Alzheimer/Velhice
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domingo, 9 de agosto de 2015
Uma conversa de bar
Porto Alegre, noite de chuva e frio. Saí para um café e um pão com manteiga. Na lancheria (que é como os porto alegrenses chamam lanchonete) próxima à Farrapos encontrei guarida. Uma mulher atendendo e outra tomando cerveja, sozinha. Fiz o pedido e aguardei. As duas iniciaram um papo louco sobre ratos. "Porto Alegre está infestada de ratos. Estão por todo lugar. Aqui no centro mesmo, é um horror. E são enormes, parecem até uns coelhos", dissertava Denise, a atendente. A outra, de nome Bia, assentia fazendo cara de apavoramento. "E o pior é que esses ratos aqui do centro sobem nos apartamento. Eles vão bem alto. Eu moro no quinto andar e um dia, ao entrar no banheiro, lá estava um em cima do vaso, olhando pra mim".
- Que horror. Fugiste?
- Capaz! Eu peguei a arma e atirei nele. Dei três tiros. Errei dois, mas um acertou. Ele escapuliu correndo porta afora, mas eu acho que morreu. Meu marido tem medo, sai disparado. Mas eu não, eu dou tiro mesmo. Se aparecer, leva bala.
A conversa ainda fluiu sobre ratos, como se dar tiros neles fosse algo comum, e depois foi desviando para as gentes. "Eu tenho pena é dos moradores de rua. Os ratos andam sobre eles, estão por tudo. E tem o perigo de pegar aquela doença, a leptospirose. Eu cuido deles, dos moradores. O meu filho não gosta, diz que são tudo vagabundo. Eu nem ligo, ajudo mesmo", comentou Bia. "Outro dia eu dei uma bicicleta para um deles, o Wagner, que eu conheço faz tempo. A bicicleta era do meu filho, mas ele não usava há anos. Dei e pronto. Levei a maior bronca. O meu filho disse que ele ia vender pra comprar cachaça. Nos primeiros dias ele andou por aí com a bici, parecia um louco na rua. Eu até pensei que tinha dado a morte pra ele. Ia se matar daquele jeito. Mas, em três dia vendeu. Eu tive que vender, me disse. E eu aceitei. É a vida dele".
Denise ouviu a história e concordou com a amiga. Era preciso ter o coração bom quando o assunto era essa gente que ninguém gosta.
- É assim. Basta ser diferente. Aqui na lancheria as gurias tem medo de atender os haitianos, agora tu vê? Ela dizem que viram na televisão que eles estão todos doentes. E aí têm medo de pegar doença. Eu fico bem braba. Não admito discriminação. Se elas têm medo de pegar doença que lavem os pratos e os talheres com água quente. Água quente mata tudo que é bicho. Mas discriminar os haitianos na minha frente, ah, isso não. Eu faço questão de atender bem, coitados.
- Bem que tu faz. Eles só estão buscando uma vida melhor. Não tem nada a ver. São tudo seres humanos - insuflava Bia.
Vez ou outra elas me incluíam na conversa, olhando pra mim, esperando por uma reação. Ora eu ria, ora assentia, constrita. Ora comentava alguma coisa. E a noite avançava.
Naquela simples lancheria de Porto Alegre a solidariedade aparecia, concreta, na figura daquelas duas mulheres que, sem maiores discursos além de suas práticas cotidianas, mostravam que a vida pode ser melhor quando se respeita o outro como outro, diferente, mas real. No cuidado com os moradores de rua e os imigrantes elas tornavam aquele momento único. Uma trabalhadora e uma solitária mulher de classe média, parceria insólita, e uma passageira cliente, unidas no amor às gentes, numa chuvosa noite gaúcha. Às vezes, por nada, a vida assume contornos bonitos demais.
Naquele pedaço do centro porto alegrense, a matadora de ratos e a salvadora de mendigos, seguiram sua conversa amorosa e doida, enquanto a chuva lavava a calçada, território livre dos roedores.
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