A mídia comercial,
principalmente a televisão aberta, é, sim, uma tremenda usina ideológica. Num
país onde a oralidade ainda é o mais eficaz meio de comunicação - em função dos
analfabetos funcionais serem milhões - é justamente esse veículo que acaba
sendo o meio mais importante de informação da maioria das pessoas. No mais das
vezes, se apareceu na TV, o fato assume status de verdade. Se a pessoa não vê
na TV, a coisa parece que não aconteceu, daí as estratégias
"espetaculares" dos movimentos sociais para poderem aparecer na
telinha. Não é sem razão. A Globo já foi mais poderosa no que diz respeito à
audiência, mas, mesmo hoje, dividindo espaço com outros canais, como a Record,
Band e SBT, segue ditando o modelo de jornalismo e de informação. No geral,
todas as emissoras divulgam os fatos com a mesma abordagem, o que,
sistematicamente, só fortalece o sistema atual vigente no mundo: o capitalismo
- reino do consumo, do egoísmo, do individualismo, no qual o outro é o inimigo
a ser eliminado.
Como bem definiu o pensador
venezuelano Ludovico Silva, a televisão é o espaço privilegiado do sistema para
aprisionar as pessoas na mais-valia ideológica. O trabalhador, já consumido
pelo trabalho, chega em casa, depois de uma longa e terrível jornadas nos
transportes públicos, e senta-se em frente à TV, única opção de "lazer".
Com um copo de água gelada ou uma cerveja, ele pensa estar descansando enquanto
as imagens que saltam da tela seguem aprisionando-o no mundo do trabalho.
Compre isso, compre aquilo, veja a moda da novela, observe esse costume de
vida. Tudo ligado na trama da mercadoria. E a pessoa vai absorvendo,
completamente amarrada a grande roda do capital, no giro interminável do
consumo. Consome-se até mesmo a própria vida. É claro que a pessoa não é um
quadro branco onde as coisas são gravadas. Mas, o poder desse veículo é deveras
avassalador. A pedagogia da sedução - usada com maestria pela publicidade -
opera no cérebro e conquista os "consumidores" para coisas que sequer
necessitam. E, assim, o trabalhador, durante o dia, entrega a mais-valia para o
patrão, e à noite, segue entregando a mais-valia para outros patrões. É um
círculo macabro. Uma forma bem bolada de domar o “rebanho desgovernado”, que
era como o incensado teórico da comunicação, o estadunidense Walter Lippmann,
chamava o povo.
A competição
Mas, além da sedução para o
reino das coisas, o sistema capitalista preciso atuar em outra área na vida
humana, para poder garantir a perpetuação do círculo. Há que incutir o medo do
outro, para estimular a competição. Afinal, a regra é simples: para que um
tenha muito, outro há que não ter nada. De alguém é preciso "chupar"
o trabalho e a alma. O biólogo Humberto Maturana, ao discutir os sistema
biológico da vida, insiste em dizer que a competição é uma coisa artificial,
anti-humana, criada pelo sistema de opressão. Segundo ele, o que é natural no
humano, e mesmo nos animais, é a cooperação. Na cooperação, todos podem ter o
que precisam. Na competição, sempre um vai vencer - ter - e outro vai perder, não-ter. Logo, é uma
lógica de exclusão. Mas, se o natural é cooperar, como chegamos a esse mundo
violento e competitivo? É, segundo ele, uma construção que tem por objetivo a
consolidação de um pequeno grupo de poder. É o centro da opressão.
E, assim, a competição vai sendo
incentivada em todas as áreas da vida. Desde a família, onde começa a educação
para o sistema, passando pela escola, onde a criança vai se moldando mais ainda
para a vida competitiva, chegando, depois, no trabalho, espraiando-se de
maneira igual para a vida pessoal, as relações afetivas (não é sem razão que
aumentam exponencialmente os casos de assassinato de mulheres, quando essas
decidem sair de uma relação. O outro não suporta "perder". Prefere
matar).
E todo esse processo de
competição é igualmente incentivado e bombardeado na cabeça das pessoas pela
maquinaria da indústria ideológica. As novelas, os programas de auditório e,
agora, essa nova febre, os "shows de realidade", tipo Big Brother ou
a Fazenda. Nesses espaços, que deveriam de entretenimento, toda a sociedade vai
sendo alfabetizada e formada na lógica da competição. Para ganhar uma casa do
Gugu, há que desbancar o outro. Para ganhar um carro novo no Hulk, há que
vencer o outro. Para ganhar um milhão, há que eliminar os próprios amigos. É a
pedagogia da selvageria lícita.
