Alzheimer/Velhice

sábado, 15 de outubro de 2011

A doce canção das ruas

Era 1988. Na esquina do terminal urbano, que naqueles dias ainda era ali perto da Praça XV, eu e mais dois amigos, Julio e Catarina, distribuíamos o jornal Barricada, que trazia informações sobre a revolução sandinista na Nicarágua. Havíamos criado o Comitê de Solidariedade aos Povos do Terceiro Mundo e aquela era uma das tarefas mais importantes. Dizer da experiência sandinista, mostrar que era possível avançar na luta contra o capitalismo e que, na América Latina, Cuba já não era uma estrela solitária. Era um trabalho quase inútil. As pessoas passavam ligeiras, no corre-corre da vida. Nicarágua? Cuba? Socialismo? “Que gente louca”, resmungavam, entre dentes. E nós ali, sob o sol, com um enorme fardo de Barricada, tentando mostrar que havia outra forma de organizar a vida.

Hoje, passados 23 anos, aí está o planeta alçado em rebelião. Nesse dia 15 de novembro, por todo o mundo, milhões de pessoas saíram às ruas, protestando contra o sistema capitalista. O que era loucura nos anos 80, o que aparecia como utopia, coisa impossível, agora se materializa diante dos olhos. Naqueles dias, ali estávamos nas esquinas, feito arautos da desgraça, a dizer das mazelas do sistema, sem que ninguém quisesse ouvir. O capitalismo mata, exige a vida de um para que outro viva. Define um centro rico e uma periferia pobre, vampiriza a vida das gentes para que meia dúzia possa viver à larga.

Agora, vimos nos cartazes que a juventude estadunidense carrega, em plena Wall Street, “Somos os 99%”. Finalmente entenderam que no mundo inteiro apenas 1% vive bem, do sangue e do suor da maioria. E assim se sucede na Grécia saqueada e na Europa destroçada. O estado de Bem Estar Social que o pós-guerra engendrou há muito tempo já fazia água, mas vinha se mantendo quase que por força de um mito. A Europa saciada, bem resolvida. Mas, a imagem desse mundo perfeito era só um reflexo no espelho. O capitalismo é como a metáfora da “Bolha Assassina” (The Blob), o velho filme de Bóris Karlof. Vai crescendo e engolindo tudo a sua volta.

Mesmo nos Estados Unidos, imagem do “mundo livre”, a bolha foi se imiscuindo. E agora os jovens querem outras respostas. Não querem mais servir de bucha de canhão das empresas que recrutam mercenários para fazer as guerras sujas do governo. Não querem mais morrer por nada. O povo que acreditou no milagre do capital agora vê seu mundo destruído. Não há casa, não há emprego, não há futuro. E é por isso que as gentes vão às ruas. Porque entenderam que o que os oprime está bem ali, à vista de todos, nas ruas chiques.

Enquanto as pessoas morrem como moscas pela fome e pela guerra, os governos só pensam em salvar os bancos, os agiotas oficiais, os que brincam de deuses com a vida das pessoas. Pois o povo não quer mais que se salvem bancos e empresas que exploram e oprimem. O povo quer que sejam salvas as suas próprias vidas. Na prática, entendendo a lógica do sistema. O capitalismo já não consegue mais manter sua aura de sedução porque a vida real está batendo na porta.

Estes são anos bonitos, de convulsão por toda parte, primavera árabe, lutas na Grécia, na Palestina, na Bolívia, no Equador, no Chile, nos países da Europa, e no coração do monstro. Por toda parte assoma a crise e, com ela, a consciência de muitos. É uma hora histórica. Um momento de mudança de temperatura do mundo.

Mas o filósofo Slavoj Zizec deu a dica: “Não nos apaixonemos por nós mesmos. É bom estar aqui, mas, lembrem-se, os carnavais são baratos”. Falando para a multidão acampada em Wall Street ele enfatizou que o problema principal a ser enfrentado não é a corrupção ou ganância dos banqueiros e governantes. O que tem de ser enfrentado e destruído é sistema mesmo, o capitalismo. “Há um longo caminho a trilhar”.

Esse é o ponto. As ruas estão fervilhando, gritando, marcando seu protesto. A esperança é de que não se esgote em si mesmo, que avance para mudanças radicais, como já fizeram as gentes do Equador quando em 2005 derrubaram Lucio Gutiérrez. “Não sabem o que querem”, diziam os analistas. Erraram. Elas sabiam. E tanto que continuaram lutando e derrubando o que não lhes servia. Seguem ainda. Foi assim na Bolívia em 2003 quando as gentes destruíram dezenas de prédios na guerra do gás em La Paz. “Uma massa informe”. Não era. Seguiram lutando, derrubaram Sanchez de Losada, buscaram alternativas. As ruas são sábias.

O certo é que dialeticamente, o sistema gera seu contrário. É o ovo da serpente. Fatalmente se acabará. Pode demorar mais ou menos. Mas acabará. E está mais próximo do que estava naqueles dias de 88, quando, solitários, distribuíamos o Barricada. O bom é saber que o que era a luta de uns poucos agora se agiganta, gritando por todo o planeta. Não mais como arautos da desgraça, mas como precursores de uma grande transformação.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Encontro dos Sem-Terrinha

Das cabeças dessas figurinhas deve brotar um novo Brasil... "Bandeira vermelhinha.. educação no campo para todos os sem-terrinha"...

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Uma visão crítica da Universidade


Lançamento do Livro acontece no dia 20 de outubro, às 19h, no Hall da Biblioteca Universitária. O trabalho foi organizado pelos professores Waldir Rampinelli e Nildo Ouriques.

Um dia a mais com dez reais

Por Leonardo Tolomini Miranda

O seu salmão é o meu feijão com arroz

O seu carro a sua beleza, a rua a minha amiga

Não há nada que você queira, eu quero tudo

Tudo para mim, só para mim

Quero que meus olhos não vejam mais miséria

Que não vejam mais fome e tragédias imbecis

Não quero mais nenhuma mãe ser ter com que alimentar seu filho

Sou egoísta, quero isso para mim, para mais ninguém

Meus olhos e ouvidos não aguentam mais, não é pinico

Minha vida não é joguete se vou ser feliz ou miserável

Quero ter a felicidade, desconstruir a infelicidade

Quero um mundo só para mim, sem você que me perturba

Que dirige esse maldito carro importado, que está na política por dinheiro

Empresário que explora sua mão de obra faminta

Sou egoísta, sou ruim, tenho pesadelos e entro no sonho daqueles malditos

Que assombram meus olhos, que me trancam em quatro paredes

Não quero mais você miséria, muito menos você riqueza

Vocês duas são estúpidas e só andam de mãos dadas, uma dá a porrada

A outra o falso sorriso

Vocês são o caos, o fim do mundo, quero a igualdade só para mim

Para poder descansar um pouquinho à noite e achar que vale a pena viver

Diante da estupidez da miséria passiva e da riqueza brilhante

E um bom foda-se a indústria cultural do pão e circo

Novela e futebol

E enquanto isso o mundo é assim mesmo, a droga está em qualquer esquina

É o meu mundo, porque o mundo é meu, antropocêntrico

Fode-se a cada dia, a cada instante que olho um miserável capitalista ignorante

Que acha que o mundo é seu através das moedas, dos juros, dos bancos, das gerências

O mundo não é deles, o mundo é meu e o meu mundo é igualitário

Declaro guerra a esta gente podre de sentimentos, vazias de qualquer esperança

Pois já possuem tudo, possuem o meu suor em seu copo de vinho

Minha saudade em sua cama

Minha filha em sua esquina

Meu filho de roupas rasgadas

Quero que eles se acabem instantaneamente, assim como o mundo irá se acabar

Se eles continuarem a ditarem as regras

Que regras? Há regras? Nenhuma.

“Occupy Wall Street”: o movimento mais importante do mundo hoje


Por
Naomi Klein

Foi uma honra, para mim, ter sido convidada a falar em Occupy Wall Street na 5ª-feira à noite. Dado que os amplificadores estão (infelizmente) proibidos, e o que eu disser terá de ser repetido por centenas de pessoas, para que outros possam ouvir (o chamado “microfone humano”), o que vou dizer na Liberty Plaza terá de ser bem curto. Sabendo disso, distribuo aqui a versão completa, mais longa, sem cortes, da minha fala.
Eu amo vocês.

