Alzheimer/Velhice
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domingo, 6 de julho de 2014
Primeiros olhares sobre a Rússia
A palavra comunismo é quase um palavrão na Rússia atual. A geração mais jovem não tem ideia do que seja, apenas repete que "é muito ruim". Os mais velhos praticamente se recusam a falar do período soviético. Resmungam alguma coisa, falam do racionamento e insistem que essa coisa de comunismo não passa de uma "fantasia de filósofos". Os russos vivenciaram uma realidade bem diferente da maioria dos países. Saíram de um mundo imperial, dominado pela violência dos czares, direto para o que chamaram socialismo. Não passaram pelo processo de uma revolução burguesa. E isso é o que estão vivendo agora.
O mundo da nova geração russa não se diferencia em nada da maioria do planeta. Concentração de riqueza em alguma regiões (o desenvolvimento do subdesenvolvimento) e pobreza extrema em outras. Nas grandes cidades abundam os xópins, com todas as marcas globalizadas, inclusive o Mc Donalds, Subway, Armani, e tudo mais. Noventa e nove por centro dos jovens estão com a cara enfiada num "smart" fone e o mundo do consumo é intenso. Em Moscou, a famosa rua Arbat, antes um espaço mais cult, dos pintores e artistas de rua, agora é um paraíso para a classe média emergente e para os turistas que querem comprar coisas de marca.
As marcas do período soviético tem sido sistematicamente apagadas e o que não é destruído fica relegado ao ostracismo. Os guias turísticos sabem na ponta da língua tudo sobre a Rússia dos czares, mas raramente citam algum fato do mundo "comunista". Quando não há jeito, procuram minimizar os efeitos.
Uma das coisas que parece imperdoável no que diz respeito aos dirigentes da Rússia comunista foi a destruição das igrejas. Ao percorrer mais de mil quilômetros em ônibus, visitando as pequenas cidades, tudo o que ouvia era do sacrilégio que havia sido cometido com relação aos espaços sagrados. Durante o regime soviético, as igrejas - que são milhares - foram fechadas e muitas delas, de rara beleza, acabaram convertidas em estábulos, depósitos de comida, dormitórios para tropas ou destruídas. Para a maioria da população esse crime não tem perdão. Não é por acaso que se vê um renascimento quase fundamentalista da religião cristã ortodoxa, tradicional da Rússia. Ao longo desses anos pós- abertura, todas as antigas igrejas foram recuperadas, restauradas e estão abertas outra vez. As grandes catedrais, reformadas, agora são museus, visitados por milhares de turistas e reverenciadas com fervor pela população local.
Um exemplo da força do transcendente é o que aconteceu em Moscou. Uma das maiores catedrais da igreja ortodoxa foi destruída e no seu local construída uma grande piscina pública, bem no centro da capital, próximo ao Kremlin. Pois assim que caiu o regime comunista, a população, organizada pelos padres, arrecadou dinheiro e reconstruiu a catedral exatamente como era antes, em apenas 4 anos. A igreja consumiu 8 milhões de dólares, foi erguida em quatro anos e contou com a participação de 500 pintores russos que decoraram seus interiores. Hoje, a imensa catedral é ponto turístico. "Os comunistas prenderam nosso patriarca (equivalente ao papa do catolicismo), nossos padres e destruíram nossas igrejas. Também mataram a família real e prenderam os ricos. Hoje está tudo no lugar de novo", conta Lara, uma guia turística explicando a nova Rússia para os visitantes.
No campo, na região noroeste e norte, o cenário é bem diferente das grandes cidades. As famílias seguem vivendo como nos tempos imperiais. Para esses agricultores, o tempo soviético foi bem melhor. Eles foram organizados em cooperativas e conseguiam produzir o suficiente para viver, além de vender o excedente. Com o fim do regime, as cooperativas acabaram, os novos ricos compraram as terras a preço de nada e foram concentrando outra vez as propriedades. Sobraram os mais velhos, que se recusaram a vender o pouco que haviam conseguido com a repartição de terras. Mas, sobreviver individualmente não é coisa fácil numa região em que a terra é pantanosa e pouco fértil. Assim, o que se vê ao longo de quilômetros são as tradicionais casinhas de madeira dos camponeses se despedaçando, sem que possam reformá-las para garantir calefação e água no inverno. Essa estação chega a apresentar termômetros de 30 graus abaixo de zero, e sem as condições financeiras para uma tubulação resistente, a água se congela e não passa pelos canos. Justamente quando faz mais frio é que os camponeses precisam buscar água no poço. "Hoje, estamos como no tempo dos czares", reclama uma "matrioska" (mãezinha - senhora mais velha). Enquanto isso, para os da nova geração é bom que as terras estejam na mão dos mais ricos pois, segundo dizem, esses têm "mais amor" por ela, enquanto os camponeses são uns "beberrões".
Na cidade de Vladimir, que fica bem próxima a grande Moscou, pode-se perceber o velho ranço aristocrata que voltou a tomar conta das almas russas, principalmente da nova classe média. Ao circular pelas ruas com uma guia, ela apontava uma parte da cidade onde estavam confinados os "insignificantes e inúteis", referindo-se aos trabalhadores artesanais e camponeses. Uma expressão chocante, muito mais apropriada na boca de uma Catarina II do que a de uma moça trabalhadora, que sequer tem o emprego garantido. Na Rússia, os contratos de trabalho são anuais e os patrões podem demitir a qualquer hora, sem apresentar justificativa. Tampouco existe hoje a instituição de férias. "Podemos tirar férias, mas não ganhamos por isso", explica Júlia, ainda louvando os valores do novo mundo capitalista.
Figuras como as dos antigos czares são reverenciadas outra vez, tais como Pedro, o Grande, que europeizou a Rússia e Ivan, o terrível, que chegou a matar seu próprio filho por conta de uma discussão sobre a nora. As mortes e a violência de seus governos são reputadas como necessárias e bem menos prejudiciais que os expurgos comunistas. "Ivan matou muita gente, mas Stálin matou mais", insiste Lara. Nas lojas de recordações abundam os ícones dos antigos czares com destaque para Catarina, a grande, e o último dos imperadores, Nicolau II (assassinado pelos bolcheviques), que foi , agora, canonizado pela igreja ortodoxa, sendo considerado um mártir da pátria. As lembranças soviéticas são mínimas e praticamente só são vendidas em comércios mais populares. As estátuas de Lênin, que estão em todas as cidades, não foram derrubadas por questões técnicas. "Custa muito caro tirar as estátuas, então deixamos aí", explica Júlia. Já o corpo embalsamado do líder bolchevique, que ainda é bastante visitado pelos turistas, pode ser enterrado. "Já houve debate na Duma (congresso) sobre isso, mas consideraram que os mais velhos sofreriam com isso. Estamos esperando os mais velhos morrerem para resolver sobre esse tema", diz a guia.
Quê relato, Elaine! Impressionante. É a mesma experiência que se faz quando se visita a extinta República Democrática da Alemanha. O socialismo pisoteado pelas botas, em mãos inescrupulosas e ditatoriais...
ResponderExcluirEsse texto estará indo para um trabalho de aula que farei com meus alunos na escola!
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