Alzheimer/Velhice

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Uma marina para os ricos





Imagine que a Beira-Mar, que hoje já colapsa em quase todos os horários por conta do sempre crescente fluxo de automóveis, venha receber uma obra gigante: uma Marina, que é um espaço para estacionamento de barcos de médio e grande porte. Imagine ir para a Universidade – seja UFSC ou UDESC – por aquele que é praticamente o único caminho, todos os dias, tendo de enfrentar o tremendo impacto de uma obra dessa natureza? Não bastasse isso, a tal Marina pode ainda causar um número bastante grande de desequilíbrio em todo o entorno, impedindo ainda que os pequenos barcos dos pescadores e de passeios ecológicos possam circular. 

Pois bem, esse parece ser o cenário que está reservado para a cidade, com a prefeitura local dando seguimento ao processo licitatório para a construção de um Parque Urbano e uma Marina na Beira-Mar norte. Ocorre que apesar de vários pedidos de apresentação de relatórios e licenças ambientais que nunca foram atendidos, e até mesmo de um inquérito civil na Procuradoria do Ministério Público que exige uma série de esclarecimentos sobre o empreendimento, a proposta segue sem parada dentro da lógica das grandes obras que estão sendo realizadas pela prefeitura. 

Ainda em 2018 o procurador Eduardo Barragan entrou com pedido de revisão do projeto em função de uma série de questões que não estavam claras no diagnóstico apresentado pela prefeitura, que vinha, inclusive, com informações de 15 anos atrás que não davam condições de precisar os impactos reais na área. A procuradoria apresentou pedido de informações sobre os danos que poderiam ser causados às áreas de preservação que ficam no entorno, como o manguezal do Itacorubi (berçário de inúmeras espécies) e a Reserva do Pirajubaé. Observava também no inquérito que uma obra como a Marina iria impactar de forma decisiva o espaço, pois haveria muita dragagem e bota-fora de areia. 

Dava o exemplo da Marina criada na cidade de Salvador, Bahia, que, construída igualmente sem os estudos de impacto ambiental, acabou depois provocando intensa erosão na Praia da Preguiça. 

O inquérito também aponta que o local onde ficará a Marina é hoje espaço de circulação de muitos barcos pequenos, de pescadores artesanais e de passeios de eco turismo. Tudo isso irá por água abaixo com o grande estacionamento de barcos de luxo, que ainda pode trazer séria contaminação por óleo e por componentes químicos utilizados pelas embarcações na pintura anti-incrustrantes dos cascos, causando prejuízos a fauna e flora marinha.

O relatório, que apresenta ainda outros possíveis impactos da obra foi enviado a todas as entidades ambientais, prefeitura, câmara de vereadores. Uma a uma as instituições foram dando suas respostas, ou se esquivando, ou dizendo que não havia nada errado com a obra. 

Apesar disso, o processo foi parar no Tribunal de Contas do Estado porque a prefeitura queria fazer a obra com ônus para o município, alegando que era uma obra de interesse público, mas sendo ela de usufruto privado. O espaço será entregue por um valor bem abaixo do preço de mercado, numa das áreas mais caras da ilha, e tanto a prefeitura como os empresários estão abrindo mão da segurança jurídica, coisa que não é comum no mercado imobiliário. 

No documento preparado pelo Movimento de Luta pela Ponta do Coral Pública e Pelo Parque das Três Pontas, entregue ao Tribunal de Contas, os signatários questionam: “Ao empresário, em especial, cabe perguntar como conseguirá se planejar se um dos requisitos mais complexos e delicados, que são as licenças ambientais – requisitadas pela licitação – não tem parâmetros técnicos, orçamentários, financeiros, administrativos, e sequer estão definidas desde o início? Como este irá analisar os documentos do edital que orientariam os procedimentos administrativos, com as salvaguardas que estão em vigor sob o rigor da tutela coletiva do tema ambiental nos órgãos municipais, estaduais e federais?”

Mas, ao que parece, nem a prefeitura nem os empresários estão preocupados com as licenças ambientais e nem com a fiscalização do Ministério Público, apesar de já existir o inquérito civil questionando a obra. Não estão querendo saber se haverá ônus nem se fere os direitos da sociedade. Tudo o que importa é dar sequência ao empreendimento.

A Marina vai ser construída no metro quadrado mais caro da cidade, numa região que já bastante problemática quanto à mobilidade e à paisagem urbana e ambiental. Um lugar na baia que ainda serve de espaço de vida para as espécies e para os pescadores artesanais. 