E eu não digo isso só para que centenas de pessoas gritem de volta “eu também te amo”, apesar de que isso é, obviamente, um bônus do microfone humano. Diga aos outros o que você gostaria que eles dissessem a você, só que bem mais alto. Ontem, um dos oradores na manifestação dos trabalhadores disse: “Nós nos encontramos uns aos outros”. Esse sentimento captura a beleza do que está sendo criado aqui. Um espaço aberto (e uma ideia tão grande que não pode ser contida por espaço nenhum) para que todas as pessoas que querem um mundo melhor se encontrem umas às outras. Sentimos muita gratidão.

Se há uma coisa que sei, é que o 1% adora uma crise. Quando as pessoas estão desesperadas e em pânico, e ninguém parece saber o que fazer: eis aí o momento ideal para nos empurrar goela abaixo a lista de políticas pró-corporações: privatizar a educação e a seguridade social, cortar os serviços públicos, livrar-se dos últimos controles sobre o poder corporativo. Com a crise econômica, isso está acontecendo no mundo todo. Só existe uma coisa que pode bloquear essa tática e, felizmente, é algo bastante grande: os 99%. Esses 99% estão tomando as ruas, de Madison a Madri, para dizer: “Não. Nós não vamos pagar pela sua crise”.

Esse slogan começou na Itália em 2008. Ricocheteou para Grécia, França, Irlanda e finalmente chegou a esta milha quadrada onde a crise começou. “Por que eles estão protestando?”, perguntam-se os confusos comentaristas da TV. Enquanto isso, o mundo pergunta: “por que vocês demoraram tanto? A gente estava querendo saber quando vocês iam aparecer.” E, acima de tudo, o mundo diz: “bem-vindos”.
Muitos já estabeleceram paralelos entre o Ocupar Wall Street e os assim chamados protestos antiglobalização que conquistaram a atenção do mundo em Seattle, em 1999. Foi a última vez que um movimento descentralizado, global e juvenil fez mira direta no poder das corporações. Tenho orgulho de ter sido parte do que chamamos “o movimento dos movimentos”.

Mas também há diferenças importantes. Por exemplo, nós escolhemos as cúpulas como alvos: a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, o G-8. As cúpulas são transitórias por natureza, só duram uma semana. Isso fazia com que nós fôssemos transitórios também. Aparecíamos, éramos manchete no mundo todo, depois desaparecíamos. E na histeria hiper-patriótica e nacionalista que se seguiu aos ataques de 11 de setembro, foi fácil nos varrer completamente, pelo menos na América do Norte.

O Ocupar Wall Street, por outro lado, escolheu um alvo fixo. E vocês não estabeleceram nenhuma data final para sua presença aqui. Isso é sábio. Só quando permanecemos podemos assentar raízes. Isso é fundamental. É um fato da era da informação que muitos movimentos surgem como lindas flores e morrem rapidamente. E isso ocorre porque eles não têm raízes. Não têm planos de longo prazo para se sustentar. Quando vem a tempestade, eles são alagados.
Ser horizontal e democrático é maravilhoso. Mas esses princípios são compatíveis com o trabalho duro de construir e instituições que sejam sólidas o suficiente para aguentar as tempestades que virão. Tenho muita fé que isso acontecerá.

Há outra coisa que este movimento está fazendo certo. Vocês se comprometeram com a não-violência. Vocês se recusaram a entregar à mídia as imagens de vitrines quebradas e brigas de rua que ela, mídia, tão desesperadamente deseja. E essa tremenda disciplina significou, uma e outra vez, que a história foi a brutalidade desgraçada e gratuita da polícia, da qual vimos mais exemplos na noite passada. Enquanto isso, o apoio a este movimento só cresce. Mais sabedoria.
Mas a grande diferença que uma década faz é que, em 1999, encarávamos o capitalismo no cume de um boom econômico alucinado. O desemprego era baixo, as ações subiam. A mídia estava bêbada com o dinheiro fácil. Naquela época, tudo era empreendimento, não fechamento.

