Alzheimer/Velhice
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sexta-feira, 13 de junho de 2014
Povo Xokleng ainda luta pelo cumprimento de um acordo de 1992
Fotos: Woia Patte
A história do povo Xokleng em Santa Catarina vem do princípios dos tempos, mas o processo de destruição da cultura e da vida desse povo antigo começou em 1771, quando os tropeiros paulistas fincaram as primeiras povoações na região de Lages, expulsando os indígenas. Mais tarde, a chegada dos imigrantes daria novo impulso ao extermínio. Os conflitos com os brancos eram inevitáveis, uma vez que estavam tomando suas terras. Chamados de "bugres", eles passaram a ser caçados como bichos e vendidos como escravos. Terminado o tempo da escravidão, mas já com sua população bastante diminuída, os Xokleng começaram a ser, então, "civilizados". A lógica governamental era a de integrar os indígenas, mas o caminho que escolheram para isso foi o do confinamento em reservas. O processo conhecido como "pacificação" só foi bom para os brancos.
Desde aí, o povo Xokleng vem resistindo como pode. Como conta o professor José Cuzung Ndilli, na tal da “pacificação” muitos morreram - por doença ou violência - sobrando míseras 120 almas que, a duras penas, geraram filhos e ainda mantêm as tradições originárias. Mas, a batalha por uma terra própria, capaz de garantir a sobrevivência das famílias é muito semelhante a da maioria dos povos indígenas do Brasil. Tem de ser travada todos os dias e contra todos os interesses. Passados séculos da invasão que lhes tirou o território, eles ainda precisam se levantar em rebelião cada vez que precisam defender um direito básico.
Nos anos 70, os Xokleng mais uma vez foram retirados de seus espaços de vida por conta da construção de uma grande barragem, a Barragem Norte, em José Boiteaux. Essa obra acabou alagando grande parte do território e, mais uma vez os indígenas foram deixados à própria sorte. Muitas das promessas feita à época da construção da barragem não foram cumpridas, o que obrigou os Xokleng a ocupar o canteiro de obras em 1991. Foi a primeira vez que o estado de Santa Catarina percebeu que esse povo de história larga ainda resistia e brigava por seus direitos. Como todos sabem, quando os índios estão quietos nas suas aldeias, fala-se deles no 19 de abril, mas, se decidem lutar por direitos, voltam, outra vez, a ser vistos como "selvagens", incapazes de compreender o progresso.
Ora, os Xokleng compreendem muito bem o que é o progresso. O têm sentido na pele desde o século 18. Mas, o fato é que desse pretenso "desenvolvimento" eles não fazem parte. Seguem aldeados, em condições precárias, tendo de mendigar o que deveria ser um direito garantido. Desde o alimento até as condições dignas de moradia, saúde, educação. Para os brancos que vivem suas vidas nas terras ocupadas, isso passa desapercebido. E é por isso que os Xokleng, volta e meia, empunham suas armas e marcham na direção da conquista do que lhes garante a vida.
Por uma coincidência irônica, nesse ano de 2014, completam-se 100 anos do início da saga da "pacificação" realizada por Eduardo Hoerhan, na época (1914) à frente do Serviço de Proteção ao Índio em Santa Catarina. Naqueles dias ele prometia uma vida de paz aos Xokleng. Uma vida que não veio.
Nessa semana, as chuvas torrenciais que caíram em Santa Catarina alagaram o território Laklãnõ, coisa que todo mundo sabia que iria acontecer com a construção do lago da barragem, que foi imposta nos anos 70. Uma enchente a mais, poderia alguém dizer. "Pequena e rápida", como afirmou o governador Raimundo Colombo. Mas, para quem vive esse drama desde anos, sem que nada seja feito, a história é outra. Os Xokleng não recebem obras de infraestrutura ou de contenção. Os Xokleng não dormem em camas quentes de palácios governamentais. Eles estão entregues à própria sorte. É por isso que lutam.
Com as terras alagadas e isoladas, eles partiram na noite de quarta-feira para a Barragem Norte e trancaram a passagem. Se aquela obra foi o símbolo de mais um onda de destruição da sua gente, eles já sabem que é lá que as batalhas precisam ser travadas. Única forma de os governantes olhares e enxergarem as demandas indígenas. Então, quando eles se mexem, mexem-se também as forças de repressão. Em primeiro lugar, proteger os "bens". Depois, as gentes. E se essas gentes forem índios, bem, aí pode esperar mais um pouco.
Assim, os Xokleng enfrentaram mais uma batalha. Só na quinta-feira o governo resolveu agendar uma reunião. Cíntia Núbia Moraes, cacique interina, insiste que já é hora de se cumprir o protocolo de intenções assinado em 1992, quando os Xokleng precisaram ocupar a barragem para serem escutados. O não cumprimento total do acordo até os dias de hoje mostra o quanto esse país se importa com a vida indígena. Ela lembra que no dia 28 de outubro do ano passado foi protocolado um documento no Ministério da Integração pedindo respostas, e o governo havia prometido uma em 20 dias. Já se passou quase um ano e nada. "A gente vê que sem o movimento, sem esse barulho que é feito, a gente não consegue as coisas. A gente vive como cozinhando um alimento duro: só na pressão. Nós temos nossos direitos e exigimos que nos respeitem", diz Cíntia.
