Alzheimer/Velhice

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Greve dos Correios segue, sem negociação



Nessa quinta-feira (13.02), bem debaixo do sol do meio dia, os trabalhadores dos Correios caminharam pelas ruas do centro de Florianópolis. Eles estão em greve desde o dia 30 de janeiro, mas, ao que parece, o governo está pouco se lixando para suas reivindicações, uma vez que sequer abriu mesa de negociação. Por outro lado, a direção geral da ECT imediatamente acionou a justiça para que o movimento fosse declarado ilegal e abusivo. Ainda assim, os trabalhadores seguem parados, já que o tribunal do trabalho remeteu a discussão para a comissão que discute o dissídio coletivo. Os trabalhadores deflagaram greve por conta das mudanças que a ECT fez no fez no plano de saúde. Até agora, a assistência da saúde dos trabalhadores tem sido feita pela própria empresa. Mas, com as mudanças propostas, eles terão de pagar por um plano privado, terão os pais excluídos do benefício e ainda terão de pagar co-participação por cada procedimento que fizerem. 

Outra reivindicação diz respeito ao horários das entregas. Desde há anos que a ECT acordou estudar a troca de horário para o trabalho dos carteiros, que atualmente é à tarde (do meio-dia às quatro), para o período da manhã. Segundo o diretor do Sindicato em Santa Catarina, Hélio  Samuel, a entrega na parte da tarde tem sido um tormento para os trabalhadores, principalmente agora no verão, quando ondas de calor tornam o dia um caldeirão. “Esse é o pior horário para exposição ao sol, comprovado cientificamente. Temos muitos companheiros com câncer de pele. Isso não é brincadeira.”

Talvez boa parte das pessoas das grandes cidades não tenha sentido os efeitos da greve, uma vez que nos dias atuais pouco utilizam os correios, a não ser para receber contas a pagar. Mas, nas pequenas cidades e entre as comunidades empobrecidas de todo o país, o correio ainda é a única opção de comunicação com parentes distantes, bem como o caminho para o envio de encomendas. E, apesar de muitos dos serviços dos correios já estaram privatizados, a entrega das correspondências e das encomendas ainda é feita por trabalhadores públicos. Pois são esses que, hoje, lutam pela garantia da assistência à saude e por melhores condições de trabalho.

Até 2011 a Empresa Brasileira de Correios era uma empresa pública que detinha o monopólio de todo o serviço postal. Mas, uma medida provisória, mais tarde transformada em lei, acabou com o monopólio e possibilitou a entrega de vários serviços para a iniciativa privada. Naqueles dias, o presidente dos Correios, Wagner Pinheiro de Oliveira, defendia a ideia, alegando que era necessário “modernizar” a empresa, justamente porque o serviço de entrega de correspondência tradicional vinha perdendo espaço para novas tecnologias. “A aprovação da MP possibilitará a transformação dos Correios em uma grande empresa de logística integrada, que poderá oferecer serviços de qualidade a todos os cidadãos brasileiros, objetivo do governo federal”, dizia. Essa modernização, é claro, veio para beneficiar o setor privado que hoje, inclusive, detém a parte do leão, que é o serviço de Sedex, o mais caro do país. Durante o processo de discussão dessa lei, apenas os trabalhadores dos Correios gritaram contra. A sociedade não se manifestou. Muitos sequer souberam que os Correios estavam se privatizando. 

Compreenda como caminhou a privatização dos Correios

Foi o decreto lei 509, de 20 de março de 1969, assinado pelo presidente Costa e Silva,  que transformou os Correios numa empresa pública, responsável pelo monopólio dos serviços postais em todo o território nacional. A sede era na capital federal, com regionais que, na prática , eram as que distribuiam as correspondências, as encomentas e todo o restantes do serviço. Como  uma empresa ligada ao Ministério das Comunicações, o Correio estava submetido a todas as regras orçamentárias federais, sem interferência de capital privado. As franquias postais e telegráficas eram permitidas, mas ficavam totalmente submetidas ao Conselho de Administração Central. 

A lei 6.538, editada em junho de 1978, pelo presidente Ernesto Geisel especifica melhor o que são os serviços postais, listando todas as atividades realizadas pelo correio, garantindo ao cidadão brasileiro o direito de enviar e receber correspondências e encomendas. Segue definindo que apenas a empresa pública pode prestar esse serviço, embora estabeleça algumas novidades como a possibilidade a exploração de publicidade em objetos de correspondência. Fogem do monopólio estatal apenas o transporte de carta ou cartão-postal, efetuado entre dependências da mesma pessoa jurídica, o famoso malote, e o transporte e entrega de carta e cartão-postal; executados eventualmente e sem fins lucrativos, na forma definida em regulamento. No mês seguinte, um novo decreto – 83.726 - define o estatuto da empresa, sua organização e atribuições. 

