Uma impotência tão grande |
Hoje, durante a reunião com a trabalhadora Juliane de Oliveira, na sala da diretora da Prodegesp/UFSC, onde ela foi chamada para assinar sua exoneração, depois de um processo totalmente irregular, só tive olhos para duas pessoas: seus filhos. O maior, talvez de uns treze anos, ficou atrás da mãe, encostado à parede, com olhos de espanto. A menina, pequena, ficou no colo, e, talvez, sentindo o bater acelerado do coração de Juliane, não parava de chamar por ela: mamãe, mamãe, como se ali, naquele nome, encerrasse todo o medo que parecia sentir. Uma cena de cortar o coração.
Num átimo, aquela imagem de impotência da pequena família acossada pela injustiça, me remeteu a um passado bem distante, na velha São Borja, quando minha mãe foi até a casa de um falso amigo de meu pai que tinha nos tirado tudo. Naqueles dias, o homem cobrava umas promissórias que meu pai, inadvertidamente, tinha assinado para ele, em confiança, sem saber que na verdade estava entregando a casa e tudo o que havia dentro.
Meu pai estava longe, em Minas, e o homem chegou à nossa casa com os oficiais de justiça para tirar os móveis e tudo o que lá havia. Foi um terror ver cada pequena coisa carregada de história sair para nunca mais. Deu-nos, então, 30 dias para abandonarmos a casa que tomara para si, basicamente roubando. Eram minha mãe e os três filhos, ela, sozinha, contra a raposa. Quando já estourava o prazo para deixarmos a casa ela foi até o apartamento dele pedir mais tempo. Não tínhamos para onde ir e já não tínhamos sequer o que comer. Todas as coisas tinham sido levadas e nós sobrevivêramos vendendo nossas roupas. Tínhamos então cada um apenas duas mudas de roupa. Dos móveis só sobrara a máquina de costura da mãe, que uma vizinha escondera. Dormíamos no chão nu.
Aquela foi uma noite violenta e inesquecível. Minha mãe implorando ao homem que nos roubara. Não havia sentido. Eu, que deveria ter uns 13 anos, e meu irmão, com nove, estávamos ao seu lado, tentando dar a força que necessitava, mas tão assustados quanto ela. A família do homem nos rodeara, e as crianças, que antes eram nossas amigas e brincavam conosco, agora nos humilhavam dizendo: “acaba com eles, pai, acaba com eles”. Foi talvez a coisa mais dolorosa que nos aconteceu, e tanto, que durante anos eu planejei vingança.
O fato é que o homem não teve misericórdia e nós tivemos de abandonar nossa casa, construída anos a fio, com tanto sacrifício. Saímos dali com a roupa do corpo e a máquina de costura no rumo do desconhecido. Meu avô tinha acabado de morrer. Era um momento terrível. E nós fomos embora com num pau-de-arara ao contrário, para Minas Gerais. Nunca esqueci. O ônibus saindo de São Borja e as lágrimas caindo diante da injustiça e do medo. E eu jurando vingança ao melhor estilo de novela mexicana.
Minha mãe era uma leoa. Mesmo longe ela não se abateu e continuou lutando para provar que a casa era nossa e que o homem tinha enganado meu pai. Ela moveu céus e terra, nunca esmoreceu e anos depois, conseguiu a casa de volta. Já tínhamos comido o pão que o diabo amassou e ela desenvolvera uma tuberculose, já tinha vindo a fome, o abandono, tudo de ruim. Mas, ela, enfim, venceu. No dia em que recebeu o dinheiro da casa, saiu conosco, os três filhos, e disse: comprem o que quiserem. Voltamos para casa com um aparelho de som último tipo e os discos da Maria Bethânia e do Zé Ramalho, além de um jogo de sofá. Foi apoteótico.
Mas, apesar da vitória com relação à casa, aquela noite de profundo medo e humilhação no apartamento do bacana nunca saiu de mim. Assomava, vez em quando, nas noites cálidas de Minas e a vingança chamava. Armei planos mirabolantes e voltei para São Borja. Meu plano era matá-lo e me preparei.
Passados tantos anos cheguei a São Borja pronta para cumprir meu destino e quis a providência que no primeiro dia eu já soubesse sobre ele. Algumas desgraças tinham se abatido sobre a família e eu já comecei a fraquejar. Mas, o que me derrubou mesmo foi encontrar a garota, que era minha amiga, e que gritara naquela noite: “acaba com ela, pai”, num supermercado. Ela era uma sombra, um escombro. Saí dali, bati o pó das sandálias e nunca mais voltei. Não necessitava vingança. A vida havia se encarregado.
Ainda assim, nos meus sonhos, em noites frias de inverno, quando bate o vento norte, eu acordo sobressaltada ouvindo aquelas vozes, vendo aquele esgar de ódio, e sentindo outra vez o desejo da vingança. Aquilo nunca saiu de mim. Minha mãe, ali, tão frágil, diante da tragédia.
E foi essa mesma fragilidade que vi naquela sala, na Prodegesp. Juliane, acossada diante da injustiça, com seus verdugos marcando o ponto onde deveria assinar sua exoneração com um sorriso na boca. E os filhos com aquele olhar de medo, de não-sei-quê. Como podem? Como podem infligir tamanha dor? Foi assim que me veio de novo esse ódio, esse desejo de vingança, como naquela longínqua noite em São Borja. Porque sei que esse será um momento indelével para aquelas crianças. E isso é imperdoável.
O bom é que ao contrário da solidão da minha mãe, Juliane estava amparada por vários colegas, trabalhadores da UFSC, que estão lutando lado a lado com ela. E quando saiu dali, saiu em comunhão. Isso pode mudar tudo. E talvez a marca daquele momento se esboroe. Não sei...
O que sei é que, tal qual minha mãe, Juliane é leoa, e vai vencer.
Já eu, não sei, estou aqui, espumado...
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