As manifestações de junho, os protestos contra a Copa
Era 2003 e o então recém eleito presidente Luis Inácio iniciava o que ele chamava de “reforma da previdência”. Para os trabalhadores públicos, nada mais era do que a retirada de direitos, que haviam sido conquistados à custa de muita luta. E, para quem estava na direção de sindicatos à época, faltar com a crítica seria o mesmo que renegar toda uma história de luta. Afinal, em que “manual” revolucionário está a retirada de direitos? Mas, aqueles eram dias de muita esperança para boa parte da esquerda nacional. Assumira a presidência alguém que vinha das fileiras do Partido dos Trabalhadores e trazia uma bagagem significativa de luta trabalhista. Então, muita gente se calou. Lembro de uma das minhas primeiras intervenções contra a reforma, num encontro em que estava a senadora Ideli Salvatti, também recém eleita com mais de um milhão de votos em Santa Catarina. Argumentei que o que o governo estava planejando não era uma reforma, mas uma contrarreforma, pois, em vez de equiparar os direitos dos trabalhadores públicos e privados, fazia tirar direitos, fomentando ainda o ódio aos trabalhadores públicos, dizendo que eles tinham privilégios. A senadora imediatamente redarguiu, insinuando que eu estava ali fazendo o “jogo da direita”, criticando um governo que tinha a “melhor das intenções”.
Aqueles primeiros anos de governo petista foram turbulentos. Sabíamos que era difícil fazer a crítica sem fazer coro aos adversários e inimigos de classe, principalmente num momento em que a direita e parte da elite dominante - que nunca conseguiu “engolir” o ex-sindicalista - estavam em ataque cerrado, recém perdidas de seu controle da máquina pública. Corremos o risco de sermos etiquetados como “esquerdistas”, irresponsáveis, incapazes de compreender o momento histórico. É que, na verdade, tínhamos plena convicção de não estarmos fazendo “o jogo da direita”, mas cumprindo o decisivo papel de apontar os desvios do caminho. A crítica, mais do que legítima, é necessária.
Passados todos esses anos, seguimos apontando as contradições, os limites, os erros, não porque queiramos o retorno de nefastas lideranças que, no passado, dilapidaram o país, mas justamente porque precisamos de outro caminho para o Brasil e para a América Latina que não seja o das quase insuperáveis dependência, subdesenvolvimento e subserviência.
Da mesma forma a crítica aparece diante dos chamados governos “progressistas” que se elegeram na América Latina depois de 1998, começando com Chávez, na Venezuela, e depois com Evo Morales, na Bolívia, Rafael Correa, no Equador, Mujica, no Uruguai ou até mesmo Ortega, na Nicarágua. E, tal e qual diante dos governos de Luis Inácio e Dilma, aparecem os dedos apontando para as vozes críticas, como se elas estivessem no mesmo patamar dos lamentos suspeitosos da velha direita. São argumentos incomparáveis. A crítica desde a esquerda quer superar o modelo ainda em vigência, quer avançar para outro modelo de sociedade, seja ela socialista ou outro nome que venhamos a inventar – mas sempre fincada nos ideais de justiça, equidade, equilíbrio. Os lamentos da velha direita são algaravias de despeitados – no mais das vezes cínicos - que não aceitam perder qualquer parcela de poder. A crítica desde a esquerda é a tentativa de realizar análises da realidade objetiva e apresentar propostas possíveis para que se possa avançar no rumo de outro modo de organizar a vida, e não para dar passos atrás. Logo, não se trata de “esquerdismo”.
Quando Lenin usou esse termo para também criticar a ação de alguns adversários, estava se referindo a posturas muito particulares, de um determinado tempo e um determinada conjuntura. Falava ainda de um tipo de gente dita de esquerda, mas que não conseguia observar com clareza os limites da política praticada naqueles dia, diante de uma realidade objetiva que exigia a luta renhida em todos os campos, legais e ilegais. Falava de uma gente que, para ele, não parecia ter compromisso com a mudança real, fazendo uma crítica abstrata e idealizada. Não nos parece o caso da crítica que se faz desde parte da esquerda no Brasil, pelo menos a qual me somo.