A pedagogia do medo
E todo esse processo segue uma
ordem muito lógica. O próximo passo é incutir o medo. Fazer com as pessoas
pensem que, em todo o canto, por toda a parte, tem alguém querendo
"tirar-lhe" alguma coisa. Novamente a indústria ideológica age com
sabedoria. Proliferam os programas policialescos, nos quais são apresentados
crimes horrendos, assaltos, mortes e toda uma sorte de barbaridades. Assistir a
esse programas nos leva a um terror abissal. Porque todos os dias, a todo
instante, tem algo muito terrível acontecendo. Sair de casa pode significar a
morte. Ficar em casa também. Não há escapatória. Tudo é apresentado como se fosse algo natural. Todos os casos de
violência cotidiana parecem brotar do nada, fruto apenas da "maldade"
alheia. Não há relação nenhuma com a pedagogia da sedução - na qual se aprende
a querer o que não se precisa - , nem com a pedagogia da competição - na qual o
outro é sempre o inimigo. Não há história, não há contexto. É só a violência
por si. O que é óbvio, porque se esses programas contextualizassem a violência
desenfreada e crescente, ficaria claro para as pessoas os motivos disso. Não há
interesse em criar conhecimento sobre a realidade. O objetivo da indústria
ideológica é atuar no reino da sensação.
Com a pedagogia do medo vem a
lógica da justiça invertida. A pessoa, submetida ao bombardeio ideológico, só
consegue ver que a polícia é corrupta, os bandidos andam soltos, não há
salvação. O que aparece nesses programas é que os cidadãos estão reféns de uma
violência que não tem solução. Começa a se gestar aí o germe do
"justiçamento". Se não há justiça, então eu mesmo vou fazer.
Não bastassem os Datenas e
Rezendes da vida, ainda tem toda uma linha de filmes, da indústria
cinematográfica da matriz do sistema, que exacerba ainda mais essa visão de
mundo. Uma olhada nas séries de mais sucesso entre a classe média que pode
pagar uma TV à cabo ou digital ( e que mais tarde vêm para a TV Aberta), o que
se vê é que as do topo da lista são as dos "justiceiros". Aqueles
mocinhos - geralmente brancos e ricos - que caçam e matam os bandidos que a
justiça formal deixa escapar. Um caso extremo é o do seriado Drexler (maior
audiência nos EUA), no qual um policial é o serial killer (assassino em série).
Ele persegue, tortura barbaramente e mata aqueles que a justiça não aprisiona.
É um psicopata que inclusive cataloga fotos e amostras de sangue de cada
assassinado. Pois esse cara é um herói. E assim, poderíamos elencar outras
séries e filmes que povoam nossas televisões, cotidianamente, fortalecendo a
pedagogia do "justiçamento".
Por isso que a cena bárbara de
um jovem negro sendo espancado por mais de 30 pessoas e amarrado num poste com
uma corrente de bicicleta, parece natural a maioria das pessoas. Porque aquele
guri negro, morador de rua, feio, maltrapilho, é o "inimigo" que
povoa a cabeça de cada um que vive sob a opressão da usina ideológica - aí
incluída a família, a escola, as relações pessoais. Então, nada pode parecer
mais "certo" do que justiçar, fazer justiça com as própria mãos. Se
não há polícia, se a corrupção grassa e eu vivo apavorado com o mundo ao meu
redor, a qualquer sinal de ameaça, eu me defendo. É assim que as pessoas
pensam. Estão intoxicadas com essa pedagogia voraz, que nos tira a humanidade,
isso que Maturana chama de "natural cooperação".
É o que ocorre também em relação
aos homossexuais. As pessoas passam a vida toda ouvindo que aquilo é
antinatural, que é vergonhoso, que é pecado, que é sujo, que são uns
desavergonhados, umas aberrações, a escória do humano. Então, quando um grupo
de jovens agride ou mata um homossexual, eles entendem que estão fazendo uma
"limpeza", ajudando a sociedade. Foram alfabetizados nessa concepção.
