Alzheimer/Velhice

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Sobre o trabalho e a luta dos jornalistas em Santa Catarina


























O sistema de produção que domina o mundo - capitalismo – não tem moral. E o que significa isso? Que aos que comandam o processo não importam as gentes. Os seres humanos são apenas números, dados, estatísticas. Máquinas de trabalho capazes de produzir valor. Única e exclusivamente. Pouco se dá aos capitalistas se alguém perdeu o emprego, se teve o braço cortado, se se matou por não ter como dar comida ao filho, ou se vai fenecer lentamente por não conseguir manter a vida. As poucas pessoas que dominam o mundo das mercadorias sabem que há milhões de outra pessoas de reserva, prontas para assumir o lugar de quem morre. A máquina continuará produzindo, gerando capital e lucros apenas para uma pequena parcela da população. É por isso que pessoas como o deputado Nelson Marquezelli (PTB/SP) são capazes de dizer: “se o pobre não tem dinheiro, que não vá para a universidade. Meus filhos vão”. Ou seja, aos pobres só está reservado o trabalho. Nada de cultura, educação, lazer  ou saúde.

A exploração dos trabalhadores é algo que faz parte da natureza do capital. Como eles só tem sua força de trabalho para vender, acabam aceitando acordos que não dão conta de garantir uma existência plena. Sem os meios materiais para produzir mercadorias, os trabalhadores precisam aceitar trabalhar para alguém que é dono da fábrica, do estado ou da empresa, por um salário de fome, que, quando muito o manterá vivo em condições bastante precárias. E não adianta lutar por salário. Esse pagamento nunca será capaz de garantir o mesmo banquete com o qual se lambuza a classe dominante. O patrão determina o preço que vai pagar pela força de trabalho, e o trabalhador aceita ou não. “Quem não tá satisfeito, que vá embora”, dizem os donos dos negócios. E o trabalhador sabe, que sem os meios de produção, não terá como garantir a sua vida. Vai fazer o quê, se não tem máquinas, nem o capital para iniciar um negócio?

No caso da periferia do sistema, em países como o nosso, os trabalhadores sofrem uma exploração a mais. Além de já ter o salário rebaixado, enfrentam uma jornada de trabalho estendida. Como os patrões têm máquinas que otimizam a produção, o trabalhador acaba produzindo muito mais. Logo, ele vai morrendo e se desgastando mais rápido enquanto o patrão vai enchendo mais os bolsos.  

Podemos observar isso muito concretamente na categoria dos jornalistas. Um tipo de trabalhador que produz uma mercadoria muito especial: a informação. Esses trabalhadores ganham, em Santa Catarina, um piso de 2.100 reais. É por esse valor que eles vendem a força de trabalho que irá produzir as notícias. Esse valor pagaria cinco horas de jornada, mas as empresas grandes exigem que os jornalistas façam uma jornada estendida, mais duas horas. Então, a jornada fica sendo de sete horas. Eles ganham hora-extra, é verdade, mas é um valor insuficiente para garantir uma vida boa. No geral, essas sete horas são superdimensionadas porque as novas tecnologias agora obrigam o jornalista a produzir muito mais, e mais rápido. Com isso vem mais desgaste para o corpo e para mente.

Como os meios de comunicação combinam espaços de texto impresso, fotografias, rede social, página web e outras cositas más, o trabalhador é obrigado a cumprir a função de vários trabalhadores. Ele tem de sair da redação, muitas vezes dirigindo ele mesmo o carro,  buscar a informação, anotar, fotografar, postar no blog, tratar a foto,  mandar a foto para o editor do impresso, redigir a matéria, postar a matéria nas plataformas - várias. Muitas vezes, durante uma cobertura de rua, por exemplo, é comum ver o mesmo profissional fotografar e imediatamente postar nos blogs do veículo, carregando máquina fotográfica e computador, em uma azáfama desumana de trabalho. Na verdade, um único trabalhador está cumprindo a função de vários profissionais – pelo menos nove funções diferentes – e recebendo como um. Imaginem então, quanto o patrão não lucra com esse único trabalhador...

Esse é um exemplo completo do que Ruy Mauro Marini, um teórico brasileiro da maior importância, conceituou como superexploração, um modo de existir do sistema capitalista que é típico dos países subdesenvolvidos.

Hoje, em Santa Catarina, os trabalhadores jornalistas vivem mais um processo de busca de melhoria salarial. Os donos das empresas sequer querem negociar, apesar de registrarem lucros astronômicos, justamente por serem capazes de tanta exploração.  No ano passado, os hipócritas que dominam os meios concederam um aumento de 10 reais. Um acinte, uma provocação. Mas, os trabalhadores que só têm sua força de trabalho para vender, que não têm as condições de eles mesmos criarem uma agência de notícias, ou abrirem um canal de televisão, não têm o que fazer. Aceitam, porque precisam continuar vivendo.

