Para José Comblin
Tenho um bom amigo que odeia a igreja. E eu às vezes odeio também. Mas, nascida e criada no mundo ocidental, mergulhada na fé cristã, eu aprendi a diferenciar o pensamento jesuânico do pensamento da instituição. Era ainda menina quando conheci as Comunidades Eclesiais de Base, que anunciavam um reino na terra, repartido e digno. Encantei-me com isso. Parecia que aquele Jesus de quem eu tinha notícias através da minha mãe, se materializava de novo, agora entre nós. Não era um cara pregado na cruz, morto e impotente. Era uma espécie de água viva, tocha ardente, labareda, capaz de incendiar nossos desejos de mudança e transformação. E mais, a partir de sua palavra revolucionária os mortos reviviam, os paralisados voltavam a andar e os cegos recuperavam a visão. Todos os dias eu presenciava milagres assim.
“Bendito o povo que marcha, tendo Cristo como guia”, cantava-se nas romarias que já não pediam por uma vida de alegrias no céu. Nelas, pedia-se reforma agrária, o fim do regime militar, justiça, comida, liberdade. Ah, aquele padres jovenzinhos, de barba cerrada e olhos de lâmpada que caminhavam à frente, armados de um Jesus companheiro, um deus amigo, uma promessa de vida boa e bonita agora mesmo, já. E com eles seguiam as gentes. Os camponeses, os trabalhadores, as donas de casa, as crianças. Daqueles encontros clandestinos nas capelas de interior nasceram os movimentos de mulheres, de sem-terra, de rebeldes inconformados com a mordaça e o terror.
Depois, já nos anos 80, pude vivenciar a força da fé, essa fé vermelha, socialista, revolucionária, nas caminhadas do MST gaúcho. Nos barracos de lona preta os agricultores sem-terra construíam catedrais, não de pedra, mas de sonhos, que iam se fazendo reais pela força da luta concreta, terrena, pé no chão. Terras ocupadas, terras grávidas, parindo uma vida nova. Naqueles dias todos sabíamos que havia uma guerra. A Igreja vermelha, fruto de Puebla e Medelin, a igreja dos pobres, dos desgraçados, dos desvalidos, a igreja latino-americana, contra a igreja dos príncipes, do poder, eurocêntrica.
Foi uma longa batalha e deixou rastros de sangue pelo chão. Ao final, a igreja vermelha perdeu. Na queda de braço, venceu o conservadorismo, a tradição institucional. O Cristo da festa, do vinho, da vida plena foi vencido pela idéia cristalizada de um deus vingador e insensível, capaz de condenar a alegria e o prazer.
José Comblin foi um padre vermelho, socialista, anunciador desta heresia profética: de que havia um deus que se unia aos desejos dos pobres, que caminhava com eles, que lhes dava força e coragem e lhes incitava a lutar contra os vilões do amor. Era visto como um espinho incômodo pela “instituição”, mas amado pelas gentes que com ele construíam esse mundo de belezas tão próximo do sonho de Jesus. Padre José anunciou essa boa nova, fez dela sua razão de viver... E viveu tanto! Nos últimos tempos andava triste, sem esperança, não conseguia compreender porque não viera o esperado reino. “Nunca mais uma geração como a de Medelin” , dizia...
Pois neste dia 27 de março ele encantou. Morreu dormindo, como cabe a um homem bom. Eu imagino a surpresa que teve ao abrir os olhos e se ver diante daquele que tanto amava. Porque ele era um jesuânico, apaixonado por aquele deus que dizia: "Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.” E imagino ainda esse Jesus tomando-lhe os ombros a mostrar-lhe coisas que ele, perdido nas veredas do Brasil, não conseguia ver. E, baixinho, em seu ouvido, o querido mestre haverá de sussurrar: “Sim, nunca mais haverá uma geração como a de Medelin, mas haverá outras, José, capazes de reacender a verdade aparentemente vencida pelo poder. E o mundo chegará ao ômega, a uma vida boa e bonita para todos. Porque é assim que tem de ser...” E lá de cima, José observaria todas as lutas e pequenos milagres que seguem acontecendo por esse mundão de deus.
Então, o velho bispo vermelho, que andava triste, haverá de sorrir outra vez. Nessa hora, em inúmeros lugares do mundo brotarão fogueiras, que, de novo, irão incendiar... Por que uma coisa tão poderosa e bela não morre assim no más!
Estimada Elaine Tavares, encantado por suas doces e sábias palavras ouso deixar-lhe este humilde bilhete.
ResponderExcluirPara agradecer a oxigenada que destes na chama cristã em meu coração, com a pureza de seu sentimento em frases belas, verdadeiras e singelas.
Desejo que tenha cada vez mais luz, paz e amor em sua vida.
José Fonte de Santa ana.
gracias por tuas palavras José...
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