Alzheimer/Velhice

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Do cerrado ao mar


Chapada Diamantina, um estupor de beleza

Era janeiro de 1994 e eu dava início a mais uma das minhas viagens, do jeito como gosto, minha mochila e eu.  Decidi sair de João Pinheiro, de ônibus, é claro, onde moravam meus pais, no cerrado de Minas Gerais, indo até Maceió, onde estava vivendo minha amiga/irmã Rosemeri Laurindo. Uma odisseia pelas estradas esburacadas do Brasil real. O roteiro era doido. Saia de João Pinheiro, no noroeste de Minas, com primeira parada em Brasília. Nada planejado, pois naqueles dias não tinha internet assim, à mão, e viajar era expor-se ao acaso. Hoje, mexendo em velhos cadernos, achei esse texto, que fala um pouco do caminho até Maceió. Como acontece nas viagens a narração do caminho é sempre mais bacana que o destino final. É uma narrativa bruta, tal qual está no caderno, impressões de um pedaço do Brasil de 27 anos atrás. 

“Minas ainda há sim, e bela, apesar da pobreza que se vislumbra nos vales por onde passa o ônibus no rumo da capital do país. No norte do estado o cerrado toma conta da paisagem, essa vegetação rasteira com árvores anãs, retorcidas. Firmando o olho na imensidão a gente tem a impressão de que a qualquer momento pode surgir um bandoleiro, desses dos filmes de TV, um Corisco talvez, com o cabelo claro brilhando ao sol. 

À medida que vamos percorrendo o caminho, vez ou outra, a paisagem muda. É que no meio do cerrado alguns gaúchos se acoitaram e abriram terras, botando no chão as árvores anãs, transformando a típica paisagem mineira em lavoura de soja. Dá uma profunda tristeza. Ao longo do caminho a gente ainda vê as montanhas de Minas. Ora qual, não são montanhas, são pequenos montes que até parecem seios de virgens, duros e pontudos erguidos para o céu. Seios de alguma mulher verde, porque cobertos de mato. Bonito demais. 

Mais um pouco e entramos em Goiás. Lugar quente, sufocante. O ar parece rarear e dói o nariz. Quanto mais Minas fica para trás, menos verde fica o espaço. Goiás tem um verde pálido e um povo escuro que espia das portas das casas feitas de barro e cobertas de capim. Crianças ranhentas acenam e oferecem carambolas a preço bom. Compro algumas. No caminho há vários pontos de vacinação contra a febre-amarela. “Têm tido muitos casos”, diz a enfermeira. Sem pestanejar desço e tomo a injeção. Sou a única. O resto do povo no ônibus ri de mim. Tudo bem. Acho que é uma boa oportunidade. Ficarei por 10 anos imunizada. Nunca vou perder para o mosquito.

Goiás também tem campos lavrados. Coisa dos gaúchos de novo. Por vezes, no meio das lavouras, vê-se algum homem à cavalo, com chapéu de beijar santo em parede, típico do Rio Grande. Nas cidadezinhas que se sucedem, o que mais se vê nos muros brancos é a inscrição: CAIADO 94. O latifundiário da UDR está investindo seus bois para entrar na política. Propaganda ostensiva. “O que ele fez de bom para Goiás?”, pergunto, na singela parada do ônibus. “Seu Caiado é bom”, diz um velho sem dentes, sem responder a pergunta. 

O ônibus agora se aproxima de Brasília e as grandes mansões no meio da quentura do dia parecem brincar com nossa tristeza. Nas cidades satélites se aglomera o povo que gera a riqueza e no meio do caminho, mais próximo do plano piloto saltam as casas imensas, com as enormes piscinas brilhando de tão azuis. Ninguém está se banhando nelas, estão ali, inúteis, ostentando riqueza. O ar é seco, as pessoas se escondem, muitos carros. Em Brasília não há pessoas. Vez em quando vemos alguns mendigos, gente sem casa, miseráveis quebrando a rotina dos imensos jardins. O poder tendo de lidar com a pobreza que ele mesmo gera. Embaixo das pontes tem gente dormindo, enrolada em cobertores apesar do calor. Vida mesmo só na rodoviária, perto do Centro Comercial. Ali, o povo vê vitrines, faz compras, toma sorvete. Caras nordestinas misturadas com gente do sul. Roupas finas, sorrisos tristes, gente triste. Só as crianças parecem rir com gosto. 

