Alzheimer/Velhice

sábado, 30 de maio de 2015

Uma mirada no paraíso






Então, de repente, tudo fica gris. O outono perde suas cores e a beleza parece se esconder sob as nuvens. Chove, e chove e chove. Dias e dias sem sol, pessoas ligeiras sob os guarda-chuvas, caras amarradas, roupas molhadas, sapatos encharcados. Mau humor. As dores ficam mais doídas e quase falta o ar. Na televisão as notícias de enchentes, vendavais, deslizamentos, aprofundam o mal-estar. Essa dura e difícil convivência do humano com a natureza. 

 Até que, depois de uma tenebrosa tempestade, o dia amanhece. E um raio de sol fura o dia. Está frio, mas a simples luminosidade solar faz parecer que tudo ficou "patas arriba". Os passarinhos cantam loucamente e até as corujas, notívagas, se demoram no muro, celebrando a manhã. Os cachorros saltitam atrás das borboletas e os gatos esticam as patinhas, preguiçosamente. E a gente mesmo salta da cama depressa para aproveitar cada segundo do sol. Há roupas para lavar, janelas para abrir, tapetes para bater. A vida se movimenta dentro e fora de casa. 

A chuva finalmente parou. Como por encanto estamos diante do dia como um navajo diante de seu território: beleza ao lado, beleza em cima, beleza embaixo. A vida é um caminhar na beleza. São esses momentos únicos nos quais se tem a exata dimensão de que somos, de fato, seres fadados à beleza, como ensina esse esplendoroso povo do norte. 

A vida se enche outra vez de cor. O cotidiano assume outra face. Fica quase sagrado. As flores que, teimosamente, ainda se dependuram nos vasos dizem: sobrevivemos. E se mostram em radiosas cores, vaidosas, como a rosa do principezinho de Exupery. Os frutos que resistiram no pé vicejam e se entregam, prontos para a oblação. Sempre haverá uma mão para colher e uma boca sôfrega para sorver o doce da laranja e o azedo do limão. Outras árvores se mostram em gestação. Há vestígios de que os frutos logo brotarão. As ameixas apontam. Num vaso improvisado dentro de um balde de plástico, as mudas vicejam, como meninas nas manhã de abril. Estão verdes e fortes. Bem logo serão adultas, parideiras de gostosuras. 

 No jardim mal-arranjado e muito pouco planejado, as plantinhas vão encontrando caminhos para se espalhar e a terra inteira se move em um balanço bruxólico, bem comum nesse lugar. Sob a terra até as minhocas parecem dançar em meio a compostagem que transforma todo o orgânico em vida outra vez. Folhas velhas, cascas, frutos caídos do pé, se transformando. Nada morre. Tudo vibra. E aquele que sofria por um amor perdido, ou aquela que chorava por uma dessas dores da vida, se coloca de pé. O que era lágrima vira riso, porque a dança da vida outra vez principiou. Essa vida ordinária, cotidiana e aparentemente igual, que esconde maravilhas, assoma, agigantada pelos raios de sol. 

O mundo recomeça seu giro depois da borrasca. É tempo de calmaria. A natureza ensinando que as coisas são assim mesmo, seja fora ou dentro da gente. Vez em quando tudo vira um turbilhão, aguaceiro, vendaval e a gente perde o pé, arrastada pela ventania. Mas, passado um tempo, ainda que estejamos feridos e lacerados, as águas baixam e o sol volta a brilhar. Somos irremediavelmente fadados à beleza. Nada podemos fazer para mudar isso. Nenhuma dor, nenhuma cicatriz impede que nossos passos sigam a trilha do encanto, esse átimo de segundo que pode valer uma vida. Um momento feliz. Que pode ser essa manhã depois da chuva. Essa visão do paraíso que nos toma inteira. Depois, pode vir a dura peleia do dia, as lutas políticas, o ódio, a perda, a solidão, o desamor, qualquer coisa. Mas, se a gente espiou esse jardim secreto da beleza, uma única olhadela, já estamos salvos.





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