Alzheimer/Velhice

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Pai, sacolas e bem querenças

Em São Borja, em frente a velha casa perdida... e a gente rindo...

Lá vinha eu, me arrastando pelo caminho de areia que leva à minha casa. Pensando na greve, observando os aviões que passavam rasos, rindo de alguma nuvem de forma esquisita. Carregada de sacolas, meio cambaleante, mas sem drama. Afinal, essa é a vida da gente. Nas mãos, sustentava o pão de todo dia, a comida dos gatos, alguma guloseima, sal. E, num átimo me veio à cabeça a imagem do meu pai.

Aos 84 anos é o guardião da despensa. Todos os dias ele espera que a minha irmã tenha deixado uma pequena lista de compras na noite anterior. Acorda bem cedo, passa o café, deixa a cozinha com cheiro de Minas e sai. Vai ao mercado toda sagrada manhã.  

- Pai, leva o carrinho! – Mas quê? Ele zanga. Vai precisar de carrinho? Caminha quase dois quilômetros até o mercado, também numa estrada de areia. E volta arrastando o corpinho magro, no balanceio das sacolas. Pode estar chovendo canivete que ele sai. Minha irmã arrenega. “Vão pensar que eu é que o mando ao mercado”. Mas, ele embrabece se alguém lhe tira a alegria da caminhada. “Pai, manda trazer as compras, é pesado”. Uh! Vira bicho. “Estão pensando que eu estou velho?” E se vai, davagarito no más.

Eu, voltando pra casa, carregada de sacolas, pensei no quanto herdei sua cabeça dura. Mas, afortunadamente, também a sua fibra. Lembro que quando ele perdeu tudo que tinha, nos tempos do Médici, nunca se abateu. Perdeu cada coisa: casa, carro, móveis, roupas. Só ficou com a família, as roupas do corpo e uma máquina de costura que minha mãe jamais largaria. Foi embora, começou do nada, e foi se erguendo devagar, passo a passo, com esse andar cadenciado que até hoje tem. Conquistando cada pequena coisa outra vez, com a força do seu trabalho, nos poeirentos caminhos do interior de Minas Gerais que ele percorria como “pagador”. Era sua tarefa levar o salário dos peões que estavam nas obras das estradas.  Esse homem especial sempre foi meu exemplo, meu espelho. Depois, longe de casa, a cada queda minha lá vinha sua imagem. E, como ele, eu me erguia, tropeçando, mas sem maldizer.

Hoje tenho minha casa e nela me esperam gentes e bichos. Nessa tarde em particular, quando me vi, arrastando o corpo pelo caminho poeirento, percebi o quanto dele vive em mim. Todos os dias, desço do ônibus e passo no mercado para comprar o pão do dia de todos nós. É a minha tarefa. Se eu demoro e perco o mercado aberto, ninguém come pão, ninguém toma café, fica aquele vazio. Todos esperam por mim, como num acordo tácito. Não por preguiça, mas por hábito.  Como meu pai, sou a guardiã do pão.

Nesses dias de tormenta no sul, quando os ventos arrastam coisas e árvores, fico sem falar com ele. O telefone sempre emudece. Lá onde vive, as coisas são bem devagar. E meu coração aperta, porque sei que ele estará por lá, teimoso que é, na sua tarefa diária, mesmo que haja um tufão. Do nada, o vento suli aperta e meu cabelo gira loucamente, enquanto o vestido sobe sem dó. As sacolas pesam, mas eu vou sorrindo, vencendo o cansaço. De alguma forma me conecto ao meu “viejito” lá no interior do Rio Grande. Como eu, ele andará a arrastar o corpo, com as sacolas pendendo, guardando pão e bem-querenças...


É, a fruta nunca cai longe do pé...

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