Em 1989 é a vez do presidente José Sarney modificar a lei, acrescentando, através de um decreto, regras para licitação. Em 1995, o decreto 1.390, assinado por Fernando Henrique Cardoso, altera algumas regras com relação a cargos e especifica atribuições aos mesmo. Em setembro de 1997, outro decreto (2.326), incorpora novas atribuições ao cargo de presidente e diretores de regionais.

Em maio de 2011, o decreto 7.483, assinado pela presidente Dilma Roussef, dá uma guinada na história dos Correios revolgando todos os decretos promulgados desde 1970. Na prática, define um novo Estatuto para a empresa que, a partir de então, libera algumas atividades para exploração privada, além de poder firmar parcerias comerciais que “agreguem valor” à marca. É retirado definitivamente dos Correios o monopólio dos serviços postais. Contraditoriamente, a lei define um “Estatuto Social” aos Correios, ao mesmo tempo em que abre a porta para a entrada da iniciativa privada no setor.

Em setembro do mesmo ano, O Congresso Nacional aprova a lei 12.490, que trata de duas  questões importantes. Uma diz respeito a política de abastecimento e a outra está relacionada aos Correios. Vários pontos são acrescentados com relação aos serviços postais. Finalmente, no ano de 2013, no mês de maio, o decreto 8.016, define um novo estatuto para a empresa, revogando assim o promulgado em 2011.

No novo estatuto também não se vê mais a palavra “monopólio”, a qual acompanhou todos os decretos e leis desde 1969. Prevê exclusividade em alguns serviços e permite a contratação de subsidiárias. Apenas o serviço de entrega de correspondência (carteiros) ainda é vedado às empresas privadas. Muito bom negócio para o empresário que pode lucrar à vontade com o serviço, enquanto o estado segue bancando a entrega. E assim foi regularizado o serviço de Sedex – que hoje é privado e que encareceu o envio de encomentas de forma astronômica. 

Mas, para garantir um serviço de encomendas a preço menor o governo instituiou o PAC, definido como um serviço da linha econômica. Nele, encomendas de 500 gramas até 30 quilos podem ser enviadas com tarifas bem menores que as do Sedex. A diferença é que demora mais de 15 dias para chegar. Não bastasse isso, nos postos privados de Correio ainda há funcionários que se recusam a enviar encomendas que não estejam embaladas nas caixas específicas de empresa, que custam de três a 20 reais, mesmo que isso não seja obrigatório. As pessoas, desinformadas, acabam cedendo à venda casada.  É bom que saibam que o documento que cria o PAC especifica no item 7 - Toda encomenda deverá ser acondicionada e fechada pelo remetente em embalagem que resista ao peso, à forma e à natureza do conteúdo, bem como as condições de transporte. Isso significa que não necessariamente precisa estar numa caixa.  

A luta por serviço de qualidade

Para os trabalhadores não tem sido fácil ver a deteriorização dos Correios, empresa que até bem pouco tempo era considerada um exemplo de confiabilidade e pontualidade. Hoje, conforme pesquisa divulgada pela ONG ProTeste, as correspondências não-comerciais chegam a atrasar em até 75% dos casos. O que mostra que houve uma priorização para o serviço postal empresarial, enquanto que as pessoas mais simples, que ainda precisam do Correio para se comunicar, amargam os maus serviços.

Agora, não bastassem todos os problemas decorrentes do sucateamento da face pública dos Correios, também os trabalhadores estão sendo entregues ao sistema privado. E é por isso que estão em luta. “Nós amamos o nosso trabalho, queremos ver as pessoas bem atendidas. Mas, tudo parece só estar piorando”. 




terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

A cidade se movimenta na luta por terra, trabalho e teto

Foto: Rubens Lopes

No dia sete de fevereiro, sob um sol escaldante, mais de mil pessoas caminharam desde o trapiche em frente ao Koxixos, até o Fórum da capital. Trajeto todo realizado no âmbito de um dos espaços mais caros da cidade: a Beira Mar. As gentes que marchavam eram moradoras da Ocupação Amarildo de Souza - nascida em 16 de dezembro de 2013, nas margens da estrada que vai para a praia de Canasvieiras - mais os apoiadores, estudantes, sindicalistas, militantes sociais. Carregavam faixas, nas quais expunham suas reivindicações - terra, trabalho e teto. Dos grandes prédios da Beira Mar, a elite espiava, entre assustada e perplexa. Havia muito tempo que não via mais esse tipo de "demanda" por ali. No geral, as questões envolvendo terra em Florianópolis, desde há anos estão circunscritas a lutas pontuais, tais como a da chamada "Favela do Siri", nos Ingleses, ou a recente ocupação Palmares, na Trindade, sempre tratadas como casos excepcionais, sem maiores repercussões na mídia vinculada ao poder.

Então, o que faz da Ocupação Amarildo um elemento bem mais perturbador, capaz de atrair uma violenta campanha de desqualificação e repúdio por parte das velhas bocas alugadas da mídia? Seria o fato de ali estarem hoje mais de 700 famílias, unidas num sonho semelhante? Seria porque estão em terreno de gente muito graúda? Ou seria porque a cidade definitivamente entra num outro ponto de viragem no que diz respeito ao tema da terra? Para responder essas questões temos de voltar na história...

1985 - ondas de migração

Até o final dos anos 70 Florianópolis era uma pequena cidade que abrigava o mundo administrativo do estado. Conviviam os funcionários públicos, pescadores, pequenos produtores, alguns engenhos de farinha. A vida urbana se concentrava na região da matriz e do mercado, e as regiões praieiras era totalmente rurais. Mas, os anos 80 trouxeram uma novidade em todo o país. A ditadura se esfacelou e o Brasil rural começou a migrar. Desde o campo emergiam as massas de gente pobre, expulsas da terra por não serem proprietárias. Sem trabalho nas cidades do interior, sem terra e sem esperanças, o único farol visível eram as capitais ou as grandes cidades.

A cidade de Florianópolis começou a receber essas levas de migrantes a partir de 1986. Na época, o prefeito era Edson Andrino, primeiro prefeito eleito depois da ditadura militar. Era do PMDB, portanto dentro do escopo progressista. Nativo da ilha, Andrino mostrava preocupação com as famílias que chegavam sem qualquer apoio. Por conta disso, quando surgiu - a partir de uma proposta do padre Wilson Groh - a ideia de fundar um Centro de Apoio ao Migrante, a prefeitura decidiu apoiar. Naqueles dias e até o ano de 1989, chegavam na ilha, de 10 a 15 famílias por dia. Era uma avalanche. A cidade estava despreparada para tanta movimentação. E foi diante desse fenômeno humano que nasceu o Caprom (Centro de Apoio e Promoção do Migrante), uma iniciativa do então jovem padre Wilson Groh e da irmã Ivone Perassa. Com um pequeno grupo e contando com ajuda da prefeitura, eles montaram uma estrutura para receber essa famílias que aportavam na ilha sem nada mais do que a vontade de trabalhar e participar do sonho do progresso.

Nos anos de 87 e 88 a cara de Florianópolis mudou. De cidade provinciana, com pacatos funcionários públicos, passou a uma ebulição de luta pela terra. Com a chegada de centenas de novas famílias era preciso garantir espaço de moradia. Mas, já naqueles dias, o aluguel era proibitivo para os mais empobrecidos. E, organizados, eles foram ocupando espaços na beira das estradas ou em vazios urbanos. Algumas dessas ocupações fizeram história como a do antigo Pasto do Gado (hoje, Chico Mendes), onde mais de 200 famílias levantaram barracos de lona e insistiram em garantir ali, a sua morada. Também foi nesse período que nasceram as ocupações da Ilha Continente, Santa Terezinha, a beira da Via Expressa e outras mais. Em dois anos de migração vertiginosa, a cidade contabilizou 12 comunidades de ocupação. E todo mundo fazia a luta pelo espaço onde morar, e pela estrutura do lugar.

Foi nessa conjuntura que em 1988 aconteceram as eleições municipais. A direita, representada pelos então PDS e PFL, há muito vinha se articulando para dar outra caracterização para a cidade. Aquele número exacerbado de "gente pobre" que chegava não era visto com bons olhos. Havia a perspectiva de alavancar o "progresso" via indústria do turismo. O candidato desse grupo era o ex-prefeito biônico da época da ditadura, Esperidião Amin, que apontava no topo de uma campanha denominada de "Florianópolis vale a pena", assumida também pela elite local. Amin venceu as eleições com 48,2% dos votos, e com ele iniciava-se o "leilão" que iria descaracterizar as velhas comunidades do interior da ilha, a partir daí transformadas em paisagens especuladas. E começava também um ano de grandes lutas do movimento popular.

