Alzheimer/Velhice

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Das perdas



Foi lá pelo final dos anos 90, eu fazia mestrado em Porto Alegre. Aluguei um pequeno apartamento no Bomfim, bairro dos meus encantos, e por ali saracoteava entre a PUC, Lancheria do Parque, o bar João e o Parcão. Pura alegria. Nos primeiros meses o dividi com outra companheira de Florianópolis, mas ela terminou seu curso e eu fiquei sozinha. Então, conheci uma garota no mestrado. Era de outro país e havia perdido a bolsa. Ainda lhe faltava um ano para terminar a dissertação. Estava desesperada, sem saber como iria continuar em Porto Alegre.

Então, ofereci a ela ficar comigo no apartamento. Era pequeno, mas não havia problema em receber mais uma pessoa. Ela veio e passou a compartilhar a vida comigo. Não cobrava aluguel dela, óbvio, e tampouco a comida que repartíamos. Sem bolsa, ela ganhava alguns trocados, fazendo um que outro bico.

Eu havia arrumado bem bonitinho o cafofo, pois sempre gostei das coisas assim. Tinha um sofazinho, uma escrivaninha, computador. Tinha meus badulaques latino-americanos pendurados pelas paredes, fogão, geladeira, armário, cama, cômoda. Era um lugar definitivamente fofo. Também havia flores. Viver Porto Alegre desde aquele pequeno espaço no Bomfim era tudo de bom.

Passado um ano, ela me disse que iria se mudar. Já tinha entregado sua dissertação e havia conhecido um rapaz por quem se enamorara. Fiquei feliz. As coisas iriam se ajeitar. Mas, ela não sabia quando. Então, num fim de semana vim para Florianópolis e ela ficou em casa, como sempre. Na terça-feira, quando voltei, a surpresa. Cinco horas da manhã, ainda meio dormida da viagem enfadonha girei a chave. Era um apartamento vazio. Oi? Sim. Completamente vazio.

Voltei e olhei novamente o número na porta, podia ter me enganado e entrado em outro apartamento, sei lá. Não. Era o meu. E estava limpo. Não havia nem os vasinhos de flor. A garota fora embora e levara tudo com ela. Meus livros, minhas roupas, meus quadros, meus enfeites, computador, roupa de cama, os víveres, tudo. Não ficara absolutamente nada. Nem um fio de linha. Tampouco um bilhete, nada.  Fiquei ali, parada, entre estupefata e triste. Como era possível? Eu havia lhe estendido à mão na sua pior hora. E assim ela retribuía? Meus livros, todos marcadinhos... meus livros, a perda maior. Zaratustra, do Nietzsche, um edição portuguesa, com todas as anotações de uma vida de leitura.

Sem condições de repor todo o mobiliário fiquei no apartamento mais alguns meses, dormindo no chão, ele todo vazio. Foi minha experiência humana mais triste. Fiquei pensando que se ela queria os móveis e tudo mais para recomeçar a vida, poderia ter pedido. Eu daria de bom coração, pois logo sairia de Porto Alegre. Eu já não era muito apegada às coisas, mas esse episódio reforçou ainda mais em mim o desapego. As coisas são coisas. Elas vão e vem, e só importam se são uteis.

Só não superei o lance dos livros. Porque, sei lá...  Para mim, os livros não são coisas, são entidades cheias de cheiros, rugosidades e surpresas. Têm vida ali dentro.

Anos depois, numa manifestação de uma das edições do Fórum Social Mundial, eu vi a garota do apartamento, Tereza, caminhando de mãos dadas com seu namorado, participando da passeata. Por um segundo pensei em abordá-la, pedir meus livros. Mas, deixei pra lá. Ela parecia feliz.  Talvez tenha sido a energia das máscaras originárias que ela levara da parede. E, como dizia minha mãe, “mais tem deus pra dar que o diabo pra tirar”. E assim é. 


Um comentário:

  1. Uauu. Tbm fiquei triste pelos livros. Que experiência!!! Este é o SER, humano. Obrigada por compartilhar

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