E ela tem razão. Bastou os Xokleng marcharem para a Barragem Norte e as autoridades já se movimentaram. Ítalo Goral, da Secretaria de Desenvolvimento Regional, que recebeu os indígenas na quinta-feira disse que reconhece a justeza das reivindicações. Ele reconhece que as casas foram alagadas por conta do nível da barragem, que ficou muito alto com as chuvas. Jonas Pudwel, prefeito de José Boiteaux também esteve na reunião e prometeu auxiliar com as estradas, embora reconheça que a prefeitura não tem sequer os equipamentos adequados para agir em casos como esses. "Quando a barragem baixa, o prejuízo fica aqui. Os governos estadual e federal têm de cumprir suas promessas. Além disso, a obra da barragem foi mal feita. E agora, quem vai pagar por isso? Quem vai garantir que a obra seja refeita para que isso não mais aconteça?", apontou.
Hoje nova bateria de reuniões será realizada, com promessas e que tais. Muitas casas na aldeia ainda estão submersas. Há famílias ilhadas. As estradas seguem sendo um terror. As medidas paliativas serão tomadas. Como sempre. Mas, há coisas a tratar para além do emergencial. A Barragem Norte mostrou suas falhas, tal qual foi denunciado durante sua construção, denúncia que ficou no vazio porque era feita por índios ou "eco-chatos". Quem vai arcar com isso? Serão necessárias novas chuvas e novas tragédias? Será preciso que alguém morra? E o protocolo firmado em 1992 será ou não respeitado? Até quando o governo federal vai adiar o seu compromisso com os Xokleng?
Na pequena José Boiteaux, onde estão as aldeias, a vida seguirá. Os indígenas, na sabedoria milenar do silêncio, se recolherão para lamber as feridas. Mas, não se enganem. Enquanto viva, essa gente guerreira vai lutar por seus direitos.
Em nome de deus
Santa destruída em uma igreja de Montes Claros - MG
No dia em que morreu havia parado, como sempre, para conversar com Idaléia. Ficara mais de hora, na tarde modorrenta de maio. Gostava da guria. Casaria com ela, pensava. Depois, atravessara o campinho até o mercado, onde compraria pão e leite. Assoviava um ponto de macumba, distraído. Não sentiu dor. Só a sensação de explosão, como se múltiplas luzes piscassem de forma brutal. Enquanto caia, ouviu uma voz: “matamos o feiticeiro”. Não entendeu!
No átimo de tempo entre as luzes e frio do chão, Artur passou a vida em tela. Viu-se à beira da sanga, no interior do Rio Grande, cantarolando a mesma cantiga que a mãe. Ela lavava a roupa devagar, com as pernas negras e luzidias estendidas na margem. Tinha porte de rainha e riso de pérolas. Nas noites escuras lhe contava as histórias dos orixás. “São deuses?”, perguntava. “Sim”. Cada um guardava algo do sagrado: as águas, os ventos, os raios, os trovões, a luz. “Mas e esse, do qual fala o padre Miro?”, insistia, confuso. “É outro deus. Existem muitos deles. Cada povo tem os seus. E é bom que sejam muitos, porque assim não nos aprisionam”.
Na escola, o padre dizia: “só há um deus verdadeiro. Os demais são `falsos ídolos´, só Jesus salva”. E o guri apavorava, temendo que a mãe ficasse fora do céu. Ela ria: “não tem sentido um povo eleito. Que deus seria esse que escolhe uns e não outros? Seria como eu gostar mais de ti que da tua irmã. Não, não, não. Há deuses em tudo que vive, assim, nenhum nos domina”. Aquilo era pura teologia.
O tempo passou, ele entendeu. A religião tinha de ser libertadora. Re-ligare. Ligar com o sagrado, com o profundo em nós. Quem disse que precisava existir um deus? Ele vira que o monoteísmo (religião de um único deus) fazia era mal. Quantas guerras, mortes e maldades foram realizadas por conta do deus único? Quantos terrores foram impingidos em nome de ser um povo escolhido? Não, de fato era melhor viver na harmonia com a vida, encontrando as coisas sagradas em tudo o que há.
