Vivi até os 16 anos em São Borja, fronteira com a Argentina, na pampa, região de descampado. Espaço de muitos conflitos, ora de espanhóis, ora de portugueses, sempre de guaranis, charruas, minuanos e tapes. Banda oriental, terra de Manuel Artigas, el caciquillo, grande guerreiro charrua.
Além da geografia – campo aberto, sem morros ou montanhas –
dois recorrentes fenômenos naturais forjam as gentes do lugar: o vento minuano
e as tormentas. Quem passa por isso pode enfrentar o que mais vier nessa vida.
Assim dizem os mais velhos.
O minuano é um vento forte e gelado que vem das zonas
polares. É cortante, enregela ossos e alma. Quando ele sopra poucos se encorajam
sair de casa. Eu não. Ainda menina, gostava de colocar o brinco de argola, sem
qualquer proteção na cabeça, e andar pelas ruas vazias, afrontando sua força. O
vendo assoviava, passando pelo brinco, fazendo um som de choro, um lamento,
alguma coisa muito triste. Mas, ao mesmo tempo, aquele zunido me aparecia como um
desafio. Avançar pelos caminhos, de cara para o vento, sozinha, era meu jeito
de festejar a chegada do frio.
A “tormenta” é outro fenômeno que também forja nosso
espírito. Chuva forte, vento louco, raios e trovões assustadores. Quando ela
vinha todos se abrigavam nas casas, acendendo ramos bentos, fazendo ladainhas
para Santa Bárbara. Minha mãe cobria todos os espelhos da casa, desligava os
eletrodomésticos e fechava as cortinas. Mas, eu, não me abatia pelo medo e
gostava de apreciar o espetáculo. Corria para a janela e espiava o tropel da
natureza, passando em desenfreada carreira, arrastando coisas e gentes. A força
incomum da Pachamama, mostrando que nada pode detê-la, muito menos a arrogância
humana. Tempo de aprender que o planeta tem de ser espaço de convivência e não
de destruição.
Quando tudo parava, as gentes saiam pelas ruas, olhos postos
na destruição, ajudando os vizinhos que tinham tido as casas destelhadas ou
derrubadas. Um mutirão de solidariedade em meio à devastação.
Essas eram cenas que se repetiam, ano a ano. O minuano no
inverno, as tormentas no verão. Duas estações de embates, quando enfrentávamos
o destino de viver na pampa, nos construindo como fortalezas. E, no meio disso,
a alegria de viver, de resistir, de renascer. Força e sensibilidade.
Talvez por isso o Campeche me tome assim, por inteira. Aqui voeja
o vento sul, esse malino, que arranca as roupas do varal, descabela e destelha.
E chega de chofre, em qualquer estação. Para mim, filha do minuano, ele é só
uma brisa. E me enredo na sua dança louca, tal qual fazia nos caminhos de São
Borja, com o vento assoviando nas orelhas.
Agora, por tantas alterações que fazemos com a natureza, já
chegam por aqui também as tempestades, como ontem. Raios, trovões e ventania.
Mas nada que se compare ao tropel da tormenta fronteiriça. Por isso, espio da janela,
sem nem acender ramos bentos. Enquanto a chuva bate com força, eu chimarreio e
penso que a tormenta, a tormenta mesmo, aquela, da pampa, vive é em mim. E, tal
como na fronteira, aparece assim, sazonal, poderosa e arrebatadora.
É bom que se tema. É bom que se tema! E para essas há que clamar à Santa Bárbara.
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