Ainda segundo os argumentos do Movimento a baia é o espaço que apresenta o menor fluxo de renovação de águas, o  que já causa problemas de balneabilidade. Com a obra se somarão mais 123 mil metros quadrados de área para o parque urbano e 179 mil metros quadrados de espelho d’água privado, protegido por um quebra-mar e píer com capacidade de 650 vagas privadas (de 120 a 40 pés) e apenas 60 vagas públicas (de 40 a 30 pés) em meio à movimentação, ruídos e resíduos das 710 embarcações. Impossível não perceber o tremendo impacto que isso terá para a cidade.

Imaginem o que isso significará para a mobilidade e para a vida que viceja na baia? 

A prefeitura já determinou que a Marina só pode ser construída naquele espaço da Beira-Mar, e diz que isso não é negociável. Também aponta que só vai responder a questões de caráter ambientais, negando-se a pensar qualquer outra localização. Já deixou claro que não está disposta a discutir os impactos sociais, culturais, econômicos e ambientais, que, por conta das legislações vigentes, exigem alternativas locacionais mitigatórias frente a possíveis impactos e de perdas e danos irreparáveis, comprovados por pericias técnicas de EIV e EIA/RIMA.

Infelizmente o Tribunal de Contas deu sinal verde para que a licitação seguisse seu curso, ainda que não tenha ainda homologado e adjudicado o processo. Mas, a decisão já aponta que pouca coisa pode mudar. A prefeitura então já deu sequência a entrega dos envelopes e aos demais trâmites. Depois da abertura e julgamento das propostas deverá então encaminhar toda documentação para o TCE/SC, que vai avaliar se as irregularidades identificadas trarão ou não prejuízos ao certame, ao interesse público ou à sociedade. Caso se verifique o prejuízo, a licitação poderá ser anulada. Uma olhada no inquérito civil do Ministério Público mostra que as respostas dos órgãos ambientais já apontam para a liberação da obra.

O Ministério Público de Contas (MPC/SC) já se manifestou, via parecer, em três momentos no processo LCC 17/00419568. De acordo com a tramitação regular, o processo retorna ao MPC/SC (gabinete do Procurador-Geral Adjunto de Contas, Aderson Flores) após avaliação da área técnica do TCE/SC. Esse é o embate que acontece no âmbito jurídico, mas também há e haverá manifestações da sociedade organizada através dos movimentos populares. 

Nunca é de menos lembrar que estamos em um ano eleitoral e que a elite florianopolitana sem escrúpulos não medirá esforços para ter a sua marina, pouco se importando com os impactos que poderá causar às pessoas e ao ambiente. O prefeito Gean Loureiro é candidato à reeleição e quer marcar a gestão com grandes empreendimentos. Então, essa vai ser uma batalha das grandes. A mídia comercial, sempre do lado do empresariado, insiste em dourar o projeto como um ganho para a comunidade que poderá contar com um parque junto à Marina. Com isso, vão abortando a possibilidade do Parque das Três Pontas, pelo qual as comunidades lutam há anos, e que serviria ao turismo comunitário e aos pescadores. 

Com a Marina privada essa gente fica de fora. E o processo segue sem que a prefeitura escute o clamor popular pelos direitos constitucionais de controle e participação no processo decisório de empreendimentos potencialmente impactante. O movimento do Parque Cultural das Três Pontas lembra que isso já aconteceu quando da licitação e aprovação do Sistema Integrado do Transporte Coletivo de Florianópolis que, dois anos após a execução, dos nove terminais urbanos projetados e construídos, levou a desativação de três deles por inadequação frente à demanda, localização e a pretendida integração local regional. Um prejuízo para a cidade. Um prejuízo que até hoje os usuários do transporte pagam nas tarifas, via custos de execução e manutenção destes terminais. 

A população, como sempre, diz o documento “é vitimas das ações discricionárias e autoritárias do chefe do executivo municipal, e da inoperância dos órgãos de controle e fiscalização, como a Câmara de Vereadores e do próprio TCE-SC, que ainda não fez justiça e salvaguarda do direito e da economia popular, e nem puniu, com ato de improbidade administrativa, os responsáveis por tamanha negligencia”.

Os exemplos estão aí, só não vê quem não quer. Pagamos caro pelo transporte e pagaremos também para que os ricos da cidade tenham um espaço onde ancorar seus barcos. A marina não é um projeto para a cidade, é para poucos proprietários fruírem a vida. Para a maioria virá o custo e o terror da imobilidade urbana. 

Por isso é preciso que as pessoas conheçam a fundo o processo e entendam os impactos que virão. Depois de feita a obra não adiantará chorar. Olhando assim, é bonito. Mas a pergunta é: e serve a quem? 


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