Foto: Rubens Lopes
No dia sete de fevereiro,
sob um sol escaldante, mais de mil pessoas caminharam desde o trapiche em
frente ao Koxixos, até o Fórum da capital. Trajeto todo realizado no âmbito de
um dos espaços mais caros da cidade: a Beira Mar. As gentes que marchavam eram
moradoras da Ocupação Amarildo de Souza - nascida em 16 de dezembro de 2013,
nas margens da estrada que vai para a praia de Canasvieiras - mais os
apoiadores, estudantes, sindicalistas, militantes sociais. Carregavam faixas,
nas quais expunham suas reivindicações - terra, trabalho e teto. Dos grandes
prédios da Beira Mar, a elite espiava, entre assustada e perplexa. Havia muito
tempo que não via mais esse tipo de "demanda" por ali. No geral, as
questões envolvendo terra em Florianópolis, desde há anos estão circunscritas a
lutas pontuais, tais como a da chamada "Favela do Siri", nos Ingleses,
ou a recente ocupação Palmares, na Trindade, sempre tratadas como casos
excepcionais, sem maiores repercussões na mídia vinculada ao poder.
Então, o que faz da
Ocupação Amarildo um elemento bem mais perturbador, capaz de atrair uma
violenta campanha de desqualificação e repúdio por parte das velhas bocas
alugadas da mídia? Seria o fato de ali estarem hoje mais de 700 famílias,
unidas num sonho semelhante? Seria porque estão em terreno de gente muito
graúda? Ou seria porque a cidade definitivamente entra num outro ponto de
viragem no que diz respeito ao tema da terra? Para responder essas questões
temos de voltar na história...
1985 - ondas de migração
Até o final dos anos 70
Florianópolis era uma pequena cidade que abrigava o mundo administrativo do
estado. Conviviam os funcionários públicos, pescadores, pequenos produtores,
alguns engenhos de farinha. A vida urbana se concentrava na região da matriz e
do mercado, e as regiões praieiras era totalmente rurais. Mas, os anos 80
trouxeram uma novidade em todo o país. A ditadura se esfacelou e o Brasil rural
começou a migrar. Desde o campo emergiam as massas de gente pobre, expulsas da
terra por não serem proprietárias. Sem trabalho nas cidades do interior, sem
terra e sem esperanças, o único farol visível eram as capitais ou as grandes
cidades.
A cidade de Florianópolis
começou a receber essas levas de migrantes a partir de 1986. Na época, o
prefeito era Edson Andrino, primeiro prefeito eleito depois da ditadura
militar. Era do PMDB, portanto dentro do escopo progressista. Nativo da ilha,
Andrino mostrava preocupação com as famílias que chegavam sem qualquer apoio.
Por conta disso, quando surgiu - a partir de uma proposta do padre Wilson Groh
- a ideia de fundar um Centro de Apoio ao Migrante, a prefeitura decidiu
apoiar. Naqueles dias e até o ano de 1989, chegavam na ilha, de 10 a 15
famílias por dia. Era uma avalanche. A cidade estava despreparada para tanta
movimentação. E foi diante desse fenômeno humano que nasceu o Caprom (Centro de
Apoio e Promoção do Migrante), uma iniciativa do então jovem padre Wilson Groh
e da irmã Ivone Perassa. Com um pequeno grupo e contando com ajuda da
prefeitura, eles montaram uma estrutura para receber essa famílias que
aportavam na ilha sem nada mais do que a vontade de trabalhar e participar do
sonho do progresso.
Nos anos de 87 e 88 a
cara de Florianópolis mudou. De cidade provinciana, com pacatos funcionários
públicos, passou a uma ebulição de luta pela terra. Com a chegada de centenas
de novas famílias era preciso garantir espaço de moradia. Mas, já naqueles
dias, o aluguel era proibitivo para os mais empobrecidos. E, organizados, eles
foram ocupando espaços na beira das estradas ou em vazios urbanos. Algumas
dessas ocupações fizeram história como a do antigo Pasto do Gado (hoje, Chico
Mendes), onde mais de 200 famílias levantaram barracos de lona e insistiram em
garantir ali, a sua morada. Também foi nesse período que nasceram as ocupações
da Ilha Continente, Santa Terezinha, a beira da Via Expressa e outras mais. Em
dois anos de migração vertiginosa, a cidade contabilizou 12 comunidades de
ocupação. E todo mundo fazia a luta pelo espaço onde morar, e pela estrutura do
lugar.
Foi nessa conjuntura que
em 1988 aconteceram as eleições municipais. A direita, representada pelos então
PDS e PFL, há muito vinha se articulando para dar outra caracterização para a
cidade. Aquele número exacerbado de "gente pobre" que chegava não era
visto com bons olhos. Havia a perspectiva de alavancar o "progresso"
via indústria do turismo. O candidato desse grupo era o ex-prefeito biônico da
época da ditadura, Esperidião Amin, que apontava no topo de uma campanha denominada
de "Florianópolis vale a pena", assumida também pela elite local. Amin
venceu as eleições com 48,2% dos votos, e com ele iniciava-se o
"leilão" que iria descaracterizar as velhas comunidades do interior
da ilha, a partir daí transformadas em paisagens especuladas. E começava também
um ano de grandes lutas do movimento popular.
