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O problema não é a internet, mas o sistema que a toma como locus da espionagem e da ideologia |
As novas tecnologias e a criação das redes sociais colocaram
uma novidade na vida cotidiana de bilhões de pessoas: o acesso rápido às
informações e também a possibilidade de produzi-las e distribuí-las. Assim, o
que era até bem pouco tempo quase que exclusividade dos jornalistas ou
formadores de opinião ligados aos meios de comunicação, passou a ser comum para
qualquer pessoa no planeta que tenha acesso à rede mundial de computadores. Mas,
o que parecia ser uma vitória da democracia tem mostrado que, no sistema
capitalista de produção, nada mais é do que mais do mesmo. Isso porque nos
últimos tempos o que se percebeu foi que as informações que circulam na internet também estão dentro
da forma-mercadoria geradora de mais-valia ideológica. A enxurrada de notícias falsas,
fabricadas por empresas especializadas nesse fazer, tem servido para produzir “verdades”
que servem aos interesses do capital e das forças que conformam o poder
político e econômico do sistema.
Conforme dados divulgados pelas Nações Unidas, nos países
desenvolvidos 81% da população já tem acesso à internet, conformando 2,5
bilhões de usuários. Os países considerados em desenvolvimento têm 40% de conectados
e nos empobrecidos 15%, somando juntos apenas um bilhão. Já os que estão fora da bolha internética
somam 3,7 bilhões, sendo que a maioria dos “desconectados” se encontra na
África.
Mas, apesar de tantos ainda estarem fora da rede, a
possibilidade de entrarem está dada visto que a cobertura de celular já está
disponível para 95% da população global. E também avançam os planos de internet
para pobres no celular, que inclui apenas a possibilidade de acesso ao facebook
e uatizapi, o que significa uma única empresa no controle do que as pessoas
recebem de informação. Mesmo assim, ainda conforme as Nações Unidas, houve uma
desaceleração do uso da internet, possivelmente provocada pelos altos preços do
serviço.
Já o acesso da internet nos domicílios tem outra geografia.
No momento existem um bilhão de lares conectados, sendo que desse total 230
milhões estão na China, 60 milhões na Índia e 20 milhões nos 48 países menos
desenvolvidos do mundo. Ou seja, a desigualdade é visível. Enquanto 84% das
casas europeias têm internet, no continente africano apenas 15,4% possuem
acesso em casa.
Mas, apesar de a rede estar distribuída de maneira desigual,
claramente conforme as possibilidades econômicas de cada país, a repercussão do
que circula nas famosas “redes sociais” acaba chegando também nas pessoas que
não tem acesso, visto que os meios de comunicação massivos tais como o rádio e a
televisão estão tendo de subordinar-se ao que “bomba” na rede, reproduzindo
assim os conteúdos mais compartilhados. Basta uma tarde de domingo na frente da
TV aberta brasileira, por exemplo, e isso fica patente. Os programas de
auditório das principais redes trazem as figuras e os temas que mais tiveram repercussão
nas redes sociais.
Esse é um dado importante porque tanto para a mídia eletrônica
aberta, que é a que chega nos “desconectados”, quanto nas redes internéticas, o
que vale é o que “bomba”, o que tem mais curtidas e comentários, mesmo que a
informação ali contida não seja verdadeira ou não passem de bobagens. E é
justamente nesse nicho que estão concentradas as notícias falsas, geralmente fabricadas
por empresas especializadas a serviço de políticos ou de redes de poder.
No Brasil, recentemente, a Câmara de Deputados promoveu um
debate sobre esse tema visto que já existem na casa mais de vinte projetos de
lei buscando regular ou coibir as notícias falsas na internet. Para os representantes das entidades populares
que participaram da reunião, esse é um tema que não pode ficar relegado a um
parlamentar. Seria necessário um amplo debate público para que a sociedade
pudesse participar e sugerir coisas. Isso porque a maioria dos projetos em
tramitação trata de criminalizar os usuários ou as plataformas pela prática de
compartilhamento das notícias falsas. Ora, isso não tem sentido algum. É preciso
controlar aquelas empresas ou mesmo entidades que são as geradoras das
mentiras.
O fantasma da censura também aparece em muitas das falas dos
representantes de entidades civis que discutem o tema porque muitos projetos
apontam para saídas bastante complicadas como, por exemplo, tipificar
criminalmente informações sem aprofundamento, sem deixar claro quem julgaria o
que é sem aprofundamento ou qual nível de aprofundamento seria necessário para
que fosse uma notícia veraz. Igualmente criminalizar as plataformas poderia
gerar uma censura prévia, algo também muito complicado de se aceitar.