Nós apontávamos que a desregulamentação por trás da loucura cobraria um preço. Que ela danificava os padrões laborais. Que ela danificava os padrões ambientais. Que as corporações eram mais fortes que os governos e que isso danificava nossas democracias. Mas, para ser honesta com vocês, enquanto os bons tempos estavam rolando, a luta contra um sistema econômico baseado na ganância era algo difícil de se vender, pelo menos nos países ricos.

Dez anos depois, parece que já não há países ricos. Só há um bando de gente rica. Gente que ficou rica saqueando a riqueza pública e esgotando os recursos naturais ao redor do mundo. A questão é que hoje todos são capazes de ver que o sistema é profundamente injusto e está cada vez mais fora de controle. A cobiça sem limites detona a economia global. E está detonando o mundo natural também. Estamos sobrepescando nos nossos oceanos, poluindo nossas águas com fraturas hidráulicas e perfuração profunda, adotando as formas mais sujas de energia do planeta, como as areias betuminosas de Alberta.

A atmosfera não dá conta de absorver a quantidade de carbono que lançamos nela, o que cria um aquecimento perigoso. A nova normalidade são os desastres em série: econômicos e ecológicos.
Estes são os fatos da realidade. Eles são tão nítidos, tão óbvios, que é muito mais fácil conectar-se com o público agora do que era em 1999, e daí construir o movimento rapidamente. Sabemos, ou pelo menos pressentimos, que o mundo está de cabeça para baixo: nós nos comportamos como se o finito – os combustíveis fósseis e o espaço atmosférico que absorve suas emissões – não tivesse fim. E nos comportamos como se existissem limites inamovíveis e estritos para o que é, na realidade, abundante – os recursos financeiros para construir o tipo de sociedade de que precisamos.

A tarefa de nosso tempo é dar a volta nesse parafuso: apresentar o desafio à falsa tese da escassez. Insistir que temos como construir uma sociedade decente, inclusiva – e ao mesmo tempo respeitar os limites do que a Terra consegue aguentar. A mudança climática significa que temos um prazo para fazer isso. Desta vez nosso movimento não pode se distrair, se dividir, se queimar ou ser levado pelos acontecimentos. Desta vez temos que dar certo. E não estou falando de regular os bancos e taxar os ricos, embora isso seja importante. Estou falando de mudar os valores que governam nossa sociedade. Essa mudança é difícil de encaixar numa única reivindicação digerível para a mídia, e é difícil descobrir como realizá-la. Mas ela não é menos urgente por ser difícil.

É isso o que vejo acontecendo nesta praça. Na forma em que vocês se alimentam uns aos outros, se aquecem uns aos outros, compartilham informação livremente e fornecem assistência médica, aulas de meditação e treinamento na militância. O meu cartaz favorito aqui é o que diz “eu me importo com você”. Numa cultura que treina as pessoas para que evitem o olhar das outras, para dizer “deixe que morram”, esse cartaz é uma afirmação profundamente radical.

Algumas ideias finais. Nesta grande luta, eis aqui algumas coisas que não importam:
· Nossas roupas.
· Se apertamos as mãos ou fazemos sinais de paz.
· Se podemos encaixar nossos sonhos de um mundo melhor numa manchete da mídia.
E eis aqui algumas coisas que, sim, importam:
· Nossa coragem.
· Nossa bússola moral.
· Como tratamos uns aos outros.

Estamos encarando uma luta contra as forças econômicas e políticas mais poderosas do planeta. Isso é assustador. E na medida em que este movimento crescer, de força em força, ficará mais assustador. Estejam sempre conscientes de que haverá a tentação de adotar alvos menores – como, digamos, a pessoa sentada ao seu lado nesta reunião. Afinal de contas, essa será uma batalha mais fácil de ser vencida. Não cedam a essa tentação. Não estou dizendo que vocês não devam apontar quando o outro fizer algo errado. Mas, desta vez, vamos nos tratar uns aos outros como pessoas que planejam trabalhar lado a lado durante muitos anos. Porque a tarefa que se apresenta para nós exige nada menos que isso.

Tratemos este momento lindo como a coisa mais importante do mundo. Porque ela é. De verdade, ela é. Mesmo.

[1] Discurso originalmente publicado no The Nation. Tradução para o português do Brasil, de Idelber Alvelar, da Revista Fórum.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

12 de outubro – um dia para celebrar a luta dos povos

Ali estavam os arawaks, com suas vidas abyayálicas, cuidando de recolher frutas ou pescar. Viviam tranqüilos nas ilhas hoje chamadas de Caribe. Naquele 12 de outubro de 1492 viram assomar no horizonte os navios, e esperaram na praia. Contam os próprios cronistas de Colombo que eram gente dócil e gentil. Receberam os estranhos com curiosidade, embora sem medo. Mas, o brilho do ouro em alguns adornos selou seu destino. Era o metal precioso que os viajantes vinham buscar. É o que comprova a carta enviada por Colombo ao rei de Espanha: "E eu estava atento, me esforçando para saber se havia ouro, e vi que alguns traziam um pedacinho pendurado num furo que têm no nariz e, por sinais, consegui entender que indo para o sul ou contornando a ilha naquela direção, encontraria um rei que tinha grandes peças disso e em vasta quantidade". Colombo acreditava ter chegado às Índias e as novas viagens foram de exploração do interior, sempre na caça do ouro. Desde aí, a história da chegada dos europeus ao nosso continente formam páginas e páginas de destruição, saque e morte.

Tanto na região do Caribe, que logo nos primeiros anos viu desaparecer grande parte dos povos originários, quanto no México, depois América Central e do Sul, a invasão só teve um propósito: a rapinagem das riquezas. Civilizações foram destruídas, culturas apagadas. A religião católica foi imposta, as pessoas eram consideradas criaturas sem alma e a escravidão passou a ser naturalizada. Se os “índios” não eram gente, logo, não havia problemas com fazê-los instrumento de trabalho. E assim foi. Deles assim relatou Colombo: “serão bons vassalos, já que os índios não são gente capaz de fazer alguma coisa, mesmo premeditada".

Colombo estava errado, houve reação, mas só quando era tarde demais. Os primeiros porque eram dóceis e hospitaleiros, outros porque esperavam deuses e outros porque pensavam ser possível a convivência pacífica com outros, diferentes. O resultado foi todo um modo de vida destruído, quando não povos inteiros eliminados da face da terra.

Hoje, passados mais de 500 anos desse triste dia, os povos autóctones que sobreviveram ao massacre procuram lembrar a resistência que seus antepassados ofereceram, as lutas por libertação, a manutenção de suas crenças e modos de vida, ainda que solapados pelos invasores. Era coisa tão forte que ficou ali, latente, sempre assomando vez em quando. No início deste milênio, as lutas indígenas começaram a aparecer com muita força e unificadas. Foi-se formando um movimento de retomada das línguas, da religiosidade, da maneira de organizar a vida. Algumas comunidades lograram mudar até a Constituição de países sempre dominados pelo mundo branco. Foi o caso da Bolívia e do Equador. Apareceu o Estado Plurinacional, a revolução cidadã, a revolução cultural, reforçou-se a idéia do sumak kausay, o bem viver. Mesmo na região dos Estados Unidos, onde as comunidades autóctones sofreram os maiores baques nos séculos 18 e 19, o movimento indígena cresceu e fez-ouvir.

Por isso que agora no 12 de outubro, os povos fazem jornadas mundiais de luta, até porque, grande parte desses movimentos que envolvem os indígenas está visceralmente ligada à idéia de harmonia com a natureza, de proteção do ambiente, em defesa da água e dos recursos naturais. Ou seja, as demandas indígenas podem ser também as demandas de toda a gente.

Então, por todos os cantos da América Latina as pessoas saem às ruas para protestar. E não é um protesto ritual, folclórico. Mas uma ação massiva e determinada (ou premeditada, para desespero de Colombo) contra o sistema capitalista de produção, que tem na sua natureza a marca da destruição e da opressão. O 12 de outubro é um momento político único em Abya Yala (as três Américas), de rebelião e de esperança. Cada país centraliza o movimento na sua pauta conjuntural, mas por todo o continente se espraiam as lutas, as marchas, os gritos.