1989 - as batalhas pelo direito de morar

Com a explosão imobiliária exacerbada pelas campanhas nacionais que mostravam Florianópolis como um paraíso, também mudou a vida do povo nativo que até então vivia pacatamente à beira-mar. Atraídos para as armadilhas da "vida moderna" eles foram vendendo as terras, que aumentavam de valor. Por que morar num casa próxima ao mar, que dava tanto trabalho para cuidar, se era possível viver num apartamento acarpetado e com ar condicionado? O mundo moderno os aguardava. E, assim, onde antes pastavam as vacas e rodava a mó do moinho foram crescendo os hotéis, os condomínios, os prédios.

No que diz respeito aos migrantes, aqueles que chegavam com muito dinheiro para consumir os melhores lugares da ilha eram muito bem-vindos. Mas, os que aqui chegavam em busca de melhoria de vida, foram sendo rechaçados. Em vez de um grupo de acolhimento, como era o Caprom, o que se tentava era mandar de volta os pobres. E os que já tinham chegado desde 85 e amargavam as ocupações, esses haveriam de pagar o preço mais alto por querer compartilhar desse lugar que a propaganda alardeava como uma cidade que "valia a pena".

Então, quando Amin começa seu governo em janeiro de 1989 Florianópolis tinha 12 comunidades de ocupação, envolvendo 783 famílias, somando quase quatro mil pessoas. Sem opção de moradia, essas famílias de migrantes tinham armados seus barracos na Via Expressa, em áreas do continente e em alguns morros, tudo próximo ao centro da cidade. Como famílias pobres, todos tinham empregos que se interconectavam com a vida no centro: papeleiros, carpinteiros, pedreiros, faxineiras, garçons, empregadas domésticas, empregados do comércio. E foi assim que Florianópolis conheceu as primeiras grandes levas de luta pela terra da pós-ditadura. A derrubada dos barracos na Via Expressa, com as máquinas destruindo os poucos pertences das pessoas foi um dos momentos mais tristes e marcantes dessa batalha. As demais ocupações resistiam e faziam luta. Ocupavam a prefeitura, a Câmara de Vereadores, as ruas. Nas reuniões realizadas com o prefeito, as famílias eram obrigadas a ouvir a indefectível pergunta que Amin fazia, para desqualificar os manifestantes: "Tu és de onde, mesmo?". Já era o germe de todo o preconceito que a cidade foi criando com relação aos "de fora". Mas, que fique claro, os de fora sem dinheiro.   Aquele foi um tempo de grande efervescência e visibilidade do caráter excludente desse novo modelo de cidade. No mês de julho de 1989 a cidade viveria a I Romaria dos Sem-Teto, uma caminhada história que reuniu centenas de pessoas na luta por moradia e vida digna.

Anos 90 - conquistas

Com toda a explosão das lutas que brotavam das comunidades, a prefeitura não teve outra saída a não ser ir legalizando esses espaços que tinham sido criados naqueles anos de batalha. O Caprom rompeu de vez com o executivo e desapareceu. Já não havia migrantes para acolher. Era tempo de organizar a luta. Assim, seus integrantes fundaram outra instituição, o Centro de Educação e Evangelização Popular, também comandado pelo padre Vilson e a irmã Ivone, cujo objetivo maior era auxiliar as comunidades recém-nascidas a garantirem as conquistas e avançarem na organização. Então, paralelo ao processo de regularização das terras e moradias, havia que organizar compras coletivas (eram tempos de inflação alta), hortas comunitárias, padarias comunitárias, a educação das crianças. 

Assim foram se fortalecendo e se consolidando as comunidades outrora de ocupação. E é bom que se diga, para que não venham os mentirosos de plantão a disseminar enganos. Todos eles pagaram por suas casas e terrenos. Nada foi de mão beijada. Nunca é. Além de terem sido pagos em dinheiro, seus espaços de vida tiveram de ser conquistados à custa de muito sacrifício. Foram anos e anos sob barracos, enfrentando a polícia e o terror do despejo. Hoje, a cidade já incorporou essas comunidades, mas naqueles dias, o discursos sobre os "de fora", os "marginais", os "favelados" era exatamente igual ao que se vê na imprensa atual, no que diz respeito às novas comunidades que ocupação que começam a nascer.