Bia Barbosa, do Intervozes, acredita que a única lei em
tramitação no Congresso que pode trazer contribuição de fato para o debate é a
lei de proteção de dados pessoais, pois, segundo ela, é justamente a partir da
coleta e do tratamento massivo de dados que se promove a construção de perfis
individualizados de cidadãos na rede e é para esses perfis que as chamadas
notícias falsas são disseminadas. Esse é, inclusive, o debate que acontece em
nível mundial, tendo sido desatado pelas revelações de Edward Snowden, ao tornar
público os programas de vigilância global efetuado por agências estadunidenses.
Não por acaso ele está ameaçado de morte. Ele tocou no centro da questão: o
controle dos dados pessoais.
O mais sério de tudo isso é que a maior das redes sociais, o
facebook, deixa bastante claro nas regras que apresenta para o usuário que
todos os dados sobre ele estarão coletados e já se sabe que essas informações
são usadas para oferecer produtos e ideias políticas. Tanto que o famoso “algoritmo”
que define como a informação é distribuída na rede, cada dia mais se aperfeiçoa
no sentido de criar guetos nos quais a pessoa é colocada, sem condições de
receber outras informações divergentes. E a pessoa aceita isso.
O tema é largo e ainda vai provocar muitos debates no campo
da cidadania. Afinal, como já foi dito, qualquer pessoa pode produzir conteúdo.
Mas, algo precisa ficar bem claro. Produção de conteúdo pessoal, feita por
qualquer criatura no mundo, não é a mesma coisa que notícia. A notícia é um
fazer específico do jornalista que deve estar ancorada nas regras já
historicamente determinadas. E para usar a teoria do jornalismo de Adelmo Genro
Filho, a notícia é uma forma de conhecimento que se faz a partir da singularidade
dos fatos, transitando para o particular e chegando ao universal. Ou seja, no
conteúdo noticioso o jornalista precisa oferecer a quem o ouve/vê ou lê toda a
atmosfera universalizante do fato narrado para que a pessoa possa entender as
causas e consequências que envolvem a notícia singular. Só isso já mostra que
99,9% dos conteúdos jornalísticos produzidos nos meios de comunicação por aí
estão fora dessa regra. No geral, as “notícias falsas” não são uma novidade do
mundo das redes sociais. Elas sempre estiveram aí, cotidianamente nos jornais,
rádios e revistas, servindo de ideologia para sustentar o modo de vida classe
dominante. Claro que, agora, passaram a ser uma mercadoria exclusiva de
determinadas empresas, especializadas em produzi-las para quem pagar mais. Isso
é que é novo.
Um dos pontos importantes nesse processo deveria ser o de identificar
e coibir essas empresas, entidades e pessoas que vivem (são pagas para isso) de
produzir e disseminar notícias falsas com o intuito de provocar atitudes,
reações e até induzir o voto num determinado candidato, ou provocar o ódio
contra pessoas e instituições. Mas, como tudo isso já virou um rentável negócio,
no mais das vezes, essas empresas, entidades e pessoas que já são bastante conhecidas,
acabam ficando intocáveis sob o manto do empreendedorismo ou do “empresário bem
sucedido”.
Assim, o tema das redes e das notícias falsas na verdade é
só mais uma cortina de fumaça para não atacar o verdadeiro problema que é
justamente o capitalismo realmente existente, que para se manter como modo de
produção precisa manter a ideologia que o sustenta em constante movimento. No
caso, agora potencializada pela velocidade e pelo alcance das redes sociais,
que ao contrário dos tempos da mais-valia ideológica promovida pela televisão, permite
a interação e a formação de grupos coesos em todo mundo, movidos pela mesma
ideia, pelos mesmos preconceitos e capazes de atuar também de forma coesa na
vida real. É só mais um potente e eficiente mecanismo do capital.
Nesse sentido, todas as medidas inibitivas ou punitivas de “excessos”
que surgirem nada mais serão do que paliativos para a manutenção da vida do
mesmo monstro que vem assombrando a vida dos trabalhadores desde há 300 anos. As
redes sociais não são democráticas nem espaços de liberdade. Na verdade são
cada vez mais espaços de aprisionamento das mentes e dos corações em nichos
preparados com maestria pelos “sacerdotes” dessa esmagadora religião que é o
culto ao capital.
Por isso que o debate sobre as notícias falsas, ou a
apropriação dos dados pessoais pelas empresas oligopólicas que comandam as
grandes plataformas internéticas não pode ser feito descolado do contexto no
qual elas existem. É o sistema capitalista e nele vale tudo para que seja
mantido o estado de coisas. Isso tanto é verdade que a solução que tem
aparecido em nível mundial é a da formação de agências que irão vigiar as
informações e sua veracidade. Agências que pertencem aos oligopólios empresariais
e que ganharão rios de dinheiro para fazer esse trabalho. Ora, como a raposa
pode vigiar o galinheiro? O capitalismo é sabido mesmo.