Momentos da vida nesses quatro anos
Das entranhas dos
estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul vieram para dentro da
Universidade Federal, como alunos, os Guarani, Kaigang e Xokleng La
Klanõ. Professores já em suas aldeias, ensinando coisa de juruá e
de índio, buscando acompanhar a vida educativa, ora integrado, ora
fora. Uma batalha cotidiana já que os indígenas, como qualquer
outro grupo social, não conseguem preservar seu modo de vida sem
território. São milhares ainda as famílias indígenas que não têm
um pedaço de terra onde possam aportar e pensar a vida. Muita luta
ainda se faz nas beiras de estradas, nos acampamentos improvisados,
em terras alheias. Tanta coisa para re-conquistar, visto que o índio
é o verdadeiro dono da terra. Mas, desde 1500 tem sido usurpado,
invadido, roubado. Uma longa história de tragédias e resistência…
Na noite deste dia 8
de abril de 2015, às 19h, no Centro de Eventos da UFSC, essa resistência/luta mostra um dos aspectos de
sua face. Mais de 100 representantes das três etnias que vivem em
Santa Catarina – com alguns vindos do Rio Grande do Sul - recebem seu diploma de graduação na Licenciatura Intercultural
Indígena do Sul da Mata Atlântica, curso criado na UFSC para
garantir formação aos povos originários, dentro da nova política
de educação que promove a inserção de negros e índios nas
universidades.
Desde o começo o
curso foi um desafio. Primeiro, para que existisse de fato, com toda
a discussão necessária junto às aldeias e o difícil processo de
busca de recursos. E, depois, para que não se tornasse só mais um
curso de graduação dentro da universidade, sem levar em conta a
especificidade do mundo indígena. Foram quatro anos de batalha. Dos
trabalhadores, que precisaram aprender a viver com uma outra forma de
organizar a vida e o tempo. Dos professores e coordenadores, que
tiveram de encontrar caminhos nos quais o saber pudesse ter duas
vias. E dos próprios alunos, que precisaram enfrentar um ambiente
totalmente hostil, desde o eterno preconceito até na organização
do espaço.
Muitos desses
desafios foram vencidos pouco a pouco, outros ainda subsistem. Mas,
para os alunos que conseguiram terminar suas monografias, a vitória
está estampada nos rostos satisfeitos pelo trabalho criado.
Praticamente todos os trabalhos finais versaram sobre a cultura
indígena. Família, ervas medicinais, território, mitos, histórias.
Conforme aponta o coordenador pedagógico do curso, Rivelino Barreto,
que é da etnia Tucano, da Amazônia, os alunos decidiram pensar a
própria vida na própria cultura. “Até então, os indígenas que
entravam na faculdade tinham de seguir a regra de pensar os trabalhos
de conclusão de acordo com o que certo autor pensou, reproduzindo
apenas um saber que não era nosso. Nessa licenciatura os alunos
puderam colocar na mesa da universidade os conceitos indígenas.
Trouxeram eles as suas teorias, os seus saberes e os expuseram. O
indígena não tem o hábito de ler um autor e o reproduzir. Nós
pensamos e vivemos a partir do que vemos, do que ouvimos, do que
vivemos na prática. Nossas referências são nossos velhos, nossos
pajés. Esse curso foi, de fato, um diálogo”.
Hoje à noite,
quando receberem o sonhado “canudo” os jovens indígenas que
caminharam pelo campus da UFSC durante quatro anos, levam um pedaço
de papel que é importante na cultura não-índia. Mas, muito mais do
que isso, eles deixam nas prateleiras da biblioteca um saber que até
então estava restrito a eles mesmos ou um que outro estudioso. A
cultura Guarani, Xoklen La Klanõ e Kaigang pode ser visitada, e é contada pelos próprios índios. Não é um falar sobre um “outro”,
distante. É um dizer de si mesmo, com toda a delicadeza/força de
uma cultura que, a despeito de tantos massacres, sobrevive e ocupa os
espaços. Não como coitadinhos tutelados, mas como uma gente que tem
o que dizer.
O mundo indígena é
constituído de uma episteme que se diferencia do mundo criado pela
cultura ocidental cristã. Diferencia-se nos conceitos, nos mitos
fundadores, na forma de organizar a vida. Durante centenas de anos
essas episteme foi negada, excluída, ridicularizada. Mas, tal como a
boa semente, não esterilizada pela Monsanto, os povos originários
seguem fazendo brotar, nos minúsculos territórios livres do saber,
a sua palavra.
Hoje, meus parentes
vivem um momento de alegria. Logo depois retornam para suas aldeias,
na dura batalha por um tempo que ainda não chegou. Mas, que chegará!
Parabéns, vida
longa e próspera (para ser intergaláctica)! Eko Porã!
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