Alzheimer/Velhice

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O massacre dos 70/30


ou sobre como os trabalhadores deixaram o medo e começaram a andar

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) que hoje está em vigor foi aprovada em 1996, diante de um movimento social perplexo pela ação do então senador Darcy Ribeiro, que atropelando um debate democrático de anos, apresentou um substitutivo e conseguiu aprova-lo, apesar dos fortes protestos que aconteceram em todo o território nacional. Na nova lei, um dos pontos que configurou tremenda derrota para os trabalhadores foi justamente o que definiu a superioridade dos professores que diz respeito à administração das universidades. Apenas eles poderiam se candidatar à reitoria e a escolha deveria ser feita de forma indireta, pelo Conselho Universitário, respeitando uma porcentagem de 70/30. Ou seja, 70% do peso dos votos ficaria na mão dos professores, enquanto os 30% restantes seriam divididos entre técnicos e estudantes. Com essa proposta, Darcy reforçava a ideia de que os técnico-administrativos não tinham qualquer importância na vida universitária. 

O processo de construção da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação começou logo depois da aprovação da nova Constituição, com a apresentação de um projeto que era fruto de grandes debates públicos. Durante muitos anos, com mais força em 1989, as entidades ligadas à educação haviam discutido a proposta de LDB nos seus fóruns e tinham logrado incluir muitos pontos considerados importantes e progressistas. Justamente por isso, e por não terem uma correlação de forças favorável dentro do Congresso Nacional, que essas entidades – unidas no Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública - optaram por aceitar um consenso com os parlamentares, evitando assim confrontos que poderiam levar a perda dos avanços.

A Lei tramitou no Congresso Nacional desde 1990, passando pelas comissões e recebendo emendas. Apesar das muitas contribuições, o caráter progressista da lei foi mantido, graças ao esforço de parlamentares como Florestan Fernandes e Jorge Hage, seu primeiro relator. Quando afinal foi submetido à pauta do Congresso para votação, em 1991, o projeto tinha sido acrescentado de 1.263 emendas. A ofensiva conservadora protelou por mais tempo a votação, encaminhando o projeto de volta para as comissões. Aí acontecem novas eleições e mudam os deputados. Angela Amin passa a ser a relatora da Comissão de Educação no lugar de Jorge Hage. Naqueles dias chega a surgir um projeto substitutivo proposto por um deputado que era dono de uma rede privada de escolas. Um verdadeiro retrocesso. 

A reação do Fórum Nacional em Defesa Pública conseguiu reunir mais de 10 mil pessoas em Brasília e os protestos se multiplicaram por todo o país. A ação conseguiu paralisar o projeto por dois anos. Durante esse tempo novas emendas foram apresentadas e novos relatórios foram sendo produzidos, sempre pendendo para o lado conservador. Em 1992 o processo de negociação recomeçou com o debate sobre três substitutivos diferentes. O ponto central do debate era a batalha pelo fortalecimento do sistema público de educação, enquanto os conservadores buscavam privatizar. Davam-se batalhas gigantescas no interior do Congresso, com esse tema perpassando todo o processo. 

Quando todas as forças atuavam no debate das propostas apresentadas, surge, de maneira completamente inusitada, um projeto substitutivo, de autoria do então senador Darcy Ribeiro. O atropelo do novo substitutivo complicou a luta que vinha sendo feita pelo Fórum Nacional de Defesa da Escola Pública, pois, como vinha do senado, teria prioridade na votação, deixando o antigo projeto – construído coletivamente à duras penas  -  em desvantagem. Começou então uma batalha regimental para ver qual o projeto seria colocado em votação primeiro.

A ação de Darcy Ribeiro dividiu as forças progressistas e acabou polarizando o debate em torno de dois projetos. Um que era o da Câmara – com todas as suas idas e vindas (e alguma excrecências), e outro que era o dele. A manobra realizada por Darcy Ribeiro colocou em polvorosa o movimento pela educação outra vez. Houve protestos e lutas. Mas, ainda assim, o projeto de Darcy seguiu sendo o que balizaria a discussão, e o que é pior, incorporando novas emendas feitas pelo governo, via MEC. Era a descaracterização total do trabalho coletivo e democrático que vinha sendo feito desde 1989. E assim, a LDB é aprovada em dezembro de 1996, considerando o projeto individual de Darcy Ribeiro. Foi uma grande derrota para o movimento social.

As eleições e o peso dos trabalhadores

Como havia o entendimento de que a lei aprovada era fruto de um golpe, no campo da educação a luta continuou, visando garantir mudanças que representassem novas correlações de forças que foram se formando no legislativo. De qualquer forma, os tempos neoliberais de FHC foram difíceis para a luta popular como um todo, pois havia muitas frentes para serem atacadas, entre elas a da privatização, o que levou para segundo plano algumas questões mais pontuais. Ainda assim, no âmbito dos trabalhadores das universidades esse ponto específico da LDB, que dá aos professores todos os poderes, sempre foi discutido e combatido. Tanto que em muitas instituições federais aconteceram protestos significativos contra essa ideia. Na UFSC, por exemplo, o movimento chegou a construir uma candidatura estudantil à reitoria, buscando dar visibilidade ao completo absurdo que era deixar de fora dos fóruns de decisão àqueles que são a razão de ser da universidade. No campo dos técnicos-administrativos essa tática nunca foi usada, mas o debate pelo direito de estar em igualdade de condições nos fóruns sempre se deu. 

Com o processo de luta política, as universidades conseguiram criar mecanismos de consulta à comunidade – feita através de eleições diretas – organizada pelas entidades das três categorias, docentes, técnicos e estudantes. Havia o acordo de que o nome do candidato eleito de forma paritária, ou seja, com o peso do voto não configurado nos 70/30, mas dividido em igual medida entre as três categorias, seria o enviado ao MEC pelo Conselho Universitário, esse sim configurado dentro dos parâmetros do 70/30.

Essa maneira engenhosa de escapar do reacionarismo da lei acabou sendo acolhida por todas as universidades, com eventuais casos de não cumprimento do acordo. Mas, apesar desse acerto, a batalha pela mudança, na lei, dessa regra excludente e elitista seguiu seu curso. Para os trabalhadores e estudantes, não bastava garantir o direito paritário ao voto numa eleição para reitor. Havia que garantir essa paridade também nos fóruns de decisão. Espaços como o Conselho Universitário, Colegiados de Curso e Departamentos cumprem a lógica do 70/30. Ou seja, nas instâncias cotidianas de decisão da vida universitária, técnicos e estudantes seguem como seres de segunda categoria e sem qualquer possibilidade de garantir suas demandas. Mesmo em eventuais alianças entre os dois, não conseguem superar a avassaladora maioria docente.

Por conta disso, ao longo dos anos seguiram sendo apresentadas emendas à LDB visando mudar esse estado de coisa. Mas, dentro do Congresso Nacional esse tipo de demanda não caminha. Projetos mofam nas gavetas e os trabalhadores precisam garantir, na luta cotidiana, esses espaços de poder. O que não é fácil.

Um exemplo da UFSC

Para entender como funciona o domínio dos professores na vida da universidade basta assistir uma reunião do Conselho Universitário. Nesse fórum, que, em última instância, decide a vida universitária, a conformação é de 70/30. Os técnicos têm apenas seis vagas, assim como os estudantes.  Entidades externas à UFSC têm quatro vagas e o restante é composto por professores. Ou seja, nem nos mais dourados sonhos os trabalhadores técnico-administrativos e os estudantes podem garantir suas demandas. A diferença é esmagadora.

Nessa terça-feira, dia 19 de agosto, a comunidade pode presenciar esse poder em ação. Em greve desde o dia 5, por conta de uma quebra de acordo por parte da reitoria, com uma pauta interna referente à jornada de trabalho, os representantes dos trabalhadores técnico-administrativos em educação (TAEs) apresentaram um pedido à presidente do CUn, que é também reitora da UFSC, Roselane Neckel, para que fosse incluído na pauta o tema da greve, visto que aquela presidência não havia pautado o assunto, mesmo que a universidade já estivesse há três semanas com seu funcionamento alterado. A greve dos TAEs têm garantido as portas abertas da universidade nos horários do meio dia e à noite, dando aos estudantes possibilidade de melhor atendimento. Tudo isso faz parte da luta por redução de jornada com ampliação de atendimento.