Só que rebaixar salário não é suficiente para os barões da mídia. Eles ainda enxugam as redações, demitem pessoas e exigem que os que ficam trabalhem mais e mais. Até o esgotamento. Na verdade, os que produzem as notícias que cada pessoa vê ou lê, são como os escravos nas galés. Obrigados a remar até a exaustão, golpeados, chicoteados. E quando caem, são substituídos por outro, sem dó nem piedade. Lembrem: o capital não tem moral. Pouco importam as gentes.

Agora, com a alardeada crise na economia, é isso que acontece. Incapazes de perder um centavo nos lucros, os patrões cortam na carne daquele que não tem os meios para garantir a vida: o trabalhador. Se formos buscar nos balancetes das empresas, as contas estarão equilibradas e os lucros possivelmente crescendo. Para os capitalistas não existe crise. Existe rearranjo. A crise estoura é na vida do trabalhador. Ele perde o emprego, tem o valor da tarifa do ônibus aumentada, fica sem posto de saúde, sem educação. Vai perdendo vida. Mas, ninguém se importa. A mercadoria estará ali, pronta para a venda, sem que quase ninguém saiba o sacrifício daqueles que a produziram.

Na lógica da alienação, nem mesmo o próprio jornalista que produz a notícia se dá conta de todo o processo de exploração que está ali embutido naquela notícia. Um processo que não começa com ele, mas que envolve uma cadeia de outros milhares de trabalhadores e trabalhadoras que plantaram árvores, que as colheram, que produziram o papel, que extraíram os minerais que compõe os computadores e assim, sucessivamente. Numa simples notícia de jornal está condensada uma massa tão grande de valor que só é possível por conta do sacrifício de milhares de pessoas, exploradas até o talo.

Diante disso, que fazer? A primeira coisa é entender o processo de produção. Não perder de vista que o produto do nosso trabalho é fruto dessa cadeia de outros trabalhos, que se faz num processo de superexploração, que nos mata lentamente para que outros possam viver à larga, na abundância. A segunda coisa é se organizar, nos sindicatos, nos movimentos de luta, nos coletivos. Afinal, diante da força do capital – que detém não apenas os meios de produção, mas o Estado e as forças de repressão – as saídas só podem ser coletivas.

No caso dos jornalistas de Santa Catarina, sem poder de fogo o sindicato precisou apelar para o dissídio, que significa deixar na mão da justiça a decisão sobre o reajuste de salário. Mas, se a justiça é parte do estado e mancomunada com a classe dominante, que se pode esperar dela? No máximo, dará uma sentença de reposição da inflação, seguindo a regra da PEC 241 que para os trabalhadores praticamente sempre existiu. Nada mais se pode esperar desse espaço de gente ultra bem remunerada justamente para servir aos interesses dos  que dominam.

Então, estamos de volta ao começo. Só a luta coletiva muda a vida. Sair do torpor que a superexploração imprime, conhecer o processos de produção, des/alienar e lutar coletivamente. O sindicato sozinho não tem força para dobrar o patrão. Ele precisa da presença do trabalhador e da força de luta de cada um e cada uma.

Riscos? Sim, todos! Mas, como diria José Martí, antes morrer de pé do que viver ajoelhado.


quarta-feira, 19 de outubro de 2016

"Fuditruqui", ou o fim da convivialidade



























O velho bar Assim-Assado sendo demolido

O bar era um lugar de encontros



No espaço de convivência havia espaço para os Centros Acadêmicos - aqui, uma hora feliz no CALE


Na universidade a gente não deixa de surpreender. Há quatro anos o Centro Sócio-Econômico destruiu um espaço de convivência no qual ficavam o bar e os centros acadêmicos. Ali, a vida fervilhava. Primeiro porque abrigava os espaços de luta dos estudantes e eles circulavam sem parar, conspirando, debatendo, tramando. E, em segundo lugar, porque era o espaço do encontro de todas as gentes: estudantes, técnicos, professores e visitantes.

As mesinhas vermelhas enchiam-se na hora do intervalo. As pessoas conversavam, comiam, traçavam plano, se conheciam. Lugar para se estar e ficar. Lugar para se demorar, no cara-a-cara com a vida e com as pessoas. Convivência real.

Quando o prédio caiu, ficou a expectativa de que no lugar dele – onde surgiria o prédio da pós-graduação – também renasceria o velho espaço da convivência, porém mais bonito e mais acolhedor. Engano. O prédio se ergueu sem planejamento nenhum para o encontro das gentes. Só as salas frias de aula e administrativas. Gente tem de trabalhar e estudar. Que coisa é essa de se encontrar? Perigoso, talvez!

Eu esperei a revolução. Como podia os estudantes ficarem sem lugar para sua organização? Sem salas do Centro Acadêmico, sem espaço de convivência, a única reação possível era a rebeldia. Pois não veio. Passaram-se os anos e eu segui sozinha numa cruzada por um centro de convivência. Nada.
O tempo passou e os estudantes foram se adequando ao cenário de comer rapidamente, na porta do centro, os lanches que alguns vendedores decidiram trazer. Os poucos minutos em que se engole a comida não servem para o encontro. É só a manutenção da vida.

