Já é noite fechada quando o carro passa velozmente pela cidade de Lages rumo à região do Contestado, em Santa Catarina. A lua cheia no céu é puro esplendor. A luz é tanta que ilumina campos e matas, construindo sombras fantasmagóricas. De repente, no meio da escuridão surge outra luminosidade, uma espécie de nave-mãe, encravada no meio do verde. Com ela, um cheio ruim, uma náusea.
- O que é aquilo?
- É a Klabin. A fábrica de papel. Parece uma ferida na mata, né? – Ninguém diz nada, prisioneiros daquela cena bizarra.
O carro segue em direção à Caçador. As sombras continuam a se delinear no horizonte. Ao longe julgo ver uma fileira de gente andando, muita gente. Penso em João Maria, o monge, conduzindo seu povo rumo à mítica Taquaruçu, a cidade santa do Contestado. O velho que enfrentou o exército, o medo, a dor e empurrou as gentes à luta contra a estrada de ferro inglesa que cortava Santa Catarina e lhe levava as terras, tornando o povo escravo em seu próprio lugar. João Maria e sua gente combateram o invasor. Foram até o fim e hoje são estrelas fulgurantes da história deste chão, estudados na escola e reverenciados por todos aqueles que buscam liberdade. Apertei os olhos para ver. Mas não era ele. A fileira que eu via, mal iluminada pela lua cheia, era feita de pinus elliotis, milhares, milhões. Não eram gentes em busca de vida digna. Era um novo invasor.
1910
No México começa a revolução. Os índios, os camponeses, as gentes “de abajo” reclamam terra e liberdade. Armam-se até os dentes e, com Zapata e Villa, passam a escrever uma das mais belas páginas da história popular. No Brasil, o povo silencia diante do avanço do cavalo de ferro. Em todo território abrem-se as veredas para a passagem do trem. No comando, as empresas estrangeiras, como sempre, a maioria inglesas. Em Santa Catarina não é diferente. A Brazil Railway Company (é, assim mesmo, em inglês) termina de rasgar o solo do estado. Vai trazer o progresso, dizem. O dono é um estadunidense chamado Percival Farqhuar, que decidiu fazer fortuna com as ferrovias criando uma empresa em 1906 e, nestes dias, já domina praticamente tudo ao sul do mundo. O trecho que atravessa Santa Catarina, entre São Paulo e Rio Grande, está terminado e agora vem a melhor hora para o empresário do norte. Ele vai abocanhar mais de seis mil e seiscentos quilômetros quadrados de terra ao longo da ferrovia. O propósito é “enricar” com a madeira. É o acordo. Já os trabalhadores, em número de quatro mil, que penaram na obra, são demitidos sem que se cumpra a promessa de dar dinheiro para a volta a casa. Por isso, são eles que vão engrossar o exército de miseráveis que se forma com a expulsão dos camponeses das terras que agora são do “americano”. É a primeira florada do que mais tarde será conhecido como o Exército Encantado de São Sebastião.
2008
O olhar enviesado e o tique nervoso no canto da boca dão conta de que o homem está incomodado. Ele ouve a mulher falar sobre os males do pinus e mexe a cabeça silenciosamente num gesto de negativa. Depois, mais tarde, numa conversa reservada, enquanto os demais parceiros estão no almoço, arrisca um debate. “A moça não sabe o que é viver de produção. Uma hora é a chuva, ou o sol demais, os riscos de perder tudo estão aí, a toda hora. Depois, ainda que a coisa dê, pode ser que o preço fique lá embaixo e a gente está sempre no vermelho. Com o pinus não, é favas contadas. A empresa paga, e pronto. Dê o que der. Pra quê melhor?” inquire, sério. O agricultor do meio-oeste catarinense diz o que quase todos os plantadores de pinus têm na ponta da língua. Esta é uma produção segura, sem muito risco. A árvore não exige muito e o retorno é garantido. Para quê então arriscar plantando feijão, trigo, mandioca ou qualquer outra cultura que exige demais dos camponeses e ainda pode levar à falência? Falar de cuidados com o meio ambiente provoca o riso. Boa parte não acredita nesse discurso de que as mudanças climáticas tenham a ver com o que se faz com a terra. “Antigamente os nossos avós cuidavam da terra, e o quê eles tinham?” – Este é o argumento. Os pequenos proprietários do meio-oeste estão enredados até a medula na armadilha do sistema capitalista. Vida simples e natural? Qual nada. Melhor é o microondas e o freezer. Hoje, nas cidades que formam a região de Lages, falar mal do pinus é puxar briga. Os que estão conveniados com as grandes fábricas de papel ou as madeireiras não querem nem ouvir falar de outro tipo de exploração da terra. E se alguém insiste, corre o risco de ser cuspido e até apedrejado.
