Foto: Billy Culleton |
Foto: Billy Culleton |
Foto: Rubens Lopes |
Ruben Alves tem um texto no qual fala que o nosso corpo é como
uma hospedaria na qual vivem muitas pessoas diferentes, muitos “eus”. Vez em
quando é um ou outro que assoma à janela. Seu Getúlio Inácio era assim também:
uma hospedaria. Há quem fale que era muito autoritário, fruto de sua disciplina
militar, outros dizem que era de difícil convivência, por conta das rixas de
pescadores, bem típicas do litoral. Outros o viam apenas como pai, ou marido,
ou avô, ou tio, ou amigo, e cada uma dessas facetas era diferente uma da outra.
Eu o conheci já como maestro e líder comunitário. Essa era a face que aparecia
na janela sempre que eu o via, passando com seu passo lento, olhar no chão,
cuidadoso e firme. E eu o amava.
Pois foram todos esses “Getúlios” que as pessoas saudaram
nessa quinta-feira, um primeiro de fevereiro, dia de sol no Campeche. Era a
hora de dizer adeus a esse homem de tantas faces, que, mais do que qualquer
outra coisa, amou esse lugar com todas as suas forças. O Campeche, o campo de
peixe dos aviadores franceses, que aqui paravam para descansar do longo voo até
Buenos Aires. O lugar de morada e de vida de famílias centenárias como a dos
Inácio, dos Rocha, dos Daniel. Espaço de belezas e lutas de outras tantas
famílias que aqui fincaram suas raízes e que seguem defendendo esse chão como
um bairro-jardim.
E foram todas essas gentes que acompanharam Getúlio até sua
morada final, plantado bem ali, na beira do mar que o acolheu tantas e tantas
vezes, comandando a canoa Glória.
O maestro e pescador se foi como viveu: entre música. Desde
menino aprendeu com o pai que os barulhos da vida à beira da praia eram
harmonias de deus e ele logo foi domando as notas musicais, produzindo música.
Durante seu tempo como militar, foi entre os instrumentos que construiu seu
caminho. Músico e depois regente da banda da Base. Mais tarde, já aposentado,
decidiu que era preciso cuidar da gurizada do bairro. A música foi o caminho. Abriu o rancho, pediu licença à Glória e,
enquanto ela descansava na areia ele dava vida ao projeto “Música no Rancho da
Canoa”, em parceria com os demais pescadores. Por ali então passavam meninos,
meninas, e gente adulta que queria aprender a tocar um instrumento. E a música ecoava
na praia fazendo coro com o barulho das ondas. Reuniu outros maestros, ampliou
a ideia e coletivamente deu novos rumos a muita gente, iniciada ali entre o
cheio de peixe e as paneladas de estopinhas de arraia do seu Hélio.
O rancho virou então um espaço cultural. Abria-se para a
música, para o cinema, para as rodas de capoeira, para o jogo de dominó, para
exposições de fotografias, shows do povo da terra, lançamentos de livros. Era
uma casa coletiva. Tinha festa toda hora, regada a bolos, guaranás, com direito
ao delicado som do clarinete do seu Leni, aos acordes dos alunos e dos maestros
amigos. Mas, não era só isso. Ele ainda carregava o rancho para fora da praia,
levando os alunos para tocar nos asilos, nas festas da igreja, nos natais no
centro da cidade.
Tenho gravadas suas palavras, ao telefone, quando ligava,
sistematicamente, para chamar meus sobrinhos – frutos desse lindo projeto do
rancho: “Avisa aos mineiros que tem tocata e que não esqueçam o uniforme. Temos
de preservar a nossa cultura, né?”. Ou então, suas histórias, sempre deliciosas,
sobre “papai”, que era o seu Deca, amigo de Saint-Exupery. E sua expressão
peculiar, quando deparado com qualquer coisa que o animasse: “interessantíssimo!”
Seu Getúlio ainda conseguiu coisas inimagináveis, como reunir
os desafetos. Isso acontecia na missa do Primeiro de Maio, organizada por ele
para saudar o início da Pesca da Tainha. Então, como era um momento único para
a comunidade, a gente ia para a missa, tendo de conviver com figuras que no
cotidiano são adversários, como Amin, Dário Berger, Gean, César Souza, Rodolfo
Pinto da Luz. É que o seu Getúlio tinha esse respeito pelas autoridades e fazia
lá os seus acordos com eles para garantir coisas para os pescadores ou para a
comunidade. Eu mesmo torcia o nariz, mas ia à missa em consideração ao maestro.
Muitos outros companheiros também iam de cara enfezada com os desafetos, mas
entendendo a importância daquela reunião anual, à céu aberto, na beira da
praia, nosso único lugar de encontro coletivo.
Nessa quinta-feira, na hora do adeus, ele conseguiu isso
mais uma vez. Lá estavam os políticos e outras tantas criaturas não gratas,
pelo menos à mim. Lá estavam os camaradas das lutas sociais, o povo da cultura,
os capoeiras, os músicos, os pescadores, os ambientalistas, as gentes simples
da beira mar. E a banda da Base, junto com os tantos alunos que passaram pelo
rancho, entoaram música para que ele fosse embora, embalado pelas notas que
tanto amou. “Amigos para sempre é o que nós iremos ser, na primavera ou
qualquer das estações. Nas horas tristes, nos momentos de prazer, amigos para
sempre...”
E assim foi. Com música, sol alto, mar quebrando na areia, gaivotas
voando rasante. O corpo de Getúlio ficou ali, no pequeno cemitério. Mas sua
energia cósmica haverá de voejar pelo Campeche para sempre. Porque cada
cantinho tem o seu toque. Na entrada da praia, a estátua do pescador, trazida
por ele, anuncia que essa comunidade tem história e memória. Assim, Getúlio nunca
será esquecido. Porque ele, lutando para preservar a memória do pai e a amizade
com o aviador, acabou por tornar-se ele mesmo um novo personagem. Com
identidade própria. Maestro, condutor, desbravador de caminhos.
No meio da tarde, quando passei no rancho de canoa, tendo ido
beber sua vida, deparei-me com as portas abertas e dentro dele, alguns
pescadores jogavam dominó, seguindo a existência. A brisa era leve, o sol
quentinho, havia gritos de criança. De repente, tudo era música e dentro de mim
vibrou o clarinete, suave, como suave era o seu Getúlio. Pelo menos era assim
que ele aparecia na janela que eu conseguia ver. Chorei.
Getúlio cumpriu um papel de guardião da história da nossa
comunidade, da nossa cultura. Não sei agora como será. O Campeche, cresceu,
mudou, recebeu muita gente que não se importa com nada. Mas, acredito que
alguém surgirá, vestido de água, nesse dia de Iemanjá, pegará o bastão e
seguirá pela trilha palmilhada pelo maestro.
Meu amigo Bira, outro apaixonado por essa comunidade, contou
que quando saía para a despedida, alguém pediu ajuda para levar a esposa à
maternidade. Nascia uma criança. E assim é a vida. Sempre se renovando. Haveremos
de seguir...
Obrigada por tudo seu Getúlio. Nunca esqueceremos!
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirObrigada Elaine por mais este momento de emoção!
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