Alzheimer/Velhice

terça-feira, 12 de novembro de 2013

São Borja – um retalho de memória




Minhas memórias mais remotas remontam ao tempo que eu tinha quatro anos de idade. Tínhamos vindo de Uruguaiana para São Borja e fomos morar ao lado de uma igreja metodista. Duas cenas se perpetuam nas retinas. Uma delas é um casamento que presenciei e que sempre ficou dançando na cabeça. A noiva, ao contrário do que se via nas revistas, não estava de branco. Entrou na igreja com um vestido azul-bebê. Não sei porque ela usou essa cor, mas isso me encantou. Aquela mulher não devia ser uma mulher qualquer. Mesmo aceitando a tradição do casamento, tratou de fazer diferente. Sistematicamente, ao longo da vida, sonhei com aquela cena.

O dia era de sol, a igreja pequenina. A mulher entrando pela nave iluminada parecia um ser etéreo. Não lembro seu rosto, porque a vi em contraluz. E era o vestido que tomava toda minha atenção. Parecia algum tipo de encantamento que a envolvia. Azul, todo azul. Minha família era católica, mas o pastor, que morava na casa ao lado, era sempre bem vindo em nossa casa. Minha mãe sempre foi generosa com a diferença. Daí que circular na igreja metodista não era problema. Eu mesma, curiosa, vivia metida nos cultos, espiando, observando, ouvindo. E nas tardes, ainda jogava bola no pátio do templo, que também acolhia outras crianças da rua. Era uma época na qual ninguém parecia ser discriminado pela religião.

Outra cena que nunca esqueço da velha casa ao lado da Metodista é da gente – eu e minha irmã – deitada no chão em dias de chuva vendo os pingos caírem na porta da frente. Havia um pequeno declive e os pingos, caindo ali, na terra fofa, assumiam várias formas. Era uma coisa mágica.  

Várias vezes, ao longo da existência eu me perguntei se tudo aquilo realmente era parte da minha infância. É que as vezes a gente se pega roubando memórias. Como o tempo vai longe, algumas histórias, contadas por outras pessoas próximas, vão grudando na gente e pensamos que são nossas. Muitas vezes não são.

Mas, em 2009, voltei a São Borja para levar as cinzas da minha mãe. Ela queria viver para sempre no Rio Ibicuí, braço d´água que divide São Borja de Itaqui. E lá fomos nós na missão. Encasquetei que seria bom irmos ver a velha igreja metodista, para saber se tudo aquilo do qual me recordei a vida inteira ainda estava lá. E já se haviam passado mais de 40 anos. O pessoal riu, dizendo que a cidade era outra e nada mais deveria restar. Não aceitei e me fui em busca da igrejinha.

Pois como num milagre de natal, lá estava ela, exatamente como eu me lembrava. Não eram memórias roubadas. A igreja resistia ao tempo e as transformações. Do lado dela, estava também a velha casa, da qual sempre me lembrei, agora sob a forma de um comércio de refrigeração. Fiquei mareada de emoção. Era como se eu fosse, outra vez, a guriazinha arisca e assustada, que voejava por entre os bancos da igreja, ou observava, incrédula, a forma das gotas de chuva.

Entendi que são esses momentos singelos que fazem a gente ser quem é. Naquela tarde de calor escaldante, numa São Borja encontrada 40 anos depois, eu ainda podia ouvir, através da porta fechada, as cantorias que saiam da igreja naquelas longínquas manhãs de domingo e, num instante, na janela da casa ao lado, vislumbrei minha mãe, com seus olhos cheios de melancolia. Aquela mulher magrinha que me ensinou a amar as coisas simples e pequenas. Abençoada seja!

Encontradas as memórias, cheia de ternura por um passado feliz, parti para a beira do velho rio da minha infância, no qual deixei ir minha Helena, sabendo que ela nunca sairia de mim. 


domingo, 10 de novembro de 2013

Governo suspende demarcação de terras indígenas no sul



Áreas indígenas já definidas e prontas para serem demarcadas  na região do Rio Grande do Sul e Santa Catarina tiveram sua legalização suspensa pelo governo de Dilma Roussef. Rapidamente a presidente rendeu-se aos argumentos dos agricultores. que realizaram um protesto ontem (06 de novembro), fechando estradas no sul e exigindo do governo a suspensão do processo. Nunca um protesto foi tão efetivo em tão pouco tempo. Segundo Dilma, novos estudos serão feitos nas áreas. Com isso, ela pretende aliviar o clima de tensão que existe hoje no sul. Aliviar para quem? Essa seria a pergunta crucial!

Na queda de braço entre proprietários de terra e indígenas, raramente os indígenas saem vencedores. Roubados de suas terras desde a invasão em 1500, sistematicamente os povos originários foram sendo atacados, dizimados e humilhados. Na região sul do Brasil, boa parte dos povos autóctones que viviam no litoral se deslocaram para o interior, juntando-se a outras etnias que ali já viviam, como os kaigang e os xokleng. Já no século 18, com a abertura de caminhos para a passagem das tropas que iam e vinham de São Paulo ao Rio Grande, então Província de São Pedro, os indígenas enfrentavam os brancos em batalhas fortuitas. Mas, foi só no século XIX, com o processo de migração de famílias europeias, que todos esses grupos começaram a enfrentar com mais frequência a captura, assassinato e consequente tomada das terras.  No caso da região que hoje configura o oeste de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, essa nunca foi uma terra sem gente, daí a necessidade de uma política de extermínio por parte do governo. Tudo isso foi levado a cabo. Os chamados "bugres" eram caçados como bichos e os que não aceitavam a "civilização" eram mortos.

Os poucos que sobraram foram sendo confinados em aldeias, onde permanecem até hoje, tutelados e tratados como seres de segunda categoria. Considerados naquele então um obstáculo para o "crescimento econômico" do estado e do país, eles passaram de legítimos donos das planuras a quase mendigos. Com o passar do tempo, esses indígenas que resistiram ao massacre foram sendo esquecidos. Cada imigrante que chegou para "desbravar" o interior foi cercando a área onde fincou raízes e as terras começaram a ser tituladas. O que era campo de liberdade para os originários passou para a "propriedade" de alguns.

Esse deve ser o caso das mais de 30 mil famílias - segundo Fetraf-Sul (Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Sul) - que vivem em terras já definidas como indígenas no Rio Grande do Sul e das outras 300 famílias que ocupam área indígena em Santa Catarina. Possivelmente todas essas famílias que hoje vivem na área que foi delimitada como "terra indígena" compraram suas propriedade de boa fé, têm escritura e tudo mais. Só que os indígenas também reivindicam esse território desde a invasão. Logo, se for aplicada a Justiça, não pode haver dúvidas de que quem ocupava o território primeiro eram os povos originários.

O debate que as entidades que representam os agricultores fazem é que a maioria dessa gente é pequeno produtor e não sabe fazer outra coisa na vida que não seja plantar. Sem as terras, eles morrem. O argumento é forte, mas se for aplicado aos indígenas, também deveria ter a mesma força. As famílias originárias que hoje reivindicam a área passaram gerações e gerações sofrendo o assassinato, a fome, a miséria, o medo, o terror. Da mesma forma que as famílias - hoje novas proprietárias - também nada mais gostariam de fazer na vida do que viver em paz na sua terra, onde possam plantar e cuidar dos filhos. Qual a diferença, então, entre os dramas?

As áreas no Rio Grande e Santa Catarina já foram vistoriadas e passaram por um longo processo de estudos e burocracias. Está mais do que provado de que são terra originária, portanto é de direito que sejam devolvidas aos indígenas. Mas, agora, o governo diz que vai fazer novos estudos. Paz para os agricultores, mais dor para os índios.

O fato é que com a demarcação as famílias que compraram as terras, muitas delas com registro desde o ano de 1919, não ficariam desamparadas. Todo o processo de demarcação garante indenização àqueles que, de boa fé, compraram terras indígenas. É certo que a situação causa sofrimento a quem construiu toda uma vida num lugar. Esse é o drama da maioria das famílias de agricultores que, com a decisão, precisariam mudar de lugar e até de cidade. São dramas humanos que não podem ser diminuídos. Mas, humano por humano, os indígenas também vivem mergulhados no drama. E, diferentemente das famílias que puderam viver em paz, plantando e comerciando seus produtos por anos e anos, os indígenas tiveram de passar todo esse tempo em aldeias mal arranjadas, muitas vezes passando fome e sem poder garantir de maneira autônoma sua existência.

Conforme reportagem produzida por Ibiapaba Netto, em 2008, na revista Planeta (http://revistaplaneta.terra.com.br/secao/reportagens/indios-x-agricultores-campo-minado-em-santa-catarina), a história da compra dessas terras segue a rota do roubo perpetrado pelo próprio estado ao longo do processo de colonização. Segundo ele, as vendas das terras, na parte catarinense, foram feitas pela Companhia Territorial Sul Brasil, que era um braço privado dentro do estado. Era a empresa que fazia as vendas para os imigrantes que chegavam da Europa acreditando entrar numa terra vazia. Daí que a lógica seria garantir às famílias, hoje proprietárias, uma indenização que cobrisse todo o patrimônio e não apenas as benfeitorias. Afinal, a maioria dessa gente foi enganada pelo próprio estado. Sendo assim, a batalha que hoje está sendo travada entre os índios e os agricultores tem vítimas dos dois lados.

O governo, que deveria assumir a responsabilidade por todo esse imbróglio criado há séculos, acaba por fomentar ainda mais a separação dos dois grupos que se enfrentam como inimigos. E, agora, com a suspensão da demarcação, bota ainda mais lenha na fogueira. Se diminui a tensão entre os agricultores, aumenta no lado indígena. Talvez aposte na fragilidade dos originários que, comparados aos atuais donos das terras, seguem em absoluta desvantagem, seja no campo jurídico, na correlação de forças e no imaginário coletivo.

Desde o início do processo de luta por demarcação das terras originárias, todos os dias, as emissoras de televisão regionais e estaduais disseminam o ódio aos índios. Em quase todas as notícias relacionadas com o tema, os indígenas aparecem como os "invasores", os "vagabundos", os que querem "impedir o progresso", os "selvagens" que não precisam de terras porque não trabalham. Esse estereótipo do índio está consolidado no imaginário popular e segue sendo fortalecido pelas usinas ideológicas que são os meios de comunicação. Daí ser tão difícil fazer o debate sobre o tema de forma tranquila. Criou-se na maioria da população, que é não-índia, a ideia de que os índios não precisam dessas terras, que deveriam se contentar com suas reservas e as cestas básicas dadas pelo governo. É, na verdade, a continuidade, a perpetuação da ideia primeira dos portugueses e espanhóis que aqui chegaram e passaram por cima das milhares de criaturas que eles acreditavam não ter alma por não falarem sua língua nem viverem da mesma maneira que os europeus. Toda a cultura indígena foi ignorada, bem como a própria humanidade de cada um dos primeiros moradores dessas terras. Aparentemente, apesar das atitudes caridosas eventuais, é o que boa parte da população segue pensando com relação aos índios. São nada, coisas descartáveis, gente não-produtiva, atrapalhos à nação.

No oeste de Santa Catarina essa é a realidade que os xinguara e os kaigang vivem desde há séculos. Hoje, muitos deles vagueiam sem rumo pela região, trabalhando de boia-fria, enquanto outros se submetem a humilhação das reservas que não oferecem muita condição de vida digna. Mas, ao que parece, poucos estão interessados nessa realidade. A mídia regional, bem como as forças políticas aliadas ao poder dominante insistem em tornar mais "triste" o destino daqueles que perderão suas terras para entregá-las ao que nominam como "meia dúzia de índios".

Ora, como fazer uma competição para saber qual sofrimento é maior? Haveria ganhadores?  Aquele que sofre entende sua dor como a maior do mundo. Não é o caso de fazer concorrência. O fato é que existe uma dívida histórica do estado com relação aos povos indígenas e também com as famílias de agricultores. E o estado deveria fazer tudo para sanar essa dívida sem fazer chantagem com os mais fracos, sem fomentar o preconceito.

Também é importante ressaltar que, na maioria dos casos envolvendo demarcação,  os "opositores" não são os pequenos produtores de boa-fé. Mesmo no Rio Grande e em Santa Catarina, muito do que comanda a "luta" anti-demarcação é ação dos grandes fazendeiros e do setor de especulação sobre a terra. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, os indígenas precisam enfrentar a sanha de jagunços a soldo dos latifundiários, que matam, violentam e ameaçam as famílias de índios que vivem nas beiras de estradas. E como se isso não bastasse, ainda enfrentam a Justiça, que está sempre do lado dos fazendeiros, e as ameaças de uso da Força Nacional para a realização dos despejos de áreas ocupadas pelos indígenas. Porque índio quando está quieto é queridinho, mas se ousa levantar-se em luta passa a ser só mais "terrorista, baderneiro" como qualquer outro militante social. Sobre esses dramas a mídia comercial não fala. Sobre essas ações violentas, assassinatos e jagunçagem, nenhuma linha nos jornais. E é assim que vai se formando a opinião pública contra as demarcações. Porque no mundo capitalista não dúvidas de alguns são sempre mais iguais que outros. E assim, a dor! ...

A única saída possível é a indenização justa a quem comprou terra de boa-fé e a urgente demarcação das terras indígenas para que essa gente que anda vagando pelos caminhos desde o fatídico 1500 encontre finalmente morada e possa viver sua vida em paz.

Jornalismo dissecado, para outra práxis!



O trabalho de Miriam Santini de Abreu no livro “Quando a palavra sustenta a farsa – o discurso jornalístico do desenvolvimento sustentável” é uma ousadia que se espraia em múltiplas direções, tal qual o discurso que, de forma crítica, ela busca refletir. Ousadia polissêmica. Gesto que se faz desde um lugar específico, singular, o Brasil, parte que se nega de uma América Latina que ainda não conhece seu próprio rosto. E é deste espaço que Miriam fala como jornalista, construtora de mundos, com o frágil/forte tijolo da palavra. E fala ainda como um ser que vive e tem consciência de seu espaço geográfico, que percebe a natureza não como uma inimiga a ser domada, e muito menos como um sacrário a ser preservado dos pés e mãos humanas.

A natureza com a qual conspira Miriam no seu mapa da farsa não é uma abstração romântica. Ela é o espaço geográfico com todas as suas conformações: pedras, matas, águas, montanhas, animais e homens. Uma simbiose que deve ser vista assim, na sua totalidade, historicidade e na sua concretude social. Com a faca afiada da crítica que desvela aquilo que se apresenta unicamente como aparência, a autora vai ajudando o leitor a decifrar a intrincada rede de ilusões fabricada pelo dito jornalismo ambiental que, na maioria de suas expressões, age como uma igreja, incensando o chamado desenvolvimento sustentável, usando a tática de dividir a paisagem entre o meio e o homem, como se isso fosse possível. Além disso, Miriam mostra sem disfarces a fantasiosa ideia capitalista que torna “responsáveis sociais” aqueles que tomam o ambiente como mercadoria e o destroem em nome do lucro, mascarando essa degradação com o que chamam de redução de danos.

Assim, nos veículos considerados pelo trabalho em questão, pode-se observar que o jornalismo se faz não mais como uma crítica análise do mundo da vida, mas sim como uma máquina de propaganda de um sistema insaciável que esconde sua essência na chamada “sustentabilidade”, conceito no mais das vezes falseado, porque não apresenta a historicidade do fenômeno e muito menos a perspectiva do lugar. Por exemplo, aquilo que aparece como sustentável na Europa, não tem o menor sentido na África ou na Bolívia.

Noam Chomsky tem um trabalho exaustivo sobre como, nos Estados Unidos, o jornalismo funciona como propaganda de um modo de vida em que não está em questão a vida das maiorias e sim, os interesses específicos de governo e empresas específicas. Mas, essa crítica serve muito bem ao jornalismo praticado no Brasil, particularmente o ambiental, tal qual mostra a análise feita por Miriam, até porque uma das características do modo de fazer jornalismo neste país segue a mesma cultura colonizada de quase todas as outras áreas do saber.

Pois neste livro incomodativo Miriam estraçalha com todos os véus. Aguda analista do seu tempo, ela pega na jugular e faz sangrar a farsa sem qualquer pitada de dó. Cada reportagem dissecada pelo diagnóstico da pesquisa grita conceitos de uma gente (jornalista) que parece ignorar as contradições do desenvolvimento capitalista dependente, o qual não permite erro de análise: nenhum mundo contaminado por esse modo de produção pode ser sustentável. Ou ainda, o que é pior, é praticado por seres que se fizeram cortesãos do sistema e, portanto, impedidos – por censura interna – de expressar as contradições. Assim, defender a ideia de desenvolvimento sustentável só pode ser possível a estes que realmente estão convencidos de que o sistema que obriga a morte de um para que o outro viva é mesmo melhor e legítimo. E aí, o que faz a autora é interpelar cada um que se disponha a ler esse trabalho, na mesma direção que Jacione Almeida em uma das citações: “Trata-se de sustentar o quê? `Futuro comum´ de quem  e para quem?” Esse é ponto! Certamente que esta sustentabilidade está dirigida a uma classe em particular, e não são às maiorias.

É justamente por isso que o trabalho da autora é perturbador. Ela explicita, corajosamente, essa questão da posição do sujeito jornalista, que nunca é neutro ou imparcial. Ao narrar, o autor se desvenda a si próprio e qualquer tentativa de ignorar isso é apostar na impostura. E é por acreditar nisso que Miriam questiona. Que tipo de pessoas são essas, os jornalistas que narram a vida nas páginas dos jornais?  Ingênuos, ignorantes ou os crentes no capital? Que tipo de profissionais são esses que dão voz apenas ao poder, silenciando outras vozes que clamam à margem? Que tipo de jornalista é esse que só se dispõe a pisar as salas acarpetadas dos palácios e das grandes empresas, negando-se a mergulhar no mundo da vida, esse, real, dos excluídos da dignidade? Que jornalismo é esse que louva uma monstruosa ponte de cimento como algo que se semeia na paisagem, enquanto mostra os empobrecidos que ocupam áreas de preservação como a suja escória que deve ser varrida? Que prática é essa que faz da vítima o vilão?

As respostas saltam das páginas, sem que autora precise dizer. Tudo fica claro quando se percebe que o rei está nu. O jornalismo hegemônico é uma fábrica de ilusão, amparada na mais descarada publicidade, na qual a natureza perde a sua aura, vira fantasmagoria, se dilui na prateleira do grande mercado do capital. O modo capitalista de reprodução da vida se mostra no discurso dos jornais, impiedoso e simples, tornando difícil entender como as pessoas não se dão conta da sua vilania.

E é nessa articulação entre o espaço, a narrativa jornalística e o discurso que Miriam Santini de Abreu vai desfilando sua ousadia de jornalista que toma posição. Dialoga segura com a geografia de Milton Santos, esse intelectual brasileiro que também ousou e imprimiu um desenho humano no debate sobre o lugar e a natureza. Revive a teoria revolucionária de Adelmo Genro Filho, um pensador que conseguiu decifrar o segredo de um jornalismo que se expressa no singular, mas só se torna crítico quando articula e aspira ao universal. E, revela os sentidos do discurso a partir de Eni Orlandi, uma analista que se aventura para além do texto, revelando a polifonia e a ideologia que ele contém. Então, nesse entrecruzar de elementos inimagináveis, e depois de uma impiedosa análise dos textos do JB Ecológico e do AN Verde, a autora acaba revelando também um outro segredo, singelo, mas fundamental: o jornalismo não precisa ser esta fábrica de ilusões que aparece hegemônica, essa prática a-crítica e cortesã. O jornalismo carrega em si mesmo, como já anuncia Adelmo Genro Filho, a possibilidade de ser uma poderosa arma de desvendamento do real.

A ideia que fica é a de que, apesar de toda a máquina de propaganda na qual se transformou o jornalismo, o sujeito jornalista tem todas as condições de ser também aquele que tem consciência de que fala desde um lugar, e que esse lugar tem historicidade. Que o jornalista pode, no texto, fazer o trânsito entre o singular, particular e universal, apresentando toda a atmosfera do fato e não apenas a sua singularidade reificada, que empobrece, desinforma e deforma. Que o jornalista pode buscar outras vozes, as que clamam desde fora do centro do poder, e não apenas aquelas que se vendem como produtos. Ao evocar Marcos Faerman, um criador, um mago da palavra transformadora, sensível e revolucionário, Miriam desfaz qualquer possibilidade de frustração ou desencanto com essa feiticeira profissão. Pelo contrário, depois da verdade que se esparrama pelas páginas do livro, fica a certeza de que o jornalismo pode ser mudado. Não mais como uma grotesca farsa, mas como um discurso libertador, capaz de revelar o humano “sufocado em sua vontade de ser”.