É fato que muitas coisas avançaram dentro dos atuais governos progressistas da América Latina, e que esse avanço, como bem lembra Lenin, tem a ver com o fato de que quando uma sociedade está completamente contagiada pelo capitalismo, a saída, fatalmente tem de ser lenta. Afinal, há um número significativo de pessoas que acredita nas promessas do capitalismo e precisa ser conquistada. “Temos de trabalhar com o que nos legou o capitalismo”, ensina Lenin. Mas, isso não significa que esses governos não precisem avançar ainda mais, para além das reformas. Daí a importância da crítica.
Porque também é inegável que muitos dos pilares da dependência seguem inabaláveis. A opção pela exportação de matéria prima, a exploração desenfreada dos recursos naturais, a rendição diante das grandes empresas multinacionais, a aliança com o agronegócio, a desqualificação e a falta de diálogo com as populações indígenas, ou o não reconhecimento de minorias que precisam ser melhor compreendidas, ouvidas e contempladas nas suas demandas. Em linhas gerais, muito pouco se avançou na fuga do modelo de subdesenvolvimento que o centro do sistema definiu para as periferias. Mesma a Venezuela, que tanto tentou avançar, com Chávez, segue hoje bastante fragilizada, com a burguesia avançando mais e mais por dentro do governo, dominando ainda o setor financeiro, espaço estratégico.
Agora, no Brasil, na medida em que se aproximam as eleições presidenciais, os ânimos voltam a se acirrar. De novo, qualquer voz crítica é logo colocada de mãos dadas com a velha e nova direita. Isso é jogo de manipulação. É incapacidade política de lidar com o dissonante. É fragilidade dos que hoje estão no centro do poder, ou apenas má fé. É certo que nos momentos de embate, como foram as jornadas de junho e seguem sendo as lutas por um transporte de qualidade, por vezes pode acontecer uma certa confusão e até uma mistura, visto que as ruas são absolutamente democráticas, no sentido de que, nelas, todos cabem. E aí, não resta dúvida de que a direita se aproveita e soma com os críticos. Mas, se isso acontece, a responsabilidade não pode ser colocada sob as costas de quem tem sistematicamente feito a crítica no campo da esquerda. Afinal, se uma massa considerável de gente está gritando por transporte de qualidade, é porque não há transporte de qualidade e isso é responsabilidade do governo – seja municipal, estadual ou federal. Se o governo de esquerda, ou progressista ou social-democrata não está cumprindo suas promessas ou não está fazendo o trabalho direito, é fundamental que existam as vozes críticas para que se acerte o rumo, ou para que se possa notar onde está o furo. A crítica dos lutadores sociais, lideranças sindicais e velhos militantes de esquerda, insisto, não é a mesma da direita. Bem como as manifestações que acontecem nas ruas não são apenas de “mercenários americanos”.
Junto com os provocadores de sempre, os mercenários, os manifestantes a soldo da direita, também estão pessoas que, sem uma organização política institucionalizada, também têm suas demandas, suas reivindicações e suas mazelas a resolver, sem encontrar eco nos governantes. Bem como também saem às ruas militantes sociais organizados, gente de partidos políticos, com bandeiras históricas bem definidas. Há que se ter a delicadeza e a astúcia política de observar a realidade tal como ela se apresenta.
Dentre os descontentes, por exemplo, está uma parcela da população que precisa de cuidado. É a dos indígenas, para quem, por exemplo, todo esse universo de conceitos – direita, esquerda, mercenários, EUA, esquerdismo, etc... – não faz qualquer sentido. Eles caminham numa outra lógica, sob outro logos, outra episteme, com outras bandeiras e demandas, fruto de uma exclusão que perdura por séculos, quando não o genocídio e o massacre. E são povos que aqui no Brasil, no Equador, na Venezuela, na Colômbia, no Paraguai, têm sido olimpicamente ignorados nas suas reivindicações históricas ou até mesmo em demandas conjunturais, como é o caso da estrada que querem passar por dentro de um parque na Bolívia, para atender exigências do mercado. No caso do Brasil, vivemos cotidianamente a violência contra essa fatia da população que, por ser pequena, não pode ser ignorada. Pessoas estão morrendo, sendo assassinadas, massacradas. O governo não pode fechar os olhos a isso e precisa dialogar levando em conta a diferença de episteme. O que se vê é que o choque civilizacional acontecido em 1492 segue perpetuado nas relações diárias. O índio ainda é olhado por cima, como se fosse um ser de segunda classe. E isso ocorre também em segmentos importantes da esquerda latino-americana, que costumam, inclusive, desqualificar a luta indígena, atribuindo-lhe adjetivos como o “pachamamismo”, aludindo à defesa de Pacha Mama (a terra) feita pela maioria dos povos originários como uma coisa ridícula. É certo que existem grupos sectários, mas não é a maioria. A defesa da Pacha Mama está ligada ao conceito de equilíbrio que os povos originários tem, na relação com a natureza. Não é uma volta ao tempo das cavernas, é uma retomada dialética de conceitos que foram solapados pela opressão.
