Fotos: rubens lopes
Eu tinha pouco mais de vinte anos, no início dos anos 80, quando avistei o primeiro
acampamento de sem-terra do MST. Era no interior da cidade de Ronda Alta, na
estrada do Pontão. A Fazenda Annoni tinha sido ocupada por mais de 1.500
famílias e eu era repórter da RBS TV. Nunca saiu de minhas retinas aquela cena
primeira, num virar da estrada, de centenas de barracos de lona e gentes em
profusão. A bandeira vermelha, a fumaça dos fogões de chão, a correria das
crianças e dos cachorros. Era uma cidade.
Naquele acampamento de sem-terra forjei meu espírito, nas
conversas ao redor do fogo, sorvendo um chimarrão, conhecendo as histórias de
cada homem e cada mulher que ali escrevia também a história do nosso país. A
Fazenda Annoni foi o primeiro grande acampamento construído pelo MST instituído
e organizado. Naqueles dias, os agricultores envolvidos naquela “aventura” eram
considerados “bandidos”, “invasores” e toda a sorte de adjetivos que ficaram
colados a eles por décadas.
Desde a vivência da Annoni a experiência de organização e
luta do Movimento Sem Terra nunca mais saiu do meu foco. Com eles passei a
caminhar, não apenas como narradora dos seus mundos, mas como alguém que também
acreditava na reforma agrária como uma necessidade para o país.
Foram anos e anos de marginalidade. Tanto para eles que
faziam a luta, quanto para os que apoiavam o movimento. Em cada ocupação, cada
marcha, cada ação, os meios de comunicação aplicavam sua velha fórmula de
mentiras para a fabricação de um consenso contra o movimento, contra os
trabalhadores, contra a reforma agrária. Muita gente morreu nessa jornada que
já leva 30 anos. Mas, também, muitas famílias, que ousaram entrar para as
fileiras de luta do MST hoje tem sua terra, sua casa, sua produção. São
incontáveis os assentamentos que produzem a comida posta em nossa mesa.
Em Santa Catarina o MST nasceu na região oeste, quando
realizou sua primeira ocupação – na fazenda Burro Branco. Desde aí, os
trabalhadores sem-terra souberam que tinham um lugar no mundo. Cada ocupação,
cada barraco fincado no chão desse estado, avançava no sonho da terra
repartida. Também aqui não foram poucos os momentos de dor, de violência, de
morte e de execração. E também aqui, as bandeiras vermelhas ousaram se
desfraldar em marchas e movimentações reivindicativas. Tantos rostos, tantos
sonhos, tanta beleza.
E foi recordando cada uma dessas ações do MST em Santa Catarina
que acompanhei, cheia de alegria e orgulho, a entrada dos sem-terra e dos
assentados do MST, na Assembleia Legislativa na noite do dia 28 de abril. Uma
noite cálida de outono, mesclada do grito de luta dos professores estaduais em
greve que também ocupavam a “casa do povo” nesse dia histórico. Ali estavam os
velhos guerreiros da luta pela terra em Santa Catarina homenageados em uma
sessão solene. Ali estava a nova geração, gurizada nascida nos acampamentos,
ensinada no fragor da luta renhida. E naquela casa tão estéril, tão surda aos
anseios dos trabalhadores, os deputados puderam ver a poderosa mística que
movimenta a esperança dos sem-terra.
O barraco de lona, as ferramentas de lida na terra, a
bandeira vermelha, aquele riso carregado de certezas, o braço erguido no gesto
de luta. As falas emocionadas, as lembranças dos 30 anos de batalha por uma
terra que ainda não chegou para todos. Tudo isso fez da noite de homenagem um
momento de beleza.
O MST ocupou as cadeiras, as galerias, as escadas, os
corredores. O MST entrou pela porta da frente, sem forçar, sem polícia para
barrar. O MST entrou de peito aberto e cabeça erguida porque sabe o que tem
feito nesse estado e nesse país, recuperando a dignidade de milhões de famílias
sem-terra. O MST, que é responsável por quase uma centena de cooperativas e
agroindústrias familiares em Santa Catarina, gerando comida para nossa mesa. O
MST que tem revolucionado o método de ensino no campo e dando exemplo em áreas
como a comunicação, a cultura e a arte.
Já não dá mais para chamar de “bandidos” a esse povo que
tanto tem contribuído para a vida econômica e política do nosso estado. E foi
por isso que a Bancada dos deputados do PT propôs a homenagem. Nesses 30 anos,
a luta dessas famílias desenhou um estado diferente. Ninguém pode mais fingir
que eles não existem ou que são apenas uma massa informe embaixo de barracos. O
MST tem inserção significativa na vida de Santa Catarina e mereceu o
reconhecimento. Não que precise disso. Essa gente já ocupou aquele espaço da
Assembleia tantas vezes na força da luta, exigindo direitos. Sabe que aquela casa
é do povo e a usa em consequência. Mas é sempre bom ver chegar aquela onda
vermelha, entre risos e canções, ocupando os espaços do poder apenas para uma
festa.
Também foi particularmente bom ver Vilson Santin, que já foi
deputado estadual representando o MST, entrando no plenário cercado pela gente
com a qual ele escolheu caminhar desde quando era muito jovenzinho. Um homem
que nunca se perdeu nos caminhos do poder. Hoje, com os cabelos brancos, ele
vai abrindo passo para uma juventude aguerrida que segue as pegadas dos antigos
com a mesma valentia.
E assim, cada rosto marcado que entrou naquela casa na noite
de terça-feira, foi trazendo uma lembrança. Boa. Cálida. Cheia de emoção.
O MST faz 30 anos. É forte, vigoroso, atento. O MST marca
com sangue e suor a história desse estado. O MST é também Santa Catarina. Tudo
isso se vê na exposição de fotos que está também na Assembleia Legislativa,
marcando essa data tão importante.
E eu, que um dia cruzei as cercas desse movimento, me
encolhi num cantinho, entre lágrimas, na firme certeza de que tomei a decisão
certa lá nos meus distantes 20 anos. Porque o MST é muito mais do que seus
erros ou os erros de algumas de suas lideranças. O MST é aquela força viva que
assoma nos barracos, nas escolas rurais, nas cooperativas. A gente sem-terra
que rasga o chão e faz brotar a vida. Esses são os meus.
O MST faz 30 anos e Santa Catarina disse: Obrigada! Foi
bonito de ver.
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