2014 - esgotamento do leilão

Durante todos esses anos a cidade de Florianópolis foi submetida a um festim imobiliário. Praias foram ocupadas, terras foram griladas por gente poderosa, prédios se ergueram como espigões. O turismo se firmou como "a" indústria local. E, nesse crescimento vertiginoso, as gentes empobrecidas ficaram para trás. Cada vez mais longe, nas periferias, ou nos morros, que também cresceram. Nos dois mandatos de Dário Berguer esse processo se exacerbou e, agora, com César Júnior chegou ao seu auge com a aprovação de um novo Plano Diretor, o qual não respeitou as longas discussões feitas pelas comunidades, que exigiam outro modelo de cidade.

Aprovado pela maioria dos vereadores - três votos contrários - o plano aponta para uma cidade ainda mais verticalizada, com previsão de até hum milhão e 200 mil habitantes. E tudo isso sem levar em consideração que esse espaço é uma ilha, sem mobilidade e sem capacidade energética  - de luz e água - para suportar uma carga tão grande de gente num mesmo lugar. O plano foi atropelado pelo prefeito e pelos vereadores, sem levar em conta o desejo da população, mas dentro dos planos dos grandes empresários locais.

O que ninguém imaginava era que no exato momento em que a elite política e empresarial aprovava - ao arrepio da lei e com violência policial - um novo plano de expansão exponencial da cidade (sempre mirando os ricos), as gentes empobrecidas iriam assomar com uma ação concreta de rebeldia contra a ganância e transformação da terra em mercadoria de luxo. Pois foi o que aconteceu.

O que era um pequeno número de famílias na calorenta noite de 16 de dezembro - 60 apenas - em pouco tempo passou dos 100. E com o andar dos dias, mais e mais gente foi chegando. Aqueles barracos fincados na estrada de Canasvieiras eram a chaga viva da exclusão dos novos migrantes que foram chegando no final dos 90 e durante todo o início do século XXI. Confinados aos barracos das periferias, pagando altos preços pelos aluguéis, esses trabalhadores decidiram que era hora de pressionar o governo para fazer valer a Constituição. Afinal, morar é um direito.

A terra escolhida foi um terreno da União, terras de marinha, devolutas. Mas, que, no melhor estilo da velha grilagem, já estava cercada. Corria a informação de que ali, uma imensa propriedade de 900 hectares, seria construído um clube de golfe. Há que lembrar que um hectare equivale a 10 mil metros quadrados. Novecentos é terra que não acaba mais. O proprietário em questão é Artêmio Paludo, ex-deputado pela antiga ARENA e depois pelo PDS, e um dos donos da empresa Seara Alimentos, uma das maiores indústria na área em Santa Catarina. No decorrer do processo de discussão sobre o terreno - foi uma fazenda de camarão, do dito proprietário, e faliu - o ex-deputado só conseguiu comprovar através de escrituras nove dos 900 hectares. Ainda assim, a Secretaria do Patrimônio da União está colocando em dúvida essas escrituras, alegando que a terra é terreno de marinha.

No dia da caminhada que atravessou a Beira-Mar as famílias estavam indo para uma reunião de conciliação. Como estão questionando na Justiça a posse da área, que é da União, ele apresentaram a proposta de ficar no acampamento por pelo menos um ano, até que a Justiça se manifeste sobre de quem é a propriedade. Mas, os advogados de Paludo, mesmo com escrituras de apenas 1% da área, insistiram na retirada imediata das famílias. O coordenador da conciliação não quis discutir o debate sobre se a propriedade é legal ou não. Era uma tentativa de resolver o conflito entre Paludo e as famílias. Então, o mérito mesmo da questão ainda está em outro fórum e segue sendo questionado. Ainda assim, as famílias aceitaram a proposta da conciliador, de sair da área no mês de abril. Acreditam que até lá possa haver algum fato novo sobre o mérito. Para os que ali estão lutando por reforma agrária popular, aquela terra é da União e eles devem manter firme a luta para que seja realidade o sonho que vem sendo acalentado nas noites calorosas desse verão: tornar o espaço da ocupação uma agrovila, com produção orgânica, comida boa para a mesa não só dos que ali vivem, mas dos demais moradores da cidade.