Assim que a necessária tarefa da crítica precisa ser preservada. E não deve ser levada como uma ofensa pessoal. Sabemos que os governos progressistas e sociais-democratas da América Latina estão cheios de boas intenções, mas isso não é suficiente no tabuleiro da política. Assim, cada um deles deveria ter a capacidade de ouvir a crítica daqueles que querem avançar para a construção de uma sociedade diferente. Todo o cidadão que critica precisa ser escutado desde o lugar onde formula sua crítica, porque assim fica mais fácil compreender a natureza da crítica.
Um bom exemplo é o que se vê na Venezuela. Quem são os que estão puxando os protestos e ocupando as ruas em maioria? Que classe social representam? Pois é fácil perceber que é a representação da elite venezuelana, perdida de seus privilégios. A esses “manifestantes” pode-se manifestar respeito, estão no seu direito. Mas há que se observar bem quais são as suas demandas. As reivindicações da maioria dos que protestam estão ligadas a continuidade da exploração, da miséria, da exclusão do pobre. Ou seja, são bem diferentes das demandas dos indígenas venezuelanos, por exemplo, que, desde seu lugar de secularmente ignorados, reivindicam mudanças e melhorias na vida.
Outro exemplo vem daqui, da nossa casa, o Brasil. Vivenciamos na última semana a tentativa de recuperação de um momento do passado, com a Marcha da Família, com Deus, contra o Comunismo. Movimento legítimo, de gente que pensa diferente. Mas, quem são essas pessoas, a quem representam? Fácil. Viúvos e viúvas do regime de exceção que tanto mal fez ao Brasil, playboys descabeçados, neonazistas, projetos de fascistas, ou seja, tudo o que representa o atraso, a violência, a exclusão. Logo, uma crítica muito diferente da que se faz exigindo direitos ou rompimentos com a dependência e a superexploração. Nós queremos seguir em frente, com liberdade, com soberania, com paz. Já os saudosistas da ditadura militar querem a barbárie, a falta de liberdade, a tortura, a exclusão. Nada em comum, portanto.
É fato que o senso comum, as pessoas que não têm condições de acessar mais informações além da que chega via TV, podem se confundir. Até porque a televisão é pura manipulação. Mas, não é por isso que devemos calar a boca e fingir que tudo está bem. Ou que, por isso, precisamos preservar o governo atual de críticas. Não. Não queremos a ditadura, nem os governos neoliberais passados. Mas, temos que apontar os equívocos, travar o embate e colocar nossas demandas que buscam caminhar para além do que aí está.
Também é fato que pode parecer bem mais fácil defender um estado de bem-estar social, com mais um pouco de direitos aqui e ali, uma melhoria aqui e ali. Mas, ainda assim, e a experiência europeia tem nos mostrado, fica um universo muito grande de excluídos. E como já dizia o comandante Guevara, "enquanto houver um injustiçado", temos de ser companheiros. Não podemos ser acusados de “aliados da direita” só porque sonhamos com um mundo diferente, para além do bem-estar apenas para alguns. Posso concordar que a proposta do sumak kausay dos indígenas equatorianos, ou o sumac camaña, dos aymara, ou a terra sem males, dos guarani, que propõe um modo de organizar a vida com equilíbrio na relação com a natureza, com equidade na relação humana e com a primazia da proposta comunitária pode não ser a melhor para todos, uma vez que não é fácil se descontaminar desse mundo de egoísmo, individualismo, medo e exclusão. Mas é com essa utopia indígena que eu, particularmente, sonho. E é em direção a isso que eu caminho.
Junto comigo, outros tantos... Vai daí que não posso me furtar a fazer permanentemente a critica do mundo que aí está. Com Dussel, entendo que a universalidade da ética está na vida da comunidade das vítimas do sistema que hoje mais oprime e destrói: o capitalismo. Que a batalha siga, no embate das ideias e na conquista de um tempo novo. Com amor, com paz, com respeito, mas sem vacilação.
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