Depois de andar algumas horas pela rodoviária, enquanto espero o ônibus, finalmente sigo para a Bahia num carro da Viação Paraíso. O nome é bom, o carro nem tanto. Ele fará 24 horas até Salvador e uma boa parte do caminho é de estrada de chão. Os ônibus que saem de Brasília para o nordeste são indescritíveis. Vão sempre lotados, cheios até a boca e o povo leva tudo o que é possível imaginar. São caixas e mais caixas por pessoa. Tem até quem leve pneus e pedaços de carros inteiros. Levam bicicletas e muitos, mas muitos mesmo, aparelhos de som. E há quem leve secadores de prato, desses de acrílico, tentando ajeitar na parte de cima. As cenas são incríveis. Centenas de filmes não seriam suficientes para captar o clima. Um homem sentado sobre dois pneus de trator dá o tom do surreal. E os pneus, depois, são enfiados no bagageiro. E lá vamos nós rumo a Salvador.

A primeira parada é em Formosa, Goiás. Um lugarejo de sonho. Em vez de restaurante, churrasquinhos de gato nos recepcionam. O povo está sentado na frente das casas, as mulheres em roda, os homens bebendo uma cachacinha. Crianças e cachorros brincam. As casinhas são simples e há toalhinhas de renda sobre as mesas. O céu é claro e a lua enorme. 

Seguimos pela Estrada Federal 242. Um mar de buracos. No meio da noite clara, o sobressalto. Estamos no sertão, já é Bahia. Lá fora a paisagem é de desolação. Chega a dar medo tanto vazio, e aperta um oceânico sentido de solidão diante de tamanha quantidade de terra seca se estendendo além do horizonte. Não há como descrever a beleza da noite naquela paisagem. A lua clara, contrastando com o vazio da terra rachada. Uma ou outra arvorezinha aparece, tentando se erguer do chão. Dá vontade de chorar, confrontada com a maravilha desse país tão grande e belo. Pena mesmo é a falta de cuidado. A estrada é tão esburacada que dá até medo de o ônibus virar. 

Paramos em Barreiros, Bahia. Cidadezinha pequena e de grande pobreza. Na rodoviária várias pessoas dormem na rua. A noite é fria e eles se encostam um no outro para se esquentar. A cena é triste. Os corpos no relento, cobertos com trapos. Não parecem forasteiros. São gente da cidade mesmo que não têm casa para morar. Nessa região do norte da Bahia é grande o números de ocupações de terra e o MST é forte ali, vê-se bandeiras aqui e ali. A maioria das propriedades na beira da estrada é bem pequena, com casinhas feitas de barro e palha. Um lugar desolado que poderia brotar se houvesse política pública de irrigação. Um poço em cada casa e a vida estaria garantida em abundância. É tão pouco e ainda assim, não vem. Sem a água a terra é dura, o gado é magro e as cabras são fraquinhas. 

De repente, no meio da terra rachada do sertão surge um milagre: o rio São Francisco. Imenso, ele corta o agreste e espalha o verde escuro por todo o lado, Altaneira, ao lado dele, a cidade de Ibotirama. Uma ponte enorme liga a margem seca à outra margem turbulenta de vida. Não há ruas calçadas, só areia, que se enfia pelos pés da gente. No posto rodoviário estão quatro táxis, todos modelo Corcel, daqueles antigos: um verde, um azul  e dois vermelhos. Mulheres montam banquinhas próximo aos ônibus e vendem café com rosca, bolos, biscoitos, laranjas e água de coco. O calor é forte e o povo parece alegre. Um velhinho com sandálias de couro cru e bastão de santo pede esmolas, ou come os cocos deixados pelo povo do ônibus, que sai na corrida.

