Alzheimer/Velhice

domingo, 11 de julho de 2021

Jornalista e PhD em cuidar de velhinho



Lembro uma vez que participei de uma banca no Curso de Direito, como examinadora. E, na hora das apresentações o professor que presidiria a mesa me perguntou. - A senhora é o que? E eu. - Jornalista. - Só jornalista? Retrucou, meio incomodado. - É, só jornalista.

Respondi assim porque minhas qualificações estavam na ata e eu prefiro ser apresentada como jornalista, profissão da qual me orgulho. Mas, agora, penso que vou acrescentar: e PhD em cuidar de velhinho. Sim, porque isso é uma qualificação e tanto a considerar as minhas pequenas vitórias cotidianas com o pai.

Outro dia estava lembrando que eu sempre me assombrava quando via na televisão denúncias de velhinhos sendo maltratados pelas cuidadoras ou parentes. Eu pensava: mas como alguém pode ser violento com alguém tão frágil? Minha iniciação a essa coisa do cuidado foi num Asilo de São Vicente de Paula, em Pirapora, no final dos anos 70, para onde eu ia todas as manhãs de domingo junto com minha amiga Iara Nascimento. Lá, tínhamos por função limpar, pentear e entreter os velhinhos. Naqueles dias nem sonhava com fazer isso 24 horas por dia. Era apenas uma manhã, então nada parecia complicado. Por vezes os encontrávamos mal cheirosos e eu com meus botões pensava: mas por que não dão banho todo dia?

Hoje, depois de seis anos lidando com a doença de Alzheimer eu posso compreender porque algumas pessoas saem do sério, como e fácil perder o controle e o quanto é difícil essa parada da higiene. Têm momentos que podem ser exasperantes e desesperadores. Então, há que ter a cabeça aberta e estar disposto a aprender a compreender outro mundo.

A primeira coisa é saber que o velho, principalmente se tem demência, fala outra língua. Entendê-lo é como se iniciar no russo ou no mandarim. Há toda uma lógica diferenciada, outras sintaxes, outros fonemas, outra gramática e inclusive outra linguagem corporal. É fascinante. Chegar a uma fluência capaz de dialogar requer empenho e esforço. Posso dizer que eu hoje consigo me comunicar com o pai sem equívocos. E isso é uma grande vitória.

Ao conquistarmos o reino da língua temos o caminho para horas de muita tranquilidade porque quase toda a violência, os transtornos, e o desequilíbrio do doente de Alzheimer vêm dessa incapacidade que os outros têm de compreendê-lo. Tanto que quando o pai chegou, a vida virou de cabeça para baixo, e ele passou por muitos momentos de sofrimento com crises horríveis de violência e desequilíbrio. Eu fui aprendendo tudo à facão. Não há mapas. Hoje, é raro ele se intranquilizar.

Os médicos dizem que há três fases do Alzheimer. O começo, a fase moderada e a severa. Eu já discordo. São centenas de milhares de fases. Tantas quantos dias de vida na doença. Cada dia singular é um universo em si mesmo e o que aprendemos para hoje pode não servir amanhã. É um desafio permanente. Mas, nessa minha posição de PhD eu aprendi que há coisas que se repetem e servem para qualquer um.

1 – Falar baixo. Nunca , em nenhuma circunstância elevar o tom de voz. Qualquer estridência é ruim.

2 – Sorrir em todas as circunstâncias. Encontrar o nosso rosto sorridente e sereno quando estão incomodados com alguma dor, xixi, cocô, ou quando querem fugir, dá uma tranquilidade imensa a eles e ajuda a acalmar.

3 – Jamais contrariar – Se não querem fazer algo, deixa pra lá. Sorri, diz uma palavra carinhosa e sai. Dali a dez minutos a gente volta, pede a mesma coisa e já recebe outra resposta. É assim mesmo, então não há porque ficar insistindo e irritando a pessoa.

Com essas três dicas já se tem um bom caminho. O resto é atenção verdadeira para ir compreendendo a língua do nosso velhinho.

Escrevo esse texto hoje me concedendo o PhD porque consegui finalmente um feito inédito: trocar a fralda do pai durante o dia, assim que ele terminou o cocozinho. Uma façanha maior do que chegar vivo ao pico do Everest. Foi a coisa mais emocionante que me aconteceu nos últimos tempos, desde que eu finalmente consegui introduzir a fralda. No geral ele deixa colocar de manhã, mas só conseguia tirar à noite, o que me causava grande aflição.

Hoje, finalmente consegui. Sem gritos, sem choro, sem agressões. Bem tranquilo. Acho que passamos para outro estágio.

Depois dessa odisseia comemoramos tomando um chocolate quente. Ele bem querido e eu com um sorriso de orelha à orelha.

Apesar de estarmos os dois desde há uma semana com uma gripe horrível e desconfortável, vivemos hoje mais vitoriosa fase dessa nossa incrível relação. Eu, formada em língua de velhinho e PhD em cuidar.

Só tô aqui pensando se ponho isso no meu Lattes. 



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