E não é coisa fácil de mudar. Há que se trabalhar toda uma nova pedagogia, que
vença essa, que é hegemônica no mundo. Essa visão de mundo grega, que venceu no
mundo ocidental, na qual o outro, que é diferente de mim, é o
"não-ser", o "inimigo", o que precisa ser eliminado em nome
do meu bem-estar. Enrique Dussel, um filósofo argentino, ensina que no mundo
antigo, antes da vitória da visão grega, o outro não precisava ser igual a mim.
Ele era respeitado como outro, diferente, mas real. Nesse mundo, cujas raízes
ele encontra nos povos do deserto, o outro podia ser aceito na convivência,
porque a matriz da existência era a cooperação. Dussel crê que essa forma de
viver pode ser recuperada, mas não é coisa fácil. Há um longo caminho a
percorrer, desfazendo toda essa teia ideológica que vem massacrando a
humanidade por tantos séculos.
Hoje, quando as redes sociais
deram espaço para a voz de tão distintas gentes, não deveria causar espanto as
opiniões de um número expressivo de pessoas respaldando as ações de
justiçamento ou de violência contra os que eles consideram "escória",
aberrações. No mais das vezes, essas pessoas acreditam piamente - de boa fé
- nas "verdades" que foram
sendo sedimentadas ao longo de uma vida. Estranhos, mas muito estranhos mesmos,
são aqueles que, de alguma forma, observam essas verdades e duvidam delas,
buscando criticamente uma explicação para os fatos, na história, no contexto,
no ambiente. Porque não é fácil enxergar as falhas da "matrix",
aquelas que nos permitem ver que, para além do mundo de sedução que o
capitalismo nos oferece, há toda uma cultura de medo e violência que vem no
pacote, fazendo com que vejamos como "inimigos" aquele que não
compartilha - por opção ou por condicionantes históricas, econômicas e
políticas - dessa ilusão.
O exemplo e a linguagem
Wittgenstein, um filósofo da
linguagem, dizia que os limites da linguagem são os limites do mundo. Logo,
para ele, se a pessoa não consegue verbalizar ou entender coisas como
cooperação, solidariedade, amor, equidade, jamais poderá entender aqueles que
falam sobre isso. Maturana, desde a biologia, concorda com o filósofo
austríaco, mas oferece uma luz nesse universo que aparece tão determinista. Ele
diz que o ser humano só se fez humano a partir do toque sensual, da carícia, do
amor. E oferece muitos elementos científicos que podem comprovar sua teoria. Só
depois veio a linguagem, essa, tal qual conhecemos. Logo, há uma pré-linguagem,
calcada na emoção, no movimento do corpo, na ação. E é desde aí que pode vir a
mudança. O que Maturana diz, cientificamente, já disseram os grandes avatares
que caminharam sobre a terra, filósofos, homens de fé: o exemplo é poderoso. É
a grande linguagem que chega ao mais profundo do humano. Assim, palavras como
amor, solidariedade, respeito ao outro, cooperação, não podem ser ditas se não
vierem acompanhadas de uma ação correspondente. Os astecas, nossos mais remotos
ancestrais, já sabiam disso: "As palavras que não andam, não devem ser
pronunciadas".
Com isso, o que quero dizer é
que há uma larga batalha a ser travada contra as pedagogias da sedução, do medo
e da violência. E ela não será ganha apenas no discurso falado. Ele precisa
viver na ação cotidiana, no que se ensina aos filhos, no que se trabalha na
escola, nas relações familiares e pessoais, no sindicato, no movimento social,
no partido político. Para isso, precisamos da renitência, da ação diária e
sistemática, da prática cotidiana desses valores humanos tão ancestrais. Gritar
contra o racismo, contra a discriminação, contra a violência ao
"outro", desigual. Mas também atuar, em todos os espaços da vida, em
consonância com as palavras que usamos. Só assim elas começarão a andar.
Já no campo da política essa
mudança não pode acontecer se não houver uma luta radical pelo controle dos
meios de comunicação. Há que derrotar o monopólio, o oligopólio, que mantém a
usina ideológica em funcionamento. Não basta atuar no campo da “democratização
da comunicação”. Ajeitar o que está aí consolidado não é solução. Assim, ou
derrubamos o poder dessa elite entreguista que hoje domina a mídia, ou seguiremos
jogando palavras ao vento. Palavras que não terão pernas para andar. Soberania
comunicacional, produção popular, reforma agrária no ar. Sem isso, o “rebanho
desgovernado” de Lippmann seguirá domesticado, reacionário, racista e criminoso.
É tempo de desgovernar...
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