Agora, poucos dias antes da eleição para diretor de centro anuncia-se a colocação de um carrinho de comida, desses do tipo estadunidense, os chamados “fuditruqui”, que já contém no nome a natureza da sua qualidade.

Quem conhece um pouco das terras do norte sabe que, lá, é bastante comum os trabalhadores não almoçarem. Eles comem um lanche rápido, um cachorro-quente, um hambúrguer, coisa assim. E o fazem na beira do carrinho, em pé, sem muita mastigação, porque, afinal “time is money”  e a roda da fortuna não pode parar. Pois é isso que os dirigentes da universidade parecem querer para todos nós. Nada de encontros, nada de junção de gente, nada de ficar conversando, fruindo a beleza da vida. Rápido, rápido, comer rápido e voltar. Não é sem razão que os lugares de convivência estão morrendo em toda UFSC. Até mesmo o velho e pungente Centro de Convivência hoje é um lugar vazio de vida. Time is money, aqui também....

Alguém vai dizer que a gente é sempre do contra, que um carrinho de “fuditruqui” é bem legal, que isso não impede a convivialidade, e tudo mais. E eu então digo, leiam Milton Santos. O espaço interfere radicalmente no modo de vida. A organização do espaço organiza as gentes. Tudo está ligado.

Dito isso, insisto: quero de volta o lugar do encontro.  Que dizem os candidatos??? Que fazem os estudantes? Qual a atitude dos professores e técnicos?


A minha é clara: espaço de fruição e de luta é necessário e urgente. Vamos lutar por isso, companheirada. 

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Minuano e Tormenta

























Vivi até os 16 anos em São Borja, fronteira com a Argentina, na pampa, região de descampado. Espaço de muitos conflitos, ora de espanhóis, ora de portugueses, sempre de guaranis, charruas, minuanos e tapes. Banda oriental, terra de Manuel Artigas, el caciquillo, grande guerreiro charrua.

Além da geografia – campo aberto, sem morros ou montanhas – dois recorrentes fenômenos naturais forjam as gentes do lugar: o vento minuano e as tormentas. Quem passa por isso pode enfrentar o que mais vier nessa vida. Assim dizem os mais velhos.

O minuano é um vento forte e gelado que vem das zonas polares. É cortante, enregela ossos e alma. Quando ele sopra poucos se encorajam sair de casa. Eu não. Ainda menina, gostava de colocar o brinco de argola, sem qualquer proteção na cabeça, e andar pelas ruas vazias, afrontando sua força. O vendo assoviava, passando pelo brinco, fazendo um som de choro, um lamento, alguma coisa muito triste. Mas, ao mesmo tempo, aquele zunido me aparecia como um desafio. Avançar pelos caminhos, de cara para o vento, sozinha, era meu jeito de festejar a chegada do frio.

A “tormenta” é outro fenômeno que também forja nosso espírito. Chuva forte, vento louco, raios e trovões assustadores. Quando ela vinha todos se abrigavam nas casas, acendendo ramos bentos, fazendo ladainhas para Santa Bárbara. Minha mãe cobria todos os espelhos da casa, desligava os eletrodomésticos e fechava as cortinas. Mas, eu, não me abatia pelo medo e gostava de apreciar o espetáculo. Corria para a janela e espiava o tropel da natureza, passando em desenfreada carreira, arrastando coisas e gentes. A força incomum da Pachamama, mostrando que nada pode detê-la, muito menos a arrogância humana. Tempo de aprender que o planeta tem de ser espaço de convivência e não de destruição.

Quando tudo parava, as gentes saiam pelas ruas, olhos postos na destruição, ajudando os vizinhos que tinham tido as casas destelhadas ou derrubadas. Um mutirão de solidariedade em meio à devastação.

Essas eram cenas que se repetiam, ano a ano. O minuano no inverno, as tormentas no verão. Duas estações de embates, quando enfrentávamos o destino de viver na pampa, nos construindo como fortalezas. E, no meio disso, a alegria de viver, de resistir, de renascer. Força e sensibilidade.

Talvez por isso o Campeche me tome assim, por inteira. Aqui voeja o vento sul, esse malino, que arranca as roupas do varal, descabela e destelha. E chega de chofre, em qualquer estação. Para mim, filha do minuano, ele é só uma brisa. E me enredo na sua dança louca, tal qual fazia nos caminhos de São Borja, com o vento assoviando nas orelhas.

Agora, por tantas alterações que fazemos com a natureza, já chegam por aqui também as tempestades, como ontem. Raios, trovões e ventania. Mas nada que se compare ao tropel da tormenta fronteiriça. Por isso, espio da janela, sem nem acender ramos bentos. Enquanto a chuva bate com força, eu chimarreio e penso que a tormenta, a tormenta mesmo, aquela, da pampa, vive é em mim. E, tal como na fronteira, aparece assim, sazonal, poderosa e arrebatadora.

É bom que se tema. É bom que se tema! E para essas há que clamar à Santa Bárbara.