Alzheimer/Velhice

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Bradley Manning nos deu a verdade



Sempre fui renitente com os estadunidenses. Aquela coisa do preconceito que a gente vai madurando dentro da gente e que, por vezes, torna-se cristalizado e burro. Então comecei a ler os livros de Gore Vidal e vi que por lá havia vida inteligente. Mais tarde conheci Howard Zinn e, obviamente, constatei que a história desse povo também é cheia de beleza e de gente comprometida com a vida, com a verdade, com o bem de todos. Não dá para confundir o governo e a elite podre com as pessoas de bem, que assomam em milhares.

Uma dessas tem me causado tