Alzheimer/Velhice

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Sobre a conjuntura, fascismos e golpes



Não pretendo falar do julgamento do STF sobre o Habeas Corpus de Lula. Não é isso que interessa. Julgo que todo o processo que envolve as denúncias contra o ex-presidente tem vício de origem, logo não deveria ter chegado até esse ponto no qual chegou, com duas condenações absurdas, de nove e depois expandida para 12 anos. No campo do direito, não são poucos os juristas que apontam a inconsistência nas provas contra Lula. E, se um dos princípios basilares da lei burguesa é a presunção de inocência, não teria motivo de ser diferente só porque o acusado é um ex-presidente. Logo, o julgamento é político. Não faltará quem jogue na cara: então tu apoias a corrupção do Lula? Não, não apoio. Nem do Lula, nem de ninguém. Os que comandam a máquina capitalista todos têm as mãos sujas de alguma forma. Mas, se formos nos ater a letra fria da lei penso que provas concretas são necessárias, contra quem quer que seja: amigo ou inimigo meu.

Vejo claramente algumas coisas que gostaria de dividir para o debate:

Primeiro: Sim, foi golpe o que aconteceu em 2016. De um jeito novo, mas foi golpe. E estamos vendo esse golpe se desdobrar vertiginosamente. “Primeiro a gente tira a Dilma”, disseram, e é assim mesmo. O que vem depois vai pegando primeiro os petistas e no desenrolar pode pegar qualquer um. Isso é fato. Uma hora vai chegar ao cidadão comum. Alguém pode dizer que o cidadão comum sempre esteve vivendo num estado de exceção e de certa forma é verdade. Os empobrecidos sempre estão com a lei sob suas cabeças, como uma faca afiada, coisa que não ocorre com os do topo da pirâmide. Exemplos não faltam, de um e de outro lado. Vejam os números de mortes impunes nas favelas, nas periferias. Vejam a situação dos aprisionados, grande parte sem julgamento. Vejam os ricos que matam e traficam e saem impunes. Tudo isso é verdade. Mas num tempo de golpe, a ação contra os inimigos do “estado de coisas” se potencializa, cresce e deixa a vida confusa. A mão da lei, que é a mão do poder, pode pegar qualquer um, sem precisar usar a lei. O contrato social representado pelas leis, ainda que frágil na democracia burguesa se rompe definitivamente. Tudo passa a valer. Inclusive convicções pessoais viram provas. Isso não pode ser aceitável.

Segundo: a direita brasileira conseguiu colar no Lula e no PT a imagem de “comunista”. Todos os que temos compreensão da realidade e conhecemos a fundo o que é o capitalismo, o socialismo e o comunismo, sabemos que o PT e o Lula não são comunistas. O máximo que podemos conceder é que eles sejam de um liberalismo de esquerda, com certa pegada social e uma preocupação com os empobrecidos, ainda que insuficiente. Mas, não adianta dizer isso a essas gentes que já estão inoculadas com essa “verdade” do petista/comunista. É por isso que esse povo vai para as ruas com suas camisas da seleção – que representam a pátria -  gritar contra Lula e o PT. Porque pensam que eles são comunistas, e acreditam que o comunismo é o mal. Veem o comunismo com os olhos da direita, sequer sabem bem o que isso significa. Precisaríamos de muito tempo para desconstruir isso. Muito trabalho de base. Não se consegue com discursos nem com postagens no facebook. Ainda mais que o próprio facebook trabalha para consolidar essa mentira que virou verdade. O tal do face é uma usina de mentiras, tal qual os grandes meios de comunicação.

Terceiro: sim, há fascismo nessa conjuntura brasileira e isso não é banalizar o termo. Teothonio dos Santos, no seu livro “Socialismo ou Fascismo” ajuda a gente a compreender esse movimento. Ele avalia que existem atitudes fascistas, movimentos fascistas e fascismo. Cada caso é bem diferente um do outro Ele faz sua análise nos anos 70 do século passado e é claro que não podemos transplantá-la para hoje. Mas ajuda a pensar. Segundo Teothonio,  o fascismo surge quando há uma ameaça à nação e um movimento de unidade nacional que aparece para salvá-la. Não é o caso no Brasil. Mas, acontece que foi criado um consenso que diz o contrário. Nesse consenso liga-se o PT ao comunismo e isso aparece como uma ameaça. É o que dizem os comentários raivosos de um bom número de pessoas. Nesse caldo, figuras como Bolsonaro, militares ou políticos da direita de todas as cores, aparecem como lideranças capazes de colocar ordem na casa. A casa bagunçada pelo capitalismo aparece como uma casa bagunçada apenas pelo PT. “No tempo dos milicos não tinha violência”, dizem, e não analisam o tempo de um Brasil ainda rural, sem os males das grandes metrópoles. A violência não é coisa do PT, ela é estrutural do capitalismo.

