Conto escrito nos anos 90, baseado numa notícia de jornal...
A notícia
chegou sem muita surpresa no morro do Tico-Tico. Tinham matado o Birigui. No
armazém do seu Antão, a rapaziada tomava sua caninha e discutia o assunto de
forma acalorada. Gervásio ria alto, com sua boca sem dentes, dizendo a toda
hora: “bem feito, bem feito!”. Maria Antônia, quieta no seu canto, perto da
caixa registradora, lembrava o dia em que Birigui lhe cercara na boca do morro.
Ele a tinha encostado ao muro, enquanto falava baixinho que ela era uma “nega”
gostosa. Foi enfiando as mãos pelas pernas acima, apertando, apalpando e o
cheiro de pinga que saía de sua boca ia penetrando nela com mais força que o
dedo do invasor. Não tinha como gritar e, mesmo que gritasse, quem iria ajudar?
Então, o jeito foi deixar-se ficar, muda, enquanto ele brincava nela até
cansar. Depois do serviço, Birigui foi embora, assobiando um pagode do Aragão,
sem nem sequer olhar para trás. Por isso, ela também repetia, no silêncio de si,
“bem feito, bem feito”.
Cada um naquele
bar tinha uma façanha do Birigui para contar. Era nêgo ruim, vagabundo. Nunca
ajudou a mãe, que vivia abraçada nos santos, pedindo proteção para o “pobre
filho”, como ela o chamava. E o “pobre” estava sempre encrencado com a polícia.
Tinha assaltado um mercadinho lá para os lados de Coqueiro, e acertou, sem dó,
a cabeça do dono, só porque ele demorou-se em abrir a caixa onde estava o
dinheiro. Traficava drogas e estava sempre aprontando. Isso sem contar o número
de mulheres que ele havia estuprado ali mesmo, no morro.
Ninguém, em
sã consciência, gostava do negro agigantado, com aquela marca de queimadura no
lado direito da cara. A mãe dele contava que o acidente, responsável pela
cicatriz, tinha acontecido nos tempos de criança. Ele havia queimado a cara no
dia em que botara fogo num gato, que tinha amarrado vivo, numa espécie de
pau-de-arara. Era nêgo ruim o Birigui.
Quando
trouxeram o corpo para o morro, a correria foi geral. Todos queriam ver a cara
daquele a quem nunca tinham ousado desafiar. Antes, ele era o dono do morro,
agora estava ali, servindo de piada para todo mundo. Até os garotos menores,
vinham e tocavam, sem medo, na queimadura da cara, puxando para ver se era
real. Depois, riam, riam muito e berravam, “olha a cara do negão, olha a cara
do negão”, numa espécie de cantiga de roda.
O seu Antão,
satisfeito, ofereceu o espaço do bar para fazer o velório, afinal, no barraco
da velha não iria caber toda a gente que queria olhar para o Birigui inerte,
morto, sem perigo. Assim, a notícia do velório no bar logo se espalhou. Foi
colocada uma cartolina branca, com enormes letras vermelhas, bem na porta do
armazém. “HOJE PROMOÇÃO: CERVEJA GELADA SÓ UM REAL”.
Quem subia o
morro, na volta do trabalho, via a placa e ia ficando. Era o velório do
Birigui. Farra total. Na pequena sala, de chão de madeira, colocaram o caixão
aberto. As cadeiras ficaram encostadas no lado direito da sala, para os
parentes. Mas de parente mesmo, apareceu só a mãe. Ela chegou cedo, na mesma
hora em que chegou o caixão. E ficou ali, sentada, quase sem se mover. Só os
lábios mexiam num sussurrar sem sentido, talvez numa língua desconhecida,
destas dos orixás que enchiam que enchiam seu congá. Não tinha lágrimas a velha.
Todas já haviam secado, ao longo dos oitenta anos de vida.
E enquanto
ela adormecia o filho bandido com suas rezas, em volta o clima era de festa.
Seu Antão ia e vinha na velha geladeira, buscando a cerveja gelada. Os filhos
da nega Carlota enrolavam um cigarro de maconha e já tinha gente por perto
querendo ajudar a “puxar”. As meninas foram chegando com roupas de domingo, os
cabelos amaciados com manteiga de karité. Juvenal trouxe o violão e logo Maneco
mandou buscar o pandeiro e o cavaco. A galera se assanhou e, em dois toques, o
pagode correu solto. Algumas mulheres, vizinhas do barraco do Birigui, trouxeram
linguiça para fritar, e logo um cheiro gostoso invadiu o velório.
No pique do
samba, decidiram afastar o defunto para o lado, quase colado à parede. A velha
mãe seguiu junto, com suas lamúrias, parecendo não notar a festa que rolava ao
seu lado. Quando o samba parava para a rapaziada descansar, a mãe Mariana vinha
com seus causos de assombração. Nesta hora, todos davam uma espiadinha no
morto. Manezinho, chapado, levantou com fúria e, sem mais delongas, acertou a
cara de Birigui.
- Reage
agora, vagabundo – berrava com a voz pastosa, os olhos vermelhos feitos brasas.
A galera ria e aplaudia.
Quando o dia
clareou, encontrou a velha ainda ao lado do caixão, ela também um pouco morta.
As portas do bar estavam fechadas e, do lado esquerdo, perto do balcão, saíam
gemidos. Era Eneida, que se enroscava no corpo do Dagoberto, numa dança de
pernas e bocas. Estava acabado o velório. Dali a pouco seria hora de enterrar o
morto. E quando o casalzinho afogueado saiu do bar, o velho Biga gritou, do
barraco da frente.
- Festa boa,
heim?
E Daboberto,
ajeitando as calças, retrucou:
- Boa demais
para um safado feito o Birigui.
A nêga
sorriu e foi se afastando, subindo o morro com o passo cadenciado de velha
passista.
Ninguém
acompanhou o enterro de Birigui, só a mãe. Afinal, aquela gente ali tinha muito
mais o que fazer na vida.
Sensível, mirada profunda e humanidade exposta feito entranhas. Gratíssimo, querida Elaine.
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