Agora, já homem, ele via na televisão alguns pastores dizendo que alguém estava “possuído” pelo diabo. E outros dizendo que “deus”, o único, repudiava os homossexuais, porque eram anormais. E outros que pregavam ódio aos negros, aos índios, aos ciganos, ou a qualquer outro que não fosse igual. E outros que diziam que os deuses dos outros eram o próprio demônio. E se arvoravam em sabedores da verdade verdadeira, ditada por deus, o único. Ele se recolhia e seguia vivendo na harmonia com a terra, estabelecendo vínculos sagrados com cada coisa viva, as auroras, os entardeceres, as noites escuras, o sol. E quando chegavam os solstícios e equinócios ele dançava, nu, no quintal de casa, revivendo antigos rituais de amor com a vida.
Era um homem comum na pacata vila. Um funcionário público, cumpridor de deveres, pagador de contas. Brincava com as crianças, ajudava os velhos, cuidava dos bichos. Seu rosto era plácido, terno e rescendia a pureza. Ninguém lhe prestava atenção até o dia em que uma das mulheres da igreja próxima o vira dançando entre tochas de fogo, fazendo amor com a terra. “É o capeta”, espalhou.
E, do nada, os bons cristão da vila começaram a hostilizar o homem que amava a terra. Ele não entendeu, mas seguiu a vida. Até que naquela tarde, alguns lhes arrebentaram o crânio com um pedaço de pau. Ele suspirou e, entre luzes, pareceu ver a mãe, com seu riso de pérolas a lhe estender os braços. Os vizinhos entraram na casa em busca das coisas do diabo. Tudo o que acharam foi um lar, simples e limpo, de alguém que só tinha amor no coração.
terça-feira, 10 de junho de 2014
A Banda Parei
Poucas coisas ainda mexem com o meu coração no que diz
respeito aos Sintufsc. Uma delas é a Banda Parei. Ainda vivem na minha memória
aquelas noites da greve de 2001, com os trabalhadores acampados no NPD, envoltos
em cobertores, o Assis em alvoroço, a Mida cozinhando, e a gente pensando sobre o que fazer. Eis que,
então, tivemos a ideia de criar uma banda, sem muita pretensão, apenas para
infernizar a vida da administração e dos colegas que ainda não tinham parado. A proposta veio da incansável guerreira Ângela Dalri. Nosso
modelo eram as caminhadas do povo argentino, sempre barulhentas e alegres. Discutimos no comando e a assembleia aprovou.
Em poucos dias lá estavam os tambores, os pratos, as tarolas e, sob o comando do
Pepê, a Banda foi se construindo. O Moisés Eller deu o nome: Parei! Não demorou muito e as gentes estavam
incorporadas. Cada um queria aproveitar e fazer o barulhão. Eu, a Terezinha, a
Nilza, o Ivalter, a Valdete, o Marlove, o Eduardo, o Batinga e tantos outros
companheiros queridos.
A Banda Parei começou a circular pelo campus, e sua batucada
meio desarticulada chegou a levantar a ira do professor Espíndola, porque
passávamos pelo laboratório de som e perturbávamos as pesquisas. Foram dias de
muito conflito, mas de muita beleza. Depois, a Banda começou a ser levada para
Brasília quando tinha caravana e, em pouco tempo, já era uma referência
nacional. A Banda Parei liderava as caminhadas e dava colorido para as lutas, normalmente sérias
demais. Marcava presença, inclusive, nos Gritos dos Excluídos, puxando as
marchas e alegrando os atos de protesto.
A Banda Parei foi uma das coisas que permaneceu ao longo do
tempo, mesmo depois que o sindicato passou para as mãos de outro grupo. Venceu
a beleza e a alegria, sem dar lugar a sectarismos. E é assim, que desde aquele
vitorioso ano de 2001, essa banda tem sido a sentinela de toda a luta que se
trava aqui na UFSC. Basta que se anuncie a rebelião e lá vem ela, com seu
barulho infernal, ora desarranjado, ora arrumadinho, mas sempre arrasador.
Hoje, na assembleia, na qual esperávamos a vinda da reitora,
a Banda Parei, mais uma vez, derreteu meu coração. Antes dos trabalhos, a
alegre banda passou em revista, circulando pelo auditório, como fazendo um
chamado para a luta. O toque firme do tambor é como o toque do coração. Ele
vibra na corda mais profunda e nos mostra que passe o que passar, a vida segue
brotando. Entre os "tocantes" muitas carinhas novas, misturadas às
"velhas". A certeza da renovação.
Lá no longínquo 2001, quando, entre lágrimas, realizamos a última assembleia com o desmonte
do acampamento do NPD, foi a Banda Parei que abriu o caminho para aquele dia de
vitória. E desde então, o batuque do tambor tem se misturado a essa batida
vital que mantém acesa a luta de todos nós.
Tenho certeza de que passe o que passar, nossa universidade
manterá vibrando esse som, que é o som da força, da valentia, da resistência,
da alegria, do compromisso. Depois, quando minha pressão subiu a 15, ao final
da assembleia, eu vim andando, pensando: "Y bueno, se eu passar dessa pra
melhor, que seja a Banda Parei a fazer a batucada da minha semeadura".
Para além de todas as divergências, a Banda Parei é dona do
meu coração.