O fascismo, diz Teothonio, aparece quando as lideranças populares estão desorientadas ou chegam ao poder e não conseguem dar respostas às lutas do povo. Temos essa realidade com o governo do PT que, de certa forma, não conseguiu avançar nas demandas populares e domesticou sindicatos e movimentos. Hoje temos essa desorientação. Também, para que o fascismo se expresse para além de ações isoladas é necessário que existam grupos marginais e decadentes que se organizem contra o socialismo, o comunismo ou as demandas populares. Temos isso hoje no Brasil de maneira muito clara.

Teothonio diz ainda que para que o fascismo se instale como projeto de governo é necessário que haja uma crescente luta popular que ameace a burguesia, então, ela, com a ajuda do grande capital, trava a luta. Bom, não temos grandes levantes populares, mas não estamos adormecidos, e a burguesia local impõe via meios de comunicação essa “verdade”: os comunistas querem voltar. Isso é forte. Talvez não tenhamos mesmo as condições materiais e históricas para um regime fascista no Brasil. Mas isso não significa que não tenhamos de conviver com movimentos pontuais e atitudes fascistas. Coisas que já observamos claramente hoje. Isso tem de ser combatido, sob pena de avançar.

Nesse contexto todo, misturando os ingredientes, a situação é de fato dramática para esquerda, porque é necessário apontar cenários e saídas a essa camada da população que hoje se mobiliza na campanha de “eleição sem Lula é fraude”. Esse é, na verdade, um projeto muito reduzido para nossa esquerda nacional. Posso entender os partidos se juntando em atos públicos para rechaçar atitudes e movimentos fascistas, mas isso não toca na essência do problema. Não há verdadeiramente um projeto nacional que sirva de rede para nossos desejos. Não há. O projeto que boa parte das gentes em movimento hoje tem é o projeto petista, que já mostrou suas fragilidades e suas insuficiências.

Como acreditar que as coisas possam ser diferentes?  Que a política econômica não será comandada por gerentes do capital? Que os meios de comunicação comerciais de massa não seguirão realizando a mais-valia ideológica sem freio? Que a auditoria da dívida será feita e o que for ilegal não será pago? Esses pontos não estão no horizonte petista hoje. Nesse sentido, antes de pensar em uma frente com essa força seria necessário avançar muito mais, para além da proposta esquerdo/liberal.  

É fato que no mundo real só podemos trabalhar com a realidade real, como diz o economista José Martins. E sabemos que os caminhos da mudança são tortuosos e difíceis, necessitando de construção coletiva massiva. Mas, não podemos rebaixar os horizontes. Como dizia Galeano a utopia foi feita para a gente caminhar, e a utopia não é um lá-na-frente impossível. Ela é um lá-na-frente que ainda não chegou, mas que pode chegar. Então, nossas propostas e bandeira precisam se erguer além do possível. Claro, sem deixar de observar o que é possível no agora. Mas esse é um caminho dianalético ( sim, dianalético, como em Dussel), ou seja, no confronto entre tese e antítese, assoma a voz da comunidade das vítimas, os que estão fora do horizonte do sistema ( e não fora do sistema). É com esses, que clamam desde a exterioridade, que temos de caminhar. E a esses não basta serem incluídos na máquina de moer carne. O que se quer é outra forma de organizar a vida, na qual as maiorias não fiquem de fora – seja das riquezas, seja da possibilidade de decisão.

Resumindo: nesses dias de estupor diante do papel da Justiça, das vozes da caserna que assomam pela TV, dos movimentos fascistas, posso me solidarizar com os partidários de Lula na compreensão de que está sendo travada uma cruzada contra o PT e não contra a corrupção. Mas, ao mesmo tempo conclamo aos companheiros e companheiras de tantas lutas que ampliem o olhar, aumentem o horizonte das lutas, e fortaleçam a utopia. O lá-na-frente não pode ser um pouco mais de justiça, um pouco mais de salário, um pouco mais de democracia. O lá-na-frente tem de ser nosso sonho maior, de trabalhadores livres, solidários, com o fim da propriedade privada, as riquezas repartidas, o poder popular. O comunismo.

Talvez não cheguemos lá agora, mas chegaremos, se para lá dirigirmos, de verdade, nossos pés e nosso coração. 



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