1989 - as batalhas pelo direito de morar
Com a explosão
imobiliária exacerbada pelas campanhas nacionais que mostravam Florianópolis
como um paraíso, também mudou a vida do povo nativo que até então vivia
pacatamente à beira-mar. Atraídos para as armadilhas da "vida
moderna" eles foram vendendo as terras, que aumentavam de valor. Por que
morar num casa próxima ao mar, que dava tanto trabalho para cuidar, se era
possível viver num apartamento acarpetado e com ar condicionado? O mundo
moderno os aguardava. E, assim, onde antes pastavam as vacas e rodava a mó do
moinho foram crescendo os hotéis, os condomínios, os prédios.
No que diz respeito aos
migrantes, aqueles que chegavam com muito dinheiro para consumir os melhores
lugares da ilha eram muito bem-vindos. Mas, os que aqui chegavam em busca de
melhoria de vida, foram sendo rechaçados. Em vez de um grupo de acolhimento,
como era o Caprom, o que se tentava era mandar de volta os pobres. E os que já
tinham chegado desde 85 e amargavam as ocupações, esses haveriam de pagar o
preço mais alto por querer compartilhar desse lugar que a propaganda alardeava como
uma cidade que "valia a pena".
Então, quando Amin começa
seu governo em janeiro de 1989 Florianópolis tinha 12 comunidades de ocupação,
envolvendo 783 famílias, somando quase quatro mil pessoas. Sem opção de
moradia, essas famílias de migrantes tinham armados seus barracos na Via
Expressa, em áreas do continente e em alguns morros, tudo próximo ao centro da
cidade. Como famílias pobres, todos tinham empregos que se interconectavam com
a vida no centro: papeleiros, carpinteiros, pedreiros, faxineiras, garçons,
empregadas domésticas, empregados do comércio. E foi assim que Florianópolis
conheceu as primeiras grandes levas de luta pela terra da pós-ditadura. A
derrubada dos barracos na Via Expressa, com as máquinas destruindo os poucos
pertences das pessoas foi um dos momentos mais tristes e marcantes dessa
batalha. As demais ocupações resistiam e faziam luta. Ocupavam a prefeitura, a
Câmara de Vereadores, as ruas. Nas reuniões realizadas com o prefeito, as
famílias eram obrigadas a ouvir a indefectível pergunta que Amin fazia, para
desqualificar os manifestantes: "Tu és de onde, mesmo?". Já era o
germe de todo o preconceito que a cidade foi criando com relação aos "de
fora". Mas, que fique claro, os de fora sem dinheiro. Aquele foi um tempo de grande efervescência
e visibilidade do caráter excludente desse novo modelo de cidade. No mês de julho
de 1989 a cidade viveria a I Romaria dos Sem-Teto, uma caminhada história que
reuniu centenas de pessoas na luta por moradia e vida digna.
Anos 90 - conquistas
Com toda a explosão das
lutas que brotavam das comunidades, a prefeitura não teve outra saída a não ser
ir legalizando esses espaços que tinham sido criados naqueles anos de batalha.
O Caprom rompeu de vez com o executivo e desapareceu. Já não havia migrantes
para acolher. Era tempo de organizar a luta. Assim, seus integrantes fundaram
outra instituição, o Centro de Educação e Evangelização Popular, também
comandado pelo padre Vilson e a irmã Ivone, cujo objetivo maior era auxiliar as
comunidades recém-nascidas a garantirem as conquistas e avançarem na
organização. Então, paralelo ao processo de regularização das terras e
moradias, havia que organizar compras coletivas (eram tempos de inflação alta),
hortas comunitárias, padarias comunitárias, a educação das crianças.
Assim foram se
fortalecendo e se consolidando as comunidades outrora de ocupação. E é bom que
se diga, para que não venham os mentirosos de plantão a disseminar enganos.
Todos eles pagaram por suas casas e terrenos. Nada foi de mão beijada. Nunca é.
Além de terem sido pagos em dinheiro, seus espaços de vida tiveram de ser
conquistados à custa de muito sacrifício. Foram anos e anos sob barracos,
enfrentando a polícia e o terror do despejo. Hoje, a cidade já incorporou essas
comunidades, mas naqueles dias, o discursos sobre os "de fora", os
"marginais", os "favelados" era exatamente igual ao que se
vê na imprensa atual, no que diz respeito às novas comunidades que ocupação que
começam a nascer.
