Alzheimer/Velhice

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Da bondade


Meu avô era um italiano de quase dois metros de altura e de uma ternura infinita. Sempre que me vêm as imagens da infância é o seu rosto alegre que assoma, sua risada, suas piadas. Mesmo vivendo na mais dura miséria nunca perdia a capacidade de nos fazer rir.

Meu avô era um homem bom. Viveu pobre por isso. Lembro como se fosse hoje os tempos em que ele tinha um bar na rua 28, em frente ao bebedouro, em Uruguaiana. Do lado do bar tinha uma casa de prostitutas, a mais famosa da cidade e a casa do vô tinha um portão que dava direto no pátio das mulheres. Elas circulavam por ali com desenvoltura, vindo buscar cigarros no bar, os quais levavam de fiado. No geral nunca pagavam e o vô tinha pena de cobrar. Achava que elas tinha uma vida dura demais.

Como reciprocidade ele pedia que elas nos levassem – eu e minha irmã – para passear na carruagem que a "casa" tinha e com a qual circulavam pelo centro para chamar a clientela. Era uma carruagem preta, dessas tipo diligência, toda forrada de cetim vermelho, um deslumbre. E a gente ia com a cabeça para fora da janela, bem serelepe, no maior orgulho.

Nos dia de verão, que em Uruguaiana sabem ser quentes, ele chamava a gurizada da rua para distribuir picolés. Tudo de graça. O nosso preferido era o de abacate, de um sabor espetacular. Não era um nem dois, eram muitos. Não tinha como lucrar.

E quando, já tarde da noite, os borrachos renitentes insistiam em tomar mais uma, ele, compadecido, dava junto com a pinga pedaços de pão com salame, para que eles não ficassem tão ruins. Igualmente não cobrava.

Eu ficava junto com ele, cotovelos no balcão de pedra, até a hora de fechar, acompanhando a romaria dos borrachos. Minha função era cortar os salames em rodelas, as quais ele pedia “bem grossas” para forrar bem o estômago. Tem base? Era como um anjo.

Não foi sem razão que em pouco tempo estava falido e de volta ao campo, plantando arroz, que era o que ele mais sabia fazer.

Meu vô Dionísio sempre foi meu exemplo. Nessa foto sou a que está a esquerda dele, de olhos graúdos e alertas, agarrada ao meu sumo-bem. Ainda tenho longas conversas com ele, cheias de risos...


domingo, 13 de maio de 2018

Orlando Caputo: lição de vida

Eu, com Orlando Caputo, na porta da UFSC

Estávamos na mesa do restaurante, durante as Jornadas Bolivarianas. E, por sorte a compartilhávamos com Orlando Caputo, um dos criadores da Teoria Marxista da Dependência. Para lá dos seus 70 anos, ele comia devagar, olhado ao redor com olhos curiosos. Conversa vai, conversa vem, o compa argentino, Facundo Cardella,  comenta o quanto deve ter sido difícil para ele amargar um exílio de tantos anos longe do Chile depois do golpe militar. 

Caputo, que viveu a utopia da Unidade Popular no Chile, a que levou Allende a presidência, foi viver no México depois do golpe dado por Pinochet, que resultou no assassinato de Allende e no de milhares de outros chilenos. 

Caputo demorou a responder, mastigando a comida lentamente, os olhos meio que perdidos em lembranças. Então, passados alguns minutos, quando até já tínhamos pulado para outro assunto ele falou, como se fora um oráculo: “Não foi fácil, mas tratei de fazer que fosse feliz”. A frase, lapidar, e o olhar sereno nos tocaram profundamente. E ficamos ali, quietos. Ele continuou. “Tinha dois filhos pequenos na época e o que pude fazer foi dizer a eles: estudem, viajem, conheçam e respeitem a cultura local. Foi o que eles fizeram, o que nós fizemos. E foi bom. Foi feliz”.

Eia aí a beleza de saber viver. Ser de onde se está, e buscar viver feliz, apesar de tanta dor. 
O que nos restou foi abraçar bem forte aquele homem gigante, que nos dias que passou aqui, absorveu tudo de maneira muito intensa. Seus olhos, vivaces, estavam sempre brilhando, como se tivessem presenciando maravilhas. 

Caputo é estelar.