Em São Borja, em frente a velha casa perdida... e a gente rindo...
Lá vinha eu, me arrastando pelo caminho de areia que leva à minha
casa. Pensando na greve, observando os aviões que passavam rasos, rindo de
alguma nuvem de forma esquisita. Carregada de sacolas, meio cambaleante, mas
sem drama. Afinal, essa é a vida da gente. Nas mãos, sustentava o pão de todo
dia, a comida dos gatos, alguma guloseima, sal. E, num átimo me veio à cabeça a
imagem do meu pai.
Aos 84 anos é o guardião da despensa. Todos os dias ele
espera que a minha irmã tenha deixado uma pequena lista de compras na noite
anterior. Acorda bem cedo, passa o café, deixa a cozinha com cheiro de Minas e
sai. Vai ao mercado toda sagrada manhã.
- Pai, leva o carrinho! – Mas quê? Ele zanga. Vai precisar
de carrinho? Caminha quase dois quilômetros até o mercado, também numa estrada
de areia. E volta arrastando o corpinho magro, no balanceio das sacolas. Pode
estar chovendo canivete que ele sai. Minha irmã arrenega. “Vão pensar que eu é
que o mando ao mercado”. Mas, ele embrabece se alguém lhe tira a alegria da
caminhada. “Pai, manda trazer as compras, é pesado”. Uh! Vira bicho. “Estão
pensando que eu estou velho?” E se vai, davagarito no más.
Eu, voltando pra casa, carregada de sacolas, pensei no
quanto herdei sua cabeça dura. Mas, afortunadamente, também a sua fibra. Lembro
que quando ele perdeu tudo que tinha, nos tempos do Médici, nunca se abateu. Perdeu
cada coisa: casa, carro, móveis, roupas. Só ficou com a família, as roupas do
corpo e uma máquina de costura que minha mãe jamais largaria. Foi embora,
começou do nada, e foi se erguendo devagar, passo a passo, com esse andar
cadenciado que até hoje tem. Conquistando cada pequena coisa outra vez, com a
força do seu trabalho, nos poeirentos caminhos do interior de Minas Gerais que
ele percorria como “pagador”. Era sua tarefa levar o salário dos peões que
estavam nas obras das estradas. Esse
homem especial sempre foi meu exemplo, meu espelho. Depois, longe de casa, a cada
queda minha lá vinha sua imagem. E, como ele, eu me erguia, tropeçando, mas sem
maldizer.
Hoje tenho minha casa e nela me esperam gentes e bichos.
Nessa tarde em particular, quando me vi, arrastando o corpo pelo caminho
poeirento, percebi o quanto dele vive em mim. Todos os dias, desço do ônibus e
passo no mercado para comprar o pão do dia de todos nós. É a minha tarefa. Se
eu demoro e perco o mercado aberto, ninguém come pão, ninguém toma café, fica
aquele vazio. Todos esperam por mim, como num acordo tácito. Não por preguiça,
mas por hábito. Como meu pai, sou a
guardiã do pão.
Nesses dias de tormenta no sul, quando os ventos arrastam
coisas e árvores, fico sem falar com ele. O telefone sempre emudece. Lá onde
vive, as coisas são bem devagar. E meu coração aperta, porque sei que ele
estará por lá, teimoso que é, na sua tarefa diária, mesmo que haja um tufão. Do
nada, o vento suli aperta e meu cabelo gira loucamente, enquanto o vestido sobe
sem dó. As sacolas pesam, mas eu vou sorrindo, vencendo o cansaço. De alguma
forma me conecto ao meu “viejito” lá no interior do Rio Grande. Como eu, ele
andará a arrastar o corpo, com as sacolas pendendo, guardando pão e
bem-querenças...
É, a fruta nunca cai longe do pé...
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