os novos tempos, as novas
respostas. Trabalhar, em greve? Como assim? Nunca foi assim? O velho
sindicalismo, cego, prisioneiro do passado.
Mas, o que apareceu como uma derrota pode ser também o germe
de uma mudança. Aquela brisa novidadeira não se dissipou. Ela vive, nos
corredores, nos bares do campus, nas paradas de ônibus. A juventude observa,
estuda, se encontra e debate. A última batalha ainda não foi travada.
Eu tenho muitas esperanças...
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