O trabalho de Miriam Santini de Abreu no livro “Quando a
palavra sustenta a farsa – o discurso jornalístico do desenvolvimento
sustentável” é uma ousadia que se espraia em múltiplas direções, tal qual o
discurso que, de forma crítica, ela busca refletir. Ousadia polissêmica. Gesto
que se faz desde um lugar específico, singular, o Brasil, parte que se nega de
uma América Latina que ainda não conhece seu próprio rosto. E é deste espaço
que Miriam fala como jornalista, construtora de mundos, com o frágil/forte
tijolo da palavra. E fala ainda como um ser que vive e tem consciência de seu
espaço geográfico, que percebe a natureza não como uma inimiga a ser domada, e
muito menos como um sacrário a ser preservado dos pés e mãos humanas.
A natureza com a qual conspira
Miriam no seu mapa da farsa não é uma abstração romântica. Ela é o espaço
geográfico com todas as suas conformações: pedras, matas, águas, montanhas,
animais e homens. Uma simbiose que deve ser vista assim, na sua totalidade,
historicidade e na sua concretude social. Com a faca afiada da crítica que
desvela aquilo que se apresenta unicamente como aparência, a autora vai
ajudando o leitor a decifrar a intrincada rede de ilusões fabricada pelo dito
jornalismo ambiental que, na maioria de suas expressões, age como uma igreja,
incensando o chamado desenvolvimento sustentável, usando a tática de dividir a
paisagem entre o meio e o homem, como se isso fosse possível. Além disso,
Miriam mostra sem disfarces a fantasiosa ideia capitalista que torna
“responsáveis sociais” aqueles que tomam o ambiente como mercadoria e o
destroem em nome do lucro, mascarando essa degradação com o que chamam de
redução de danos.
Assim, nos veículos considerados
pelo trabalho em questão, pode-se observar que o jornalismo se faz não mais
como uma crítica análise do mundo da vida, mas sim como uma máquina de
propaganda de um sistema insaciável que esconde sua essência na chamada
“sustentabilidade”, conceito no mais das vezes falseado, porque não apresenta a
historicidade do fenômeno e muito menos a perspectiva do lugar. Por exemplo,
aquilo que aparece como sustentável na Europa, não tem o menor sentido na
África ou na Bolívia.
Noam Chomsky tem um trabalho
exaustivo sobre como, nos Estados Unidos, o jornalismo funciona como propaganda
de um modo de vida em que não está em questão a vida das maiorias e sim, os
interesses específicos de governo e empresas específicas. Mas, essa crítica
serve muito bem ao jornalismo praticado no Brasil, particularmente o ambiental,
tal qual mostra a análise feita por Miriam, até porque uma das características
do modo de fazer jornalismo neste país segue a mesma cultura colonizada de
quase todas as outras áreas do saber.
Pois neste livro incomodativo
Miriam estraçalha com todos os véus. Aguda analista do seu tempo, ela pega na
jugular e faz sangrar a farsa sem qualquer pitada de dó. Cada reportagem
dissecada pelo diagnóstico da pesquisa grita conceitos de uma gente
(jornalista) que parece ignorar as contradições do desenvolvimento capitalista
dependente, o qual não permite erro de análise: nenhum mundo contaminado por
esse modo de produção pode ser sustentável. Ou ainda, o que é pior, é praticado
por seres que se fizeram cortesãos do sistema e, portanto, impedidos – por
censura interna – de expressar as contradições. Assim, defender a ideia de
desenvolvimento sustentável só pode ser possível a estes que realmente estão
convencidos de que o sistema que obriga a morte de um para que o outro viva é
mesmo melhor e legítimo. E aí, o que faz a autora é interpelar cada um que se
disponha a ler esse trabalho, na mesma direção que Jacione Almeida em uma das
citações: “Trata-se de sustentar o quê? `Futuro comum´ de quem e para quem?” Esse é ponto! Certamente que
esta sustentabilidade está dirigida a uma classe em particular, e não são às
maiorias.
