Fotos: Rubens Lopes
Até ontem minha vida era a rotina do caos. Manifestações,
reuniões, aulas, trabalho, atos, palestras. Um universo em alta rotação. Vida
louca. Nenhuma preocupação maior a não ser mudar o mundo com a barafunda de
ações e vontade. Então ele chegou. Veio sem querer, mansinho e silencioso. Das
brumas do passado, descortinando outra forma de viver. Desarranjou tudo e
colocou a existência de pernas para o ar.
Meu pai.
Do alto de seus 84 anos, iniciou agora um processo de deslembrar. Memórias
que vão se perdendo, nomes, lugares, momentos. Sabe-se lá o porquê disso.
Doença, senilidade, vontade. Agora, está na minha casa e na minha vida, feito
uma criança grande, precisando de cuidados.
Lembro como se fora hoje dos dias em que íamos ao estádio de
futebol. Eu agarrada na sua mão, adentrando ao campo, aos vestiários, descobrindo
a magia do futebol e do jornalismo. O mundo do rádio. Também lembro de mim, conduzida pelo seu senso
de justiça e de amor pelos livros. Por conta dele – que comprava todos os livros
dos vendedores que batiam à nossa porta – aprendi a ler bem cedo, a amar as palavras e a construir mundos com elas.
Não foram poucos os caminhos pelos quais ele me guiou. As
letras, as margens do rio Uruguai, os campos do Japejú, o uso do microfone, a
poesia campeira, o universo das novelas de rádio, a música sertaneja, os fandangos
de galpão, a honestidade calvinista, a responsabilidade com o outro.
Quando saí de casa, aos 17 anos, levava tudo isso na bagagem
e foram esses saberes que me conduziram nas insanas trilhas por onde passei. Feito
pandorga, loucamente solta no ar, mas firmemente atada a esse jeito de ser no
mundo. Quase 40 anos depois, não sou eu quem volta, mas ele. Precisando da
minha mão para adentrar nesse mundo estranho do esquecimento. E ele está aqui.
Toda a vida conhecida até agora vai mudar. Há que sentar com
ele ao sol, tomar chimarrão, puxar pelas lembranças antigas, cantar, ver o pôr-do-sol,
apreciar o canto dos passarinhos. Há que caminhar passinhos pequenos, sem
pressa, controlar os remédios, cuidar da higiene, brincar. A missão mais
importante do dia é lhe arrancar uma gargalhada. Nada de reuniões, nem atos
públicos, nem compromissos. Só esse ficar quieta, com ele, na manhã.
A isso meus parentes originários chamam de reciprocidade. A
hora de dar, porque muito já se recebeu. Então, também para mim é chegada a
hora das ausências. Vou fazer esse caminho das des/lembranças, na parceria com
o pai. Cruzar com ele os portais dos postos de saúde, das esperas por exames,
da amarga odisseia dos que precisam do sistema público.
E pelas ruas do Campeche vamos seguir, mão na mão, como
naqueles distantes dias, em São Borja, quando eu adentrava aos mundos
desconhecidos com ele. Lá, ele me guiava. Agora, guio eu.
Deslembrar é isso né? Abrir caminhos para o amor brotar, inconteste e incontrolável, de cada fibra do corpo da gente... suavizar o passo, acalmar a vida.
ResponderExcluirAbraço grande, com igual ternura.
Por tanto amor/ Por tanta emoção, a vida e o teu pai te fizeram assim.
ResponderExcluirObrigado
Dê um abraço no seu pai
E se dê um beijo por mim