Alzheimer/Velhice

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Os trabalhadores da saúde


Nossa mente colonizada está bem acostumada à figura do herói. E ela vem associada aos tipos que, ou são deuses, ou recebem um superpoder por conta de alguma circunstância. Mas, o herói verdadeiro é aquele que sem nenhuma ligação divina ou poder adicional, enfrenta coisas muito maiores do que ele em nome de um bem comum. Por isso no nosso panteão de heróis temos figuras humanas falhas, fracas, contraditórias e tudo mais. Porque é o momento histórico que faz aparecer o herói. Ele pode ser uma criatura comum até que as condições históricas lhe cobrem um ato que sobrepassa suas forças, um ato de gratuidade, para além de qualquer recompensa. 

Têm aqueles que escolhem percorrer um caminho heroico. Entrar em uma batalha, ajudar numa tragédia, curar em meio à guerra. E têm os que são pegos no meio do furacão sem que lhes reste alternativa senão atuar em consequência. É o que estamos vendo agora, no campo do cuidado da saúde. De repente, em meio a uma pandemia, enfermeiras e enfermeiros, que até ontem eram seres invisíveis nos hospitais e centros de saúdem assumem o centro dos acontecimentos. Quem fica doente quer um médico, e é esse profissional que assume o foco da atenção. Mas, quem fica 20 ou 30 dias internado em um hospital sabe muito bem que é a enfermeira, os assistentes de enfermagem, o pessoal da cozinha e da limpeza os que vão  lhe dar o conforto, garantir o remédio na hora certa, a limpeza, o alimento, o cuidado.  

Diante da avassaladora crise do sistema de saúde causada pela infecção gerada pelo coronavírus, são esses profissionais os que assomam como anjos e heróis. 

Mas, uma olhada cuidadosa para toda essa gente mascarada que luta pela vida dos outros e já vamos perceber que eles fazem parte de uma classe muito específica: a dos trabalhadores. Não são filhos de deuses nem foram picados por uma aranha rara. São pessoas que amargaram anos de estudo, muitas vezes em condições ruins, e que para sobreviver precisam mais do que um emprego. No geral, a enfermeira trabalha em dois ou três lugares para poder juntar um valor considerado digno para manter uma família.  Ou se olharmos para os técnicos e o pessoal de apoio, vamos ver que cumprem oito horas diárias por um salário que mal cobre o mínimo. E esses, sequer têm a opção dos segundo emprego.

Lembro que durante anos, quando na direção do sindicato da UFSC, lutamos para garantir às seis horas como jornada da enfermagem. Entendíamos que esse é um trabalho duro, que exige muito, física e emocionalmente, e que as trabalhadoras precisavam de um período do dia para descansar e repor as energias. Por isso, causava estupor quando as companheiras vinham dizer que precisavam das seis horas para poder trabalhar em outro hospital, perfazendo assim 12 horas de trabalho diário. Ou seja, não era para descansar, mas para trabalhar mais, porque o salário é baixo e não vence pagar as contas. Algumas delas ainda faziam trabalhos extras de plantões. Um extenuante cotidiano, lidando, de quebra, com a morte e a dor. Já naqueles dias podíamos vislumbrar a jornada heroica dessa  gente que, ao final, é quase invisível como no geral são os trabalhadores de qualquer lugar. 

Agora, com a pandemia, as enfermeiras, enfermeiros, auxiliares técnicos e trabalhadores de apoio estão no centro da batalha. São para eles as lágrimas de agradecimento, os aplausos, a gratidão. Mas, o que estão fazendo é o que fazem todos os dias nos hospitais: garantindo que as vidas sejam cuidadas e salvas. E seguem fazendo isso nas mesmas condições. Sem os equipamentos de proteção adequados e sem salário digno. Provavelmente a maioria desses profissionais sai de um hospital para outro, como sempre, enfrentado pressão ao cubo. 

Assim que se agora eles e elas cumprem uma missão heroica em meio da pandemia, é preciso jamais esquecer que esse é o seu cotidiano. E que, quando tudo isso acabar, quando colocados diante de uma greve de trabalhadores da saúde, por exemplo, possamos lembrar o que esse pessoal representou nesses tempos duros. Ruben Alves dizia que a gente nunca percebe um órgão do corpo até que ele cause dor. E assim poderíamos pensar em outros aspectos da vida. Talvez, até ontem, muitos de nós não tivéssemos olhado para o fazer desses profissionais. Mas, agora, vimos. E não dá para “desver”. Esse povo que trabalha no setor da saúde está enfrentando com galhardia sua hora histórica. Que não seja esquecido. Nem agora, nem depois. 

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