O que seguiu no egrégio conselho é a prova cabal da impossibilidade da democracia em condições de tamanha desigualdade representativa. Primeiro que a presidente do conselho usa o microfone ao seu bel prazer, fazendo defesas enquanto apresenta os pontos. É constrangedor. Mas, ao que parece, a maioria não liga. Assim, Roselane defendeu que não havia necessidade de o Conselho discutir o movimento dos técnicos e só depois colocou em discussão. Imediatamente um estudante pediu a palavra para defender a discussão do tema no Conselho. Roselane volta a falar, defendo que não. Paulo Pinheiro, diretor do CFH, defende que se dê espaço ao sindicato para uma manifestação, mas só no final da reunião e sem discussão do ponto. O diretor do CCJ, Luis Carlos Cacellier, inicia uma discussão jurídica sobre se os trabalhadores entraram com recurso junto ao CUn ou à reitoria, uma algaravia sem sentido que tem um único intuito: negar a palavra aos técnicos e impedir o debate.

A presidente do conselho, Roselane, põe em votação se os trabalhadores podem ou não dar os informes da greve. Apenas as representações dos TAEs e dos estudantes votam que sim. Os demais, professores, se negam a discutir a greve. Todos votam contra. Ou seja, um tema como a greve dos trabalhadores é olimpicamente ignorado pelos professores. Nenhuma chance de debate. O massacre da serra elétrica não seria tão contundente. Além de negarem a palavra aos trabalhadores, os membros docentes do conselho, ainda fazem questão de desconhecer o processo de luta que está em andamento na universidade.

Crescimento do conservadorismo

O exemplo acima é só um caso. Outros tantos poderiam ser apontados. O que dá conta da completa falta de democracia nos fóruns da universidade. Regra geral, mesmo os autores mais progressistas no debate sobre a universidade – majoritariamente professores – não falam do trabalho dos técnicos ou reconhecem a sua importância dentro da instituição. A universidade é dos professores, aos técnicos cabe o trabalho braçal e a invisibilidade. Tanto que foi preciso uma batalha e tanto para garantir que técnicos pudessem coordenar extensão ou pesquisa, mesmo que desde sempre esses trabalhadores tenham coordenado – na prática – esses trabalhos. E, ainda que hoje eles possam coordenar extensão e pesquisa, ficam alijados de editais que garantem recursos para projetos. É uma incoerência e uma demonstração inequívoca da “desimportância” desses trabalhadores diante dos fóruns da instituição.  

Pois não bastasse toda a batalha cotidiana que é preciso travar para se fazer ver como trabalhadores que, junto com os docentes, também são criadores do saber, agora os técnico-administrativos da UFSC estão diante de um novo ataque conservador por parte de um grupo de professores que iniciou uma campanha pela aplicação dos 70/30 no processo eleitoral que decide a administração central. Não querem mais a consulta feita de forma paritária. Querem que a decisão se dê por escolha majoritária dos professores. Ou seja, retiram dos TAEs e dos estudantes, o mínimo que têm de participação democrática na vida universitária, já que a eleição para reitor é o único espaço no qual existe uma participação paritária.

Esse é então o pano de fundo de toda a luta que hoje se trava na UFSC, que não é diferente das demais Instituições Federais de Ensino Superior. Um reavivamento do conservadorismo, um encolhimento da democracia, um retrocesso histórico. Tudo sendo feito no âmbito de uma administração que se elegeu com um discurso progressista, de mudança e diálogo. Reforça-se a ideia de que só os professores podem ser sujeitos da vida universitária, acirra-se a luta inter-classe, apequena-se a política.

E essa é uma batalha que está em curso. 

Um comentário:

  1. Preza Elaine, o panorama apresentado por você é o mesmo que vivenciamos aqui na Unb.
    Um processo declarado e intencional da maioria dos docentes em concentrar poder, desrespeitar acordos e desconsiderar nossa categoria como sujeitos sociais que são parte da universidade pública.
    Vamos fortalecer essa rede, não é fácil superar esse desafio, mas somos capazes. Conte comigo! Abs. Alessandra

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