Como a área é um latifúndio urbano improdutivo, as famílias acreditam que a Justiça será feita. Segundo a Constituição, uma terra que não cumpre sua função social é passível de desapropriação. A terra está parada e é da União, logo, as chances são boas. E, caso vençam a peleia, os moradores que hoje estão sob os barracos poderão pagar pela terra e Construir sua agrovila. Nada será de graça, como insistem algumas bocas alugadas. O que vai acontecer é as famílias pagarão um preço justo, dentro das suas condições. A terra não é coisa para ser vendida como um bem suntuoso. Ela é direito das gentes.


Assim, as 750 famílias da Ocupação Amarildo vão colocando em questão o tema da terra, num momento crucial para a cidade. A batalha pelo Plano Diretor ainda não acabou e os novos tempos podem reservar muitas surpresas.      

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Isaltina



Rememorando o passado

1894. Uruguaiana. Primeira e única cidade do Rio Grande criada pela revolução farroupilha. Fronteira com Argentina e Uruguai, espaço de amplos horizontes, reduto de gente acostumada às duras lides do campo. Numa de suas ruas, perto do rio, viviam Isaltina e José Antônio, com seus seis filhos. Isaltina era “pelo duro”, mulher nascida na terra, possivelmente com sangue índio. Casara porque era assim que as coisas eram. Mas, o marido revelava-se um homem de gênio ruim, e ela não suportava mais. Não era mulher de aguentar desaforo. Tinha fogo nas ventas e ternura no olhar. Haveria de fazer bastar. 

Assim, decidida a não mais aturar a violência e a ruindade, um dia ela fez assomar a valentia que tinha guardado e mandou o marido embora de casa. Ele a mirou, espantado. Não a reconhecia. Mas aquela faísca nos olhos dizia que o melhor era ele se arrancar. Na pequena cidade, uma mulher descasada não seria bem vista, mas Isaltina não se importou. Ela daria conta. Não precisava de homem para se garantir. Juntou as poucas tralhas num balaio de vime, segurou a fieira de crianças e marchou para  a casa da mãe. Ela iria cuidar dos filhos da forma que pudesse. 

Cabeça erguida e peito cerrado ela se mudou para os fundos da casa dos pais, onde se aninhou com a gurizada. Nunca reclamou da vida e logo começou a costurar para fora, buscando assim o sustento dos bacorinhos. No começo a olhavam de revés, mas, depois, foram acostumando com a “separada”. E ela trabalhava dia e noite, batendo os pés na rampa que fazia a velha máquina funcionar. Difícil era o dia que alguém a encontrava cabisbaixa ou com ares de tristeza. Sempre com um riso nos lábios, ela cantava milongas em castelhano. Criou todos os filhos, saudáveis e trabalhadores. Um deles veio a ser meu avô. 

Soube dessa linda história nesse último natal, quando a casa de meu pai foi palco de uma “roda dos anciãos”. Minhas tias Wilma e Teresa, meu pai e minha tia Dalva jogavam conversa fora na mesa da cozinha, falando de quando eram crianças, lá pelo início do século. E eu, que amo histórias, ia puxando o fio das lembranças, para conhecer as origens dos meus ancestrais. Penso que cada um deles é parte daquilo que faz a gente ser quem é. Foi assim, nessas conversas, que também descobri meu sangue charrua, originário de uma trisavó que apareceu em Itaqui fugida da batalha de Salsipuedes, na qual os Charrua foram traídos e praticamente exterminados. 

Por isso, gosto de vivenciar esse encontro com os mais velhos, para sondar o passado longínquo, me buscar. E então, de inopino, me aparece essa Isaltina, a qual imagino com os cabelos negros, compridos, os olhos de jabuticaba, o corpo franzino, mas teso.  Uma mulher inusitada, naqueles dias, e num lugar tão conservador como a então pequena cidade de Uruguaiana, nos confins do nada.  Essa Isaltina Silva Tavares que ousou dizer basta a um homem ruim e trilhou outro caminho, segurando ela mesma os tentos de sua existência. Nenhuma concessão. 

Tomada de emoção por essa desconhecida bisavó, típica mulher aguerrida dos descampados orientais, eu agora a mantenho no altar dos meus afetos. Tal qual ela, também tenho o costume de trabalhar cantando e me bateu a louca esperança de ter herdado dela, bem mais do que isso. Agora, quando sopra o vento, gosto de ir para a varanda, a chimarrear com sua lembrança. Isaltina, a mulher dos olhos de fogo, pequenina e valente. E sinto que ela se achega e me sopra ao ouvido as canções castelhanas... “desde la banda oriental, se viene el minuano, fuerte, fuerte, fuerte...”