1500
As caravelas de Cabral se aproximam da costa. Está descoberto o paraíso. Na carta enviada ao rei, vai a semente do grande mal extrativista que daria à colonização destas terras uma marca indelével. “Esta terra, Senhor, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia... muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos... Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!” Desde aí, cortar madeira passa a ser coisa normal por aqui. Todo o pau-brasil vai sendo levado embora e séculos mais tarde, para se ver um pezinho, só em viveiros de abnegados que se dedicaram a salvar o que fora uma grande riqueza. Por outro lado, nos castelos e igrejas de Portugal e Espanha lá está a madeira cor-de-rosa a denunciar, com beleza, o roubo.
1776
Andam pela região (hoje Lages) turbas de castelhanos. É um tempo de fixação de fronteiras. Os tropeiros que vêm de São Paulo para o sul dão notícias de que a bandidagem está comendo solta por ali. Então, o governador de São Paulo decide fixar naquela região um povoado. Quem vem é Correia Pinto, um bandeirante acostumado na batalha contra os índios. Vai dar conta dos castelhanos e da “bugrada”. Ele monta uma vila, bem próxima ao rio Canoas. A terra é boa e as araucárias que vicejam por ali prometem grandes lucros. A madeira é de primeira.
1925
Pelas estradas poeirentas de Lages, Correia Pinto, Lebon Régis, enfim, por todo o meio oeste, circulam, gordos, os caminhões. A Guerra do Contestado já caiu no esquecimento, afinal, quem se importaria com meia dúzia de “fanáticos?” O trem de ferro que causara tanta dor agora é a anunciação do progresso. As gentes que por ali vivem têm uma riqueza bem à mão: a floresta. O pinho é madeira nobre, retorno garantido. Basta um machado, força no braço e um caminhão. A boca do monstro tem nome estrangeiro. É a serraria Southern Brazil Lumber Co. Sem que isso seja coincidência, o dono da empresa de nome inglês é o mesmo da ferrovia que foi o estopim da luta camponesa naquelas terras, o estadunidense Percival Farqhuar. Lá dentro a lei é a dos Estados Unidos, pistoleiros vigiam os empregados e só o 4 de julho é dia de festa. A serraria, que foi a maior de toda América Latina, ocupando mais de 60 hectares, devastou a região desde 1913. A madeira abasteceu o mercado estadunidense e sugou a riqueza do meio oeste. Como é de praxe, quando a empresa faliu, em 1938, foi estatizada pelo governo de Getúlio Vargas. Mas, o ciclo do pinho já tinha feito o estrago. Em São Paulo, sem nem saber de Farqhuar, a empresa da família Klabin começa a se destacar no ramo papeleiro.
1960
A empresa nascida do sonho do Mauricio Klabin estende seus tentáculos para o sul do país. Já tinha fincado raízes no Paraná e agora é a vez de Santa Catarina. Para isso, precisa “profissionalizar” seu fazer, então, se junta a duas empresas estrangeiras, ambas estadunidenses: a Adela Investiment Co. SA e a International Finance Corporation – IFC - financeira do Banco Mundial. No ano seguinte abre a Papel e Celulose Catarinense Ltda, que só vai operar a partir de 1969, na cidade de Lages. O som do machado começa a vibrar com força outra vez no meio oeste. Quase sem pinheiros – consumidos na febre da Lumber - a saída encontrada será típica da selvageria capitalista, ou seja, o que der mais lucro em pouco tempo. O povo da região de Lages esquece o feijão, a mandioca e começa a plantar árvore, pinus e eucalípto, afinal não é o verde que os eco-chatos querem?
