O pêndulo da política segue seu incansável vai e vem. Por
isso, enquanto em alguns espaços do planeta conquistas são perdidas e avança o
retrocesso, em outros a luta por transformação assoma, com surpreendente força.
Um exemplo disso foi o que aconteceu na Índia, esse imenso país asiático, ainda
tão desconhecido para os latino-americanos. De lá, o que sabe o senso comum? Que
é a terra de Gandhi, que tem muita pobreza, que tem templos bonitos, muitos
deuses e espiritualidade latente. Raros são os que compreendem as razões da pobreza
extrema bem, fruto de uma tradição ultraconservadora somado com a destruição
colonial, bem como a estranha divisão da sociedade por castas, que se
configuram em espaços intransponíveis. Ou seja: quem nasce numa casta ali
permanece, e tampouco pode conviver com outra.
Um dos grandes dramas na Índia é o das mulheres,
principalmente o das de casta dita “inferior”. No geral são tratadas como
propriedade de pais, irmãos, parentes e maridos. Não são poucos os casos de
estupro coletivo registrado no país e a violência contra elas é generalizada. Em
muitos lugares elas são impedidas até de entrar nos templos para reverenciar
seus deuses. Direito é algo que parece inimaginável para a maioria.
E foi justamente a batalha das mulheres para ter acesso a um
complexo de templos, no estado de Kerala, que detonou um movimento gigantesco
de luta por direitos. Até então, por conta de regras pétreas da chamada “tradição
imemorial” elas não podiam entrar no templo de Sabrimala, dedicado a Ayyapann,
filho de Shiva, ao qual acorrem mais de 17 milhões de pessoas durante o ano. Depois
de muitas lutas a Suprema Corte da Índia suspendeu a decisão da justiça do
estado de Kerala, que já havia reiterado essa proibição em nome da tradição.
A decisão da Suprema Corte da Índia foi tomada em 28 de setembro
de 2018 e determinava que as mulheres poderiam entrar no templo, alegando que
essa discriminação não fazia parte essencial do hinduísmo, mas de um arraigado “patriarcado
religioso”. Com base nessa decisão o governo da Frente Democrática de Esquerda
do estado de Kerala liberou o acesso, enfrentando por isso uma série de
protestos de rua realizados por grupos reacionários de direita, incluindo aí o
partido Bharatiya Janata (BJP).
O clima seguiu bastante tenso em Kerala e, em outubro, o
chefe dos ministros do estado, Pinarayi Vijayan, que também é líder do Partido
Comunista da Índia fez um discurso público na defesa da ruptura de determinados
costumes. Ele afirmou: “Se uma tradição é um grilhão, devemos rompê-la”. E então convocou as mulheres a constituir um
muro vivo de protesto e de luta. A partir daí, conta o jornalista Vijay Prashad,
as pessoas foram se mobilizando. “Foram realizadas mais de cem reuniões
públicas nos últimos meses de 2018 para impulsionar o apoio e mais de 170
organizações progressistas da Índia se uniram à campanha”.
E foi assim que no dia primeiro de janeiro, a partir das
quatro horas da manhã, começou a se formar o muro humano que juntou cinco milhões
e 500 mil mulheres, ombro a ombro, por 620 quilômetros, em luta pela
emancipação das mulheres. “Aquele não era um muro da intolerância, como o de
Trump, mas um muro de liberdade, contra tradições que não fazem mais do que
humilhar as mulheres”, diz Vijay Prashad.
Prashad informa que K. K. Shailaja, ministra da Saúde de Kerala
e dirigente do Partido Comunista da Índia esteve a frente do muro em Kasaragod,
no norte do estado. O muro terminou em Thiruvananthapuram, a capital do estado,
onde a última pessoa na cadeia humana era a dirigente comunista Brinda Karat,
que reiterou: “Este muro de liberdade não é só para as mulheres de Kerala, mas para as
mulheres de todo o país”. Os movimentos de esquerda estiveram unificados nessa
importante manifestação de força.
A luta das mulheres contra as já insustentáveis tradições de
exclusão, violência e intolerância não é coisa simples na Índia. Os costumes
ainda são muito arraigados e não são poucos os assassinatos de mulheres por
conta disso. Mas, com o fortalecimento das forças de esquerda no país esses
pressupostos começam a ser questionados e deslegitimados inclusive legalmente, abrindo
caminhos importantes para que os direitos sejam respeitados, de fato, na vida real.
A incrível coluna feminina de 620 quilômetros que se expressou no primeiro dia
do ano sabe que há muitas coisas mais a conquistar do que o direito de entrar
num templo. Mas, devagar, elas vão acumulando forças, coletivamente, para
avançar em outros terrenos. O passo desse primeiro de janeiro é o primeiro.
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