Mais um pouco e surge a imagem da magnificência: a chapada Diamantina, as montanhas da Bahia. Montes de pedra, lindos na sua falsa desolação. Encostas imensas, canions, é extraordinário. Com jeito, fixando o olho, eles parecem tomar formas humanas, um rosto, um corpo, uma expressão. É tão bonito que o olho não cansa de olhar. Bem no pé de uma das montanhas fulgura uma casinha, pintada de verde-cheguei. A composição da cena é inenarrável. 

Mais tarde passamos por outra cena considerada impossível: um rio totalmente seco. Está ali a ponte, o leito do rio, mas não qualquer vestígio de água. Curiosamente a cidade ao lado chama-se Beira-Rio. Há três anos que não chove uma gota ali. Bem mais na frente, estrada acima, surge um pequeno olho dágua, quase um poço. Água suja e pouca. Mesmo assim, as mulheres estão ali, com suas trouxas, lavando roupa. O menino baiano que viaja ao meu lado, diz desolado: “Essa é a parte pobre da Bahia, lá pro sul do estado é que é bonito”. Eu olho pra ele estarrecida: “mas tu não vê beleza?” Ele balança a cabeça, negando. A partir daí, juntos, vamos descortinando e recolhendo nas retinas as cenas dessa Bahia empobrecida. As árvores anãs, tão fortes, o cactos de um verde brilhante na paisagem seca, o sorriso das mulheres que vendem doces, o ar dolente dos homens que se debruçam nos balcões. Os montes da Bahia, as pedras, as casinhas, as crianças, os cachorros. E então? Torno a perguntar. Ele ri e diz: É, tem muita boniteza sim. 

A Chapada Diamantina então. O que é aquilo? Parece que as pedras foram colocadas uma a uma sobre o monte. É bonito demais. Pena eu não ter uma máquina fotográfica porque, de verdade, não há palavras capazes de descrever. Se nada mais fosse bonito naquela viagem, a visão da chapada bastaria. Uma das coisas mais linda que já vi na vida. Não dá vontade de seguir. Só de ficar ali bebendo daquela beleza sob o sol. Imagino o que seria um pôr-do-sol naquele lugar. 

Chegamos a Itaberaba, já no meio do estado, com ares de cidade média. Tem igreja, tem praça e ruas calçadas. Depois que passamos a chapada o cenário já vai mudando mesmo. Têm mais açudes, mais rios com água, lugares aparentemente aprazíveis. Itaberaba ostenta um alegre ar de festa, bem comum nas cidades baianas. Gente vendendo frutas pelas calçadas, bugigangas, e um festival de tipos humanos circulando na rodoviária, que é bonita e bem servida. 

Toca rodar mais um pouco até Feira de Santana. “Ebaaa... vamos chegar na civilização”, dizem, dentro do ônibus. É a metrópole baiana. Cidade grande, com todos os confortos. Ali é meu ponto final, onde vou pegar um ônibus que vai para Maceió. “Cuidado aí, menina”, diz uma senhora que estava sentada do outro lado do corredor, “tá cheio de avião”. Agradeci. É que dali não tinha carro para Maceió. Haveria que ir até um posto fora da cidade. 

Pois nem bem desço do ônibus um velho tenta me passar a perna, querendo que eu embarque num táxi para me levar ao ponto do ônibus que fica fora da cidade uns 30 quilômetros. Sinto que é fria e fico para sondar o local e saber direitinho como fazer. Encontro mais três pessoas querendo ir para Maceió. Juntos batalhamos e enfrentamos os 30 quilômetros em uma carona dividida, o que nos saiu bem mais barato. Três caras bem queridos: um latoeiro, um camelô e um montador de caldeira. Saltamos no posto de gasolina, onde passaria o tal ônibus. Esperamos um pouco e lá veio ele. Ufa! Vamos conseguir ir direto para Maceió, sem precisar ir até Salvador. 

Foi uma odisseia naquele final de madrugada, mas às cinco horas da manhã já estávamos na capital alagoana. Despedimo-nos com beijos estalados e eu fui encontrar minha amiga Rose. Chegara e tinha cruzado a Bahia em mais uma das minhas aventuras solitárias”. 


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