2008
O biólogo Ademir Reis, professor na Universidade Federal de Santa Catarina, diz que muito do que se diz sobre os males do pinus é blefe. “Ele não estraga a água e não espanta passarinho. O verdadeiro problema não é o pinus, são as pessoas”. Segundo o biólogo, toda e qualquer plantação cobra sua fatura da terra, seja a soja, o arroz ou o pinus. O que se necessita é adequar a produção a uma forma sustentada, de respeito ao meio ambiente. Sobre o argumento de que o pinus chupa a água de onde está, Ademir argumenta: “toda a árvore puxa água. Na Amazônia, a floresta suga 30% da água que sobe e volta”. O único problema que ele reconhece é o da condição de invasor. “Realmente as sementes de pinus voam a grandes distâncias, elas fogem do espaço plantado e vão ocupando novos territórios. Isso tem que ser cuidado. No demais, ele até protege a terra da erosão. Há que respeitar as beiras de rio e os topos de morro”. Para o professor, as empresas catarinenses que trabalham com o pinus são responsáveis e têm certificação internacional. “Já no que diz respeito a ser uma monocultura, é certo que é ruim. A produção deveria ser diversificada”
2007
Nas escolas da cidade de Fraiburgo começa a circular uma singela cartilha que leva o nome de: O quati, a gralha e o pinus – como enriquecer preservando a natureza. A idéia é educar as crianças, filhas de agricultores, para as vantagens dos pais plantarem a invasora. O trabalho se utiliza do que há de mais simbólico na região, os dois animaizinhos silvestres. A gralha, inclusive, é a sementeira da araucária, o que torna a cartilha algo grotesco. No documento em forma de gibi, a gralha e o quati vão dizendo o quanto o pinus vai trazer trabalho. “Se o pinus nasce na montanha, porque os trabalhadores estão parados?” pergunta o quati, aludindo a vantagem de se ocupar os morros. Diz a gralha: “ O pinus ajuda o governo através do imposto e o governo depois dá ao povo saúde, educação, lazer e segurança”. E acrescenta: “As árvores protegem as margens dos rios e os animais. Melhora a qualidade do solo, limpa a atmosfera e deixa as águas limpinhas, além de gerar muito emprego”. Isso é claro, revestido da idéia principal que é de se ficar rico com esta plantação. Finaliza, alegre, o quati: “mas então vamos erguer um monumento ao pinus em todas as cidades”. O documento distribuído tem a coordenação de um conhecido empresário da área de maçã da cidade, Willy Frey, com a colaboração do Projeto Renda Crescente.
2008
O agrônomo Eros Mussoli não considera “blefe” os males da árvore que hoje invade o Estado. Ele conhece bem a região de pinus que se formou no Rio Vermelho, em Florianópolis, e garante que a árvore solta uma espécie de resina que destrói a vida da terra. “Nada se cria sob o pinus, acaba com a vida orgânica. Ali no Rio Vermelho onde cai a palha não nasce nada. Não precisa ser estudioso para ver”. Pescadores que vivem na Lagoa da Conceição também concordam e denunciam que em dias de chuva, a resina escorre para a lagoa, matando peixes, siris e camarões. Eros considera que a característica do pinus, com suas sementes voadoras, contribui para a formação de grandes desastres ambientais. “É como uma endemia. Lá no parque do Tabuleiro, que é uma região super protegida, já tem pinus. Eles vão tomando conta e quem protesta e quer discutir a questão é logo marcado como um anti-progressita”. Não é à toa que na cidade de Lages já se pode observar, instigada por conhecidos políticos locais, uma sistemática caça aos que eles chamam de eco-chatos.
2009
Mas os dias do pinus podem estar contados em Santa Catarina. E sua “morte” não terá nada a ver com as lutas contra suas características destrutivas ao meio ambiente. Será simplesmente pelo novo gosto dos europeus, como bem convêm ao sistema capitalista. Diz o professor da UFSC, Ademir Reis, que na Europa as pessoas não querem mais saber de móveis descartáveis. Há um retorno à idéia de durabilidade da madeira e estes novos hábitos já repercutem, por exemplo, em Rio Negrinho e São Bento, municípios catarinenses com grande atividade de exportação de móveis. “Tem muita empresa fechando por lá”. Não bastasse a questão da durabilidade tem ainda a cor. O gosto europeu para este ano está mais para as madeiras vermelhas, mais claras, como o cedro e o mogno. “Tem outra madeira que virou sucesso por lá, é a paricá, uma madeira branca, muito bonita, nativa da Amazônia. E o que se sabe é que já tem muita gente botando mata abaixo lá no norte para plantar paricá”.
Atualidade
Nem a tragédia envolvendo a região do Vale do Itajaí, que praticamente ruiu durante fortes chuvas, faz com que os governantes compreendam que tudo está ligado à questão ambiental. A prova disso foi o novo Código Ambiental proposto pelo governo de Luiz Henrique da Silveira. Nele, estão liberados os plantios nas margens dos rios e nos topos dos morros, bem ao gosto dos plantadores de pinus, além de outras tantas aberrações. No cerce de tudo, os desejos dos empresários, dos latifundiários, dos ricos. A roda da economia não pára e a política do desenvolvimento a qualquer preço também não. No campo, entre os pequenos proprietários plantadores de pinus, praticamente ninguém aceita falar em mudar de cultura. O pinus dá lucro sem esforço. É o sonho de toda a gente. Quase ninguém quer falar sobre estas coisas chatas que envolvem a destruição do planeta, ecologia, etc... “Isso é coisa de gente atrasada, inimigo do progresso”. Poucos levam em consideração os fatos, tais como conta uma agricultora de Timbó Grande. “Lá tem nove mil habitantes, 10 ou 15 são agricultores. O resto planta pinus. A maioria das cabeceiras de rio está secando, não tem emprego para os jovens, aumentou a pobreza, a droga, a gravidez na adolescência”.
Para o biólogo Ademir Reis, com as mudanças na preferência por outros tipos de madeira, buscar o replantio da araucária pode ser a grande saída econômica do Estado, que vai assim aproveitar a sua flora nativa. Mas isso só pode acontecer com um grande programa estatal de salvamento. “Temos 100 anos de melhoramento do pinus, enquanto a araucária, por conta da lei, não tem sido replantada. Não é viável economicamente para o dona de terra ter araucária, por isso eles arrancam a árvore assim que ela brota. Porque se vingar ele só pode tirar 50%. Além disso não havia mercado para a araucária. Por isso, um programa de salvamento tem que incluir o Estado. A empresa sozinha não vai se ajustar sem benefício”.
E assim são as coisas. Quando mudam, mais levam em conta os interesses do mercado capitalista do que a vida das pessoas, o bem estar ambiental, o cuidado com o planeta. Só vale aquilo que traz lucro, e de preferência fácil, sem que se faça muito esforço.
Enquanto isso, em Caçador, à janela sigo fixando os vultos que parecem marchar. Agora sei, são pinus e não as gentes de João Maria. Mas, uma aragem leve me traz um perfume de fogão de chão, e, com ele, vêm a lembrança de uma gente guerreira que vê a terra como mãe, de um povo que conhece o segredo da Pachamama, de homens e mulheres que não se entregam ao canto da sereia da falsa promessa do capital. E, assim, marcham, novos e velhos combatentes do Exército encantado de São Sebastião, das hostes guerreiras de Tupac Amaru, de Sepé Tiaraju. Logo, serão milhões, e suplantarão o exército de pinus... Assim pede a minha vontade na noite fresca de Caçador!