É justamente por isso que o
trabalho da autora é perturbador. Ela explicita, corajosamente, essa questão da
posição do sujeito jornalista, que nunca é neutro ou imparcial. Ao narrar, o
autor se desvenda a si próprio e qualquer tentativa de ignorar isso é apostar
na impostura. E é por acreditar nisso que Miriam questiona. Que tipo de pessoas
são essas, os jornalistas que narram a vida nas páginas dos jornais? Ingênuos, ignorantes ou os crentes no
capital? Que tipo de profissionais são esses que dão voz apenas ao poder,
silenciando outras vozes que clamam à margem? Que tipo de jornalista é esse que
só se dispõe a pisar as salas acarpetadas dos palácios e das grandes empresas,
negando-se a mergulhar no mundo da vida, esse, real, dos excluídos da
dignidade? Que jornalismo é esse que louva uma monstruosa ponte de cimento como
algo que se semeia na paisagem, enquanto mostra os empobrecidos que ocupam
áreas de preservação como a suja escória que deve ser varrida? Que prática é
essa que faz da vítima o vilão?
As respostas saltam das páginas,
sem que autora precise dizer. Tudo fica claro quando se percebe que o rei está
nu. O jornalismo hegemônico é uma fábrica de ilusão, amparada na mais descarada
publicidade, na qual a natureza perde a sua aura, vira fantasmagoria, se dilui
na prateleira do grande mercado do capital. O modo capitalista de reprodução da
vida se mostra no discurso dos jornais, impiedoso e simples, tornando difícil
entender como as pessoas não se dão conta da sua vilania.
E é nessa articulação entre o
espaço, a narrativa jornalística e o discurso que Miriam Santini de Abreu vai
desfilando sua ousadia de jornalista que toma posição. Dialoga segura com a geografia
de Milton Santos, esse intelectual brasileiro que também ousou e imprimiu um
desenho humano no debate sobre o lugar e a natureza. Revive a teoria
revolucionária de Adelmo Genro Filho, um pensador que conseguiu decifrar o
segredo de um jornalismo que se expressa no singular, mas só se torna crítico
quando articula e aspira ao universal. E, revela os sentidos do discurso a
partir de Eni Orlandi, uma analista que se aventura para além do texto,
revelando a polifonia e a ideologia que ele contém. Então, nesse entrecruzar de
elementos inimagináveis, e depois de uma impiedosa análise dos textos do JB
Ecológico e do AN Verde, a autora acaba revelando também um outro segredo,
singelo, mas fundamental: o jornalismo não precisa ser esta fábrica de
ilusões que aparece hegemônica, essa prática a-crítica e cortesã. O jornalismo
carrega em si mesmo, como já anuncia Adelmo Genro Filho, a possibilidade de ser
uma poderosa arma de desvendamento do real.
A ideia que fica é a de que,
apesar de toda a máquina de propaganda na qual se transformou o jornalismo, o
sujeito jornalista tem todas as condições de ser também aquele que tem
consciência de que fala desde um lugar, e que esse lugar tem historicidade. Que
o jornalista pode, no texto, fazer o trânsito entre o singular, particular e
universal, apresentando toda a atmosfera do fato e não apenas a sua
singularidade reificada, que empobrece, desinforma e deforma. Que o jornalista
pode buscar outras vozes, as que clamam desde fora do centro do poder, e não
apenas aquelas que se vendem como produtos. Ao evocar Marcos Faerman, um
criador, um mago da palavra transformadora, sensível e revolucionário, Miriam
desfaz qualquer possibilidade de frustração ou desencanto com essa feiticeira
profissão. Pelo contrário, depois da verdade que se esparrama pelas páginas do
livro, fica a certeza de que o jornalismo pode ser mudado. Não mais como uma
grotesca farsa, mas como um discurso libertador, capaz de revelar o humano
“sufocado em sua vontade de ser”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário