Alzheimer/Velhice

sábado, 1 de março de 2014

Sob o olhar de um menino





Ele é um espoleta. Guri ainda miúdo, que presta atenção em tudo, com olhos graúdos e coração alerta. No meio dos cachorros e das galinhas, ele brinca de super-herói. Mascarado, pula pelos troncos e pedras do quintal, salvando o mundo. Porque, afinal, são tantas as maldades que precisam ser vencidas. Dia desses, numa das tantas praças do Uruguai, abraçou-se a Artigas, porque o general dos povos livres parecia solitário. Identifica-se com os perdidos da história e sonha viajar de Rivera até Florianópolis num balão. Já tem até uma bússola para guiar seu voo de felicidade. Faz perguntas difíceis e guarda as respostas como quem vigia um tesouro.

Outro dia, ouviu atento as conversas da casa sobre a notícia de que a Câmara de Vereadores de Porto Alegre havia votado e decidido que, a partir de agora, seria crime participar de qualquer manifestação mascarado. Matutou, correu para lá e para cá, seguiu sua vida. Hoje, ouvindo as notícias sobre o Carnaval no Brasil, ficou, de novo, daquele jeito pensativo. Então, com sua carinha franzida e os olhinhos apertados, perguntou, curioso e perplexo:

- Mãe, o carnaval é um tipo de manifestação?
- Sim!
- E as pessoas vão poder ir mascaradas?
Pois é, Simón Ernesto.. quem pode entender todas essas contradições!!!

E ele, ainda matutando as incongruências dos governantes, pegou seu uniforme de herói e saiu a esgrimir os inimigos imaginários. Sabe deus que caraminholas andariam a pulular na sua cabecinha de menino. Mas, estava de máscara, porque lá no Uruguai, elas ainda podem ser usadas, seja no carnaval ou não. 

Tarrafa elétrica - uma beleza!

Fotos: Leandro Pellizzoni



Aquele que canta sua aldeia, canta o mundo. Está no rumo do universal. E assim é o Tarrafa Elétrica, um grupo de músicos de Itajaí que está há dez anos dizendo das coisas da cultura do litoral de Santa Catarina. É tarrafa porque nasce na beira do mar da cidade dos contêineres, vigiando a sardinha e os sentimentos cheios de pureza da gente praieira. E é elétrica porque, além de incorporar a guitarra numa pegada bem boi-de-mamão, acende uma beleza profunda em qualquer um que escute suas canções cheias de simplicidade e de raiz.

E foi para esse encantamento que o Teatro Alvaro de Carvalho se abriu no último dia 25 de fevereiro. Recebeu os garotos de chapéu de palha e sotaque litorâneo para um passeio no barco da cultural local. Um espécie de risoto de marisco com caldo de peixe. Foi hora de mergulhar nas letras que nascem da vida mesma, da observação sistemática da vida das gentes que trabalham e sonham na beira do mar, que contam das alegrias e tristeza de pessoas reais. E foi hora de viajar na música que mistura ritmos de todas as partes desse imenso brasil, de coloridos gostos, mas sempre fincada na raiz de um povo que decidiu enfrentar as idas e vindas do rio Itajaí, no seu eterno romance com o mar.

Assim que uma hora de música com o Tarrafa Elétrica é esse balançar nas ondas, esse gingado da brincadeira do boi, essa malemolência da gente do mar. É respiro dessa mistura índia, branca, negra, capira, que nos faz quem somos. Na percussão, sente-se o chamado vital, telúrico, que sobrevive na cultural litorânia, a despeito de tanto colonialismo cultural e mental.

O Tarrafa Elétrica  traz a gente de volta para a beira da praia, para o princípio dos tempos e, num átimo, nos atira para o futuro, misturado e mestiço. É beleza, é balanço, é riqueza.

Nesses dez anos de estrada, cantando as coisas do litoral, a banda pouco toca nas rádios movidas a jabá ou dominadas pela indústria ideológica. Mas, vai avançando através daqueles que a conhecem e que, fatalmente, se apaixonam pela música peixeira. Das cordas, metais e percussão vai se desfiando uma linha que eles lentamente soltam pelo mar da vida, e da tarrafa saltam aos borbotões toda a sorte de  belezas que não apenas o que vivem nessa terra podem apreciar. “É um pouco do tarrafa que é linhada, é linhada de cultura”....

Ouçam, que maravilha...

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A difícil arte de ser desimportante



No geral, sou uma otimista. E crente. Acredito piamente no outro. Para mim, como diz o poeta, o outro sempre é o paraíso. Então, não raro me surpreendo – para o bem e para o mal. Assim há dias que venho mastigando uma mágoa, uma dor, um não-sei-que. Tem a ver com essa coisa demasiado humana, que é o desejo de comandar, de ser o dono, o que decide, o que determina, o que faz acontecer. E, que, por isso, não admite qualquer sombra. Para esses seres, o outro é sempre uma ameaça. Tudo bem que sintam medo, mas há os que agem com má fé. E intrigam, puxam o tapete, fazem denúncias vãs. Tentam assim, afastar de si, com maledicências, aqueles que, como eles, buscam a mesma coisa.  

Ruminando essas coisas, estive a falar com uma mulher que é uma grande mestra pra mim. E, ela, na sua generosidade, me lembrou de uma velha parábola, dessas que contava Jesus. Pois diz que andava ele a passear pelos caminhos quando um dos discípulos lhe chegou a contar, esbaforido, que outras pessoas andavam a tirar demônios das gentes. Coisa que só Jesus podia fazer, segundo ele. “É um absurdo”, vociferava. E Jesus, tranquilão, mastigando uma haste de trigo, perguntou: - E os demônios estão saindo? – E o discípulo: - Pois, sim – E Jesus: - Mas, então está bem. É o que importa. Não quem está tirando.

E é essa observação tão simples e certeira que deveria valer nesse nosso miserável mundo da luta política. Teríamos de andar todos a “tirar demônios”, sem hierarquias, sem temores. Fazer o que é preciso para acabar com esse mundo de exclusão, de violência e de opressão que o capitalismo aprofunda. Deveríamos ser solidários com quem trabalha, faz coisas boas, participa das lutas. Mas, não. Pessoas há que querem o monopólio da revolução. E muitas vezes, nem é com a radical mudança que realmente sonham.  Pois é aí que muita coisa desanda.

O fato é que, como diz Maturana, o nosso imperativo genético é a cooperação. Não há espaço para  competição no mundo humano. Ela é anti-natural, não constrói, não ajuda. Só a junção das forças, a solidariedade, o trabalho em comunhão faz a raça avançar. Essa coisa que os zapatistas entendem tão bem quando colocam o pasamontañas e tornam-se todos um só. São comunidade, porque é o que importa preservar. Cada um de nós vai voltar ao pó dia desses, e a raça seguirá seu caminho, sem a nossa intervenção. Somos esse sopro ínfimo, esse atma, essa poeirinha cósmica. Desimportantes no grande livro da vida, se pensarmos na nossa ação singular. Somos mais, no coletivo.

Vai daí que essa é a grande tarefa ainda a se cumprir. Compreender nossa pequenez e, na grande teia comunitária, ser um nó, forte e definitivo. Não importa quem protagoniza, quem comanda, que está na frente. Importa que a gente avance e expulse os demônios, caminhando com o próximo e o distante, afastando a dor, a miséria, a violência, a opressão.  Mas, esse ainda é um longo caminho da raça... tão distante quanto necessário!


Enquanto não se aprende essa lição, há que se tentar compreender o que intriga, e desarma, e destrói. O que não significa aceitar. E a vida segue, no galope...