No Brasil, as lutas relacionadas ao 12 de outubro acontecem no 7 de setembro (Grito dos Excluídos), já que esta é também uma data muito significativa para o país (a independência de Portugal). E, ao contrário dos demais países da América Latina que, nesse dia afirmam sua condição autóctone, soberana e original, o Brasil reverencia a padroeira Nossa Senhora Aparecida, sendo, inclusive, feriado nacional.

De qualquer forma, pelos caminhos da América (Abya Yala) andam as gentes a sussurrar segredos, histórias antigas de tempos remotos quando eram livres. E, como dizem os astecas, as palavras criam pernas e começam a andar. É por isso, talvez, que desde que esses movimentos começaram, lá na década de 90 do século passado, tantas conquistas vieram.

Nesse 12 de outubro convido a todos para essa reflexão. Que se rendam glórias à santa negra do Brasil, memória sincretizada da religiosidade do povo que veio escravo da África, que se brinque e pule feito criança, mas, que também se encontre um tempo para irmanar com a luta dos demais povos que lutam nesse espaço de terra que é de todos nós.

Viva o dia de luta dos povos de Abya Yala!

Nascem as Brigadas Populares: um movimento nacional no rumo do socialismo

Ela tinha menos de 20 anos quando saiu de Blumenau para fazer a faculdade na capital, assim como milhares de outros jovens saem do interior em busca de conhecimento e profissão. “Eu não cabia ali, mas não sabia por que”. Da vida conhecia pouco e das lutas das gentes menos ainda. Em Blumenau quase não se vê a pobreza, que fica escondida nos morros e na periferia. Mas, na faculdade, o véu foi se descortinando. Uma viagem para o Rio de Janeiro expôs as feridas abertas de uma nação capitalista dependente e a cabeça de Daniela Mayorca nunca mais seria a mesma. Dali para a luta estudantil foi um pulo. Uma nova viagem foi a pá de cal em qualquer possibilidade de ficar apática, ou restrita a pequenas batalhas. Argentina, Bolívia, Peru, Venezuela. O pé na vida real de um espaço esquecido. A caminhada com as gentes em luta, em processo de profunda transformação. Essa América baixa, profunda, cheia de feridas e repleta de possibilidades de revolução. “Descobri um mundo que tem cheiro, cor, lágrimas, esperança, luta. Foi um choque, mas um choque bom”.

De volta para a universidade Daniela mergulhou na organização estudantil, preferindo atuar no Coletivo 21 de junho, uma proposta diferente das velhas tendências sempre ligadas a partidos políticos, nascida na metade do ano de 2007, inspirada na luta dos estudantes que fizeram a histórica Reforma de Córdoba. O coletivo se organizava desde uma perspectiva teórica anti-colonialista, anti-eurocêntrica, baseada no pensamento próprio, latino-americano. Atuava e atua para além dos eventos e lutas internas, com a mirada sempre na transformação social. Nesse agrupamento foi possível fazer uma profunda reflexão da universidade, travar lutas singulares, garantir conquistas. Ali, Daniela pode compartilhar a batalha por uma universidade que fosse transformadora, mas também aprendeu que mudar só esse espaço não seria suficiente. “Sabíamos que era necessário um movimento de base, de massa”.

Depois de três anos da direção do DCE, o Coletivo 21, que já abrigava dezenas de jovens como Daniela, decidiu que era hora de ampliar os caminhos da mudança. Sozinho, é difícil mudar um mundo. E a realidade mostrava que, pelas veredas profundas do Brasil, também outras pessoas se movimentavam numa outra proposta de organização da vida, com pressupostos muito parecidos, de caráter nacional, popular e socialista. No Rio de Janeiro vicejava o grupo Movimento Revolucionário Nacionalista (Morena), pensando o mundo desde Ruy Marini, Darcy Ribeiro, Brizola. Juntava gente que entendia ser necessário mudar a cara do Brasil. Em Minas Gerais, na capital (Brigadas Populares) e nas montanhas das cidades históricas (Coletivo Autocrítica, de São João del Rei) também pululavam ações urbanas que tinham como horizonte a mudança geral. Essas concepções práticas e teóricas foram se conhecendo, dialogando, encontrando afinidades.

Durante um ano inteiro esses grupos se namoraram, conversando, debatendo, sonhando juntos. Até que em setembro deste ano resolveram se encontrar num campo neutro: São Paulo. Para lá partiram os representantes dos coletivos buscando estabelecer uma proposta de projeto histórico e uma linha conjunta de luta organizada. Daniela Mayorca estava lá, representando o Coletivo 21, da UFSC. “Foi um encontro muito rico, cada um ensinou e aprendeu. Havia um clima de companheirismo e curiosidade. As divergências só chamavam mais discussão e não disputas. A proposta é garantir a unidade em questões maiores, de interesse nacional”.

O encontro de setembro resultou numa unidade real. Os então coletivos se diluíram numa única organização, as Brigadas Populares, com um propósito ousado: construir uma pátria soberana e socialista. “Os fundamentos da nova organização são o socialismo, o nacionalismo revolucionário e a organização de uma nova maioria”. Conforme o manifesto lançado logo depois da fusão, o socialismo é a superação da irracionalidade capitalista que se apresenta como a aspiração mais elevada das gentes no seu processo de emancipação. O nacionalismo revolucionário busca a soberania e autodeterminação popular desde as raízes brasileiras, mas sem negar o internacionalismo. E a formação de uma nova maioria pressupõe como estratégia a revolução brasileira, constituindo um campo de forças sociais capaz de buscar a hegemonia em todas as dimensões da vida social.

Os coletivos que se encontraram em São Paulo assumiram como prioridade superar essa divisão que caracteriza hoje o campo popular no Brasil, provocada pela crise teórica, política e organizativa das últimas décadas. Assim, a proposta é de construir uma unidade aberta, ou seja, mesmo na diferença acumular força coletiva rumo ao socialismo. O objetivo é caminhar para a construção de uma força política forte, de natureza antiimperialista e antimonopolista que defenda um programa de libertação. Assim, a primeira tarefa é recompor esse tecido roto dos setores revolucionários da esquerda e a segunda é articular uma Frente Política unificada num programa mínimo e de materialização imediata. “A gente sabe que essa unidade não significa que é tudo igual, todo mundo pensando a mesma coisa. Temos diferenças, mas temos também maturidade para saber que só articulados podemos caminhar para a libertação”, analisa Daniela.

A nova organização nacional procura também dispor das diversas formas de atuação que cada um dos coletivos já desenvolvia. A ação junto aos estudantes, a luta nos movimentos urbanos, a discussão teórica, a ação político/popular. A idéia é formar uma militância revolucionária, capaz de compreender dialética e historicamente a realidade. Teoria e ação, tudo junto. Gente que possa ocupar os espaços da luta política real, nos movimentos sociais de toda ordem, mas sem a lógica do aparelhamento, tão nociva. Exemplos concretos dessa prática ousada e de massa que já estão em movimento é a luta pela manutenção das famílias na Ocupação Dandara, em Belo Horizonte, a batalha por mandatos revogáveis na UFSJ, em São João Del Rei, a organização dos sem teto e a casa Bolivariana, no Rio de Janeiro, e a ação entre os estudantes da UFSC, do Coletivo 21 de junho, em Santa Catarina.

As Brigadas Populares nascem assim, sem muito ruído, mas com um arcabouço teórico forte, com pilares seguros, com objetivos claros e factíveis. Seu manifesto de nascimento é intenso: “A revolução brasileira não é um dissídio coletivo entre trabalhadores e patrões. É a constituição de uma maioria política nas qual os trabalhadores se estabelecem como a força dirigente. A revolução não é um ato, um golpe, uma queda do governo, mas um conjunto de eventos históricos que reorganizam a sociedade em favor da classe trabalhadora, construindo uma nova visão de mundo”.

Essa proposta, constituída coletivamente pelos agrupamentos que se unificaram nas Brigadas Populares, é o que move hoje a vida de Daniela e tantos outros jovens nesse imenso Brasil. Divididos em Frentes (Popular, Juventude, Mulheres e Solidariedade Internacional) e Missões (Formação, Comunicação, Finanças, Tarefas), eles tem um longo caminho a cumprir para entranhar na cabeça e no coração de cada vivente deste país a proposta bonita do mundo socialista. Um mundo no qual os trabalhadores sejam protagonistas, onde as vozes populares sejam as que mandam. Um mundo de riquezas repartidas e de vida boa para todos. Um mundo onde se possa realmente bem-viver. Não é tarefa simples, a considerar a pedagogia da sedução capitalista levada a cabo pela escola, pelos meios de comunicação. Mas, ninguém das Brigadas Populares acredita que fazer revolução seja coisa fácil. O fato é que a idéia já está caminhando, invadindo as veredas do campo e da cidade. As pessoas estão trabalhando e a libertação está ali adiante. As Brigadas são uma lufada de vento fresco, vento forte, disposto a varrer o capitalismo. De Santa Catarina, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, de São Paulo, de vários espaços está brotando essa nova realidade. Bem vinda!...

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Por aí, esperando a faísca


Aprendi com Walter Benjamin a andar pela minha cidade feito um viajante, com os olhos procurando ver o que sempre ali esteve, mas de um jeito diferente. Olhos de assombramento, de quem não naturaliza as coisas, de quem está frequentemente admirando o cotidiano, seja para celebrar ou denunciar. E assim andava pelo centro de Florianópolis, tonteando, com minha mochilinha verde – com o escudo do Figueirense - bem presa ao corpo, porque os furtos andam frequentes. Então, senti o ventinho. Passavam por mim, correndo, três pessoas. Estaquei. Porque era certo que algo passava. Eram três jovens equatorianos que vivem aqui há meses e ganham a vida vendendo lenços e carteiras na rua.

Corriam porque assomava ali, à esquina, dois guardas municipais. E, em Florianópolis, o comércio ambulante é proibido. Mas, como em qualquer grande cidade, a proibição não quer dizer nada. As pessoas não têm emprego e precisam viver. Alguns preferem expropriar quem tem, outros vão dando seu jeito no mundo informal.

A família de equatorianos é grande. Penso que são uns três ou quatro núcleos familiares distintos, mas certamente todos parentes ou amigos. Porque andam sempre juntos. As mulheres mais velhas vestem as roupas típicas, absolutamente lindas, com seus cabelos negríssimos, lisinhos, e colares típicos. As mais jovens usam jeans. Espalham-se pelas várias esquinas do centro com os produtos colocados sobre um grande pano, que pode ser enrolado rapidamente ao avistarem os fiscais. E assim eles passam o dia. Olhos saltitantes, sempre alertas, num interminável estado de tensão. Caso sejam pegos, perdem toda a mercadoria e aí, é um golpe duro demais.

Naquela tarde, em um segundo eles sumiram da vista, como se fossem fumaça. Para de novo se materializarem em outra esquina, entre risos nervosos. Parceiros de infortúnios e fugas são também os jovens vendedores de CDs e DVDs, as mulheres que vendem meias e os que oferecem badulaques para cozinha. Essa é a realidade no centro de Florianópolis. Seres-vento, correndo de uma esquina a outra, tentando manter-se com a cabeça sobre a água da sobre-vivência.

Por mim passam os dois guardas, dos quais fugiam os equatorianos. Andam devagar, quase solidários com aquela gente que corre espavorida. Eles se olham e sorriem. Sabem que poderiam correr e pegá-los, mas preferem passar o dia na insana lógica do gato e o rato. Não sei se sentem pena, se pensam ajudar, sei lá. O certo é que ainda que não corram e nem recolham a mercadoria, são sempre a faca sob a cabeça. Ameaça permanente. Dias há que não apertam o passo, dias há que recolhem tudo. É coisa de momento.

Já os trabalhadores, essas gentes fortes, resistem e insistem. Riem de si mesmos, carregam suas enormes malas e seguem correndo pra lá e pra cá. No final do dia eles voltam para casa carregando o leite e o pão. Amargam os ônibus lotados, suas casas de papelão e dormem como justos. Assim vão por anos, até que um dia, uma única faísca, vinda sabe-se deus de onde, acende o desejo de ser mais que aquele terror diário. E é aí que a coisa pega... para os que vivem do sangue da maioria. É só aí, que tudo muda!