2014 - esgotamento do leilão
Durante todos esses anos
a cidade de Florianópolis foi submetida a um festim imobiliário. Praias foram
ocupadas, terras foram griladas por gente poderosa, prédios se ergueram como
espigões. O turismo se firmou como "a" indústria local. E, nesse
crescimento vertiginoso, as gentes empobrecidas ficaram para trás. Cada vez
mais longe, nas periferias, ou nos morros, que também cresceram. Nos dois
mandatos de Dário Berguer esse processo se exacerbou e, agora, com César Júnior
chegou ao seu auge com a aprovação de um novo Plano Diretor, o qual não
respeitou as longas discussões feitas pelas comunidades, que exigiam outro
modelo de cidade.
Aprovado pela maioria dos
vereadores - três votos contrários - o plano aponta para uma cidade ainda mais
verticalizada, com previsão de até hum milhão e 200 mil habitantes. E tudo isso
sem levar em consideração que esse espaço é uma ilha, sem mobilidade e sem
capacidade energética - de luz e água -
para suportar uma carga tão grande de gente num mesmo lugar. O plano foi
atropelado pelo prefeito e pelos vereadores, sem levar em conta o desejo da
população, mas dentro dos planos dos grandes empresários locais.
O que ninguém imaginava
era que no exato momento em que a elite política e empresarial aprovava - ao
arrepio da lei e com violência policial - um novo plano de expansão exponencial
da cidade (sempre mirando os ricos), as gentes empobrecidas iriam assomar com
uma ação concreta de rebeldia contra a ganância e transformação da terra em
mercadoria de luxo. Pois foi o que aconteceu.
O que era um pequeno
número de famílias na calorenta noite de 16 de dezembro - 60 apenas - em pouco
tempo passou dos 100. E com o andar dos dias, mais e mais gente foi chegando.
Aqueles barracos fincados na estrada de Canasvieiras eram a chaga viva da
exclusão dos novos migrantes que foram chegando no final dos 90 e durante todo
o início do século XXI. Confinados aos barracos das periferias, pagando altos
preços pelos aluguéis, esses trabalhadores decidiram que era hora de pressionar
o governo para fazer valer a Constituição. Afinal, morar é um direito.
A terra escolhida foi um
terreno da União, terras de marinha, devolutas. Mas, que, no melhor estilo da
velha grilagem, já estava cercada. Corria a informação de que ali, uma imensa
propriedade de 900 hectares, seria construído um clube de golfe. Há que lembrar
que um hectare equivale a 10 mil metros quadrados. Novecentos é terra que não
acaba mais. O proprietário em questão é Artêmio Paludo, ex-deputado pela antiga
ARENA e depois pelo PDS, e um dos donos da empresa Seara Alimentos, uma das
maiores indústria na área em Santa Catarina. No decorrer do processo de
discussão sobre o terreno - foi uma fazenda de camarão, do dito proprietário, e
faliu - o ex-deputado só conseguiu comprovar através de escrituras nove dos 900
hectares. Ainda assim, a Secretaria do Patrimônio da União está colocando em
dúvida essas escrituras, alegando que a terra é terreno de marinha.
No dia da caminhada que
atravessou a Beira-Mar as famílias estavam indo para uma reunião de
conciliação. Como estão questionando na Justiça a posse da área, que é da
União, ele apresentaram a proposta de ficar no acampamento por pelo menos um
ano, até que a Justiça se manifeste sobre de quem é a propriedade. Mas, os
advogados de Paludo, mesmo com escrituras de apenas 1% da área, insistiram na retirada
imediata das famílias. O coordenador da conciliação não quis discutir o debate
sobre se a propriedade é legal ou não. Era uma tentativa de resolver o conflito
entre Paludo e as famílias. Então, o mérito mesmo da questão ainda está em
outro fórum e segue sendo questionado. Ainda assim, as famílias aceitaram a
proposta da conciliador, de sair da área no mês de abril. Acreditam que até lá
possa haver algum fato novo sobre o mérito. Para os que ali estão lutando por
reforma agrária popular, aquela terra é da União e eles devem manter firme a
luta para que seja realidade o sonho que vem sendo acalentado nas noites
calorosas desse verão: tornar o espaço da ocupação uma agrovila, com produção
orgânica, comida boa para a mesa não só dos que ali vivem, mas dos demais
moradores da cidade.
Como a área é um latifúndio
urbano improdutivo, as famílias acreditam que a Justiça será feita. Segundo a
Constituição, uma terra que não cumpre sua função social é passível de desapropriação.
A terra está parada e é da União, logo, as chances são boas. E, caso vençam a
peleia, os moradores que hoje estão sob os barracos poderão pagar pela terra e
Construir sua agrovila. Nada será de graça, como insistem algumas bocas
alugadas. O que vai acontecer é as famílias pagarão um preço justo, dentro das
suas condições. A terra não é coisa para ser vendida como um bem suntuoso. Ela
é direito das gentes.
Assim, as 750 famílias da
Ocupação Amarildo vão colocando em questão o tema da terra, num momento crucial
para a cidade. A batalha pelo Plano Diretor ainda não acabou e os novos tempos
podem reservar muitas surpresas.
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