Alzheimer/Velhice

quinta-feira, 26 de março de 2015

No outono...



Dormitava, recostada na rede. Vez em quando vinha um átimo de lucidez. O livro, nos joelhos, permanecia aberto na página 20, de onde não conseguia passar. Os olhos pesavam e ela os fechava, tentando fugir do turbilhão de dores que assomava. O romance de Lima Barreto tornava tudo mais triste. Policarpo, tão quixote no seu amor visceral ao Brasil. Era a milionésima vez que o lia, e sempre derramava lágrimas. O tempo seguia, nada mudava. Quem pode ser capaz de tanto altruísmo? Isso é coisa de outros tempos,  outras gerações. Agora, a onda é "eliminar". Seja no Big Brother, na Fazenda ou na vida mesmo. Não gostou? Elimina! Esmaga, exclui, deleta.

Remexeu-se quando um gato pulou desavisado e louco, num saltito de bebê, brincando com as franjas, afiando as unhas. Eram criaturas estranhas e alegres os gatos. Quietos, ensimesmados, mas, vez ou outra, parecendo ver espíritos, pulavam em desatada carreira. Quando não, aboletavam-se no colo, num aconchego desavisado, e ela estaqueava, procurando esticar o momento até quando desse. Era como se o tempo parasse e todo o sentido da vida se resumisse a segurar aquele instante de ronronar dolente, de quenturinha gratuita.  O nirvana: uma pessoa e um gato.

Dormiu de novo e acordou com os cachorros espantando um carteiro. Algo havia chegado, contas, com certeza. Assim como ninguém escrevia ao coronel, tampouco à ela. Quem já não dá, igualmente não recebe.  Suspirou. Veio-lhe a mente os dias de frenética vida, no trabalho, na ação política, na mobilização, sempre cercada de gente. Agora era o silêncio.  Afastou a mosca teimosa que voejava próximo ao seu rosto. Lembrou do declínio, quando deixou de ser necessária. "Isso que tu faz é ridículo" dissera o jovenzinho, aprendiz, mas que já parecia dominar o mundo. E ela ficara, suspirando. Quanta inocência!

Depois, foi um suceder de coisas. Já não era ágil, já não tinha forças, cometia erros. E os jovens franziam a cara, esperando pela desobstrução. "Vai descansar". Nunca foi fácil ser velho, mas, hoje, parece que a coisa é pior, tanto desrespeito. Poderia responder, brigar, xingar, mas parecia inútil. A arrogância juvenil é surda aos outros, velhos ou não. Deixou para lá, seguiu vivendo.

Agora estava ali, deitada ao sol do fim da tarde, envolta em tristezas e lembranças. De novo, um gato pulou na rede, cravando as unhas na sua bunda. Ela se perdeu no mundo felino, rindo, fazendo festa. Era só ela e o gato, companheiro de anos. Principiou a falar língua de gato, numa algaravia louca. Ah, foda-se a velhice! Foda-se a tristeza! Havia tanta coisa boa para celebrar. Aquele por de sol, aqueles bichos, as flores do limão, as primeiras jabuticabas, os araçás, a coleirinhas pousadas nos fios, as corujas no muro.

Saiu da rede, arrastando os pés até a geladeira. As cervejas gelavam silentes, esperando o espocar. Foi o que fez! Abriu a lata, fez o colarinho, e sorveu, devagar, o néctar dos deuses. Buscou nos velhos CDs as músicas do Boi Garantido, capazes de levantar um morto. E quando a sonoridade vermelha do Amazonas soou nos alto-falantes, ergueu bem o volume. O corpo, enferrujado, se retorceu, mergulhado no ritmo da floresta. A música era a salvação, invadindo, soprando as brasas, como advertira Nietzsche. Já não tinha nada a dar, seguidores e amigos haviam se dispersado. Estava ali, sozinha. Mas, estar sozinha não é  estar em solidão. Havia um mundo nela, que fora construído tijolo a tijolo ao longo do século XX. Histórias, amores, lembranças boas. E, pasmem, havia sonhos, ainda. Quando a noite adentrou, a velha ainda dançava, de copo na mão, algo bêbada. E no seu rosto, havia um riso, de graça e de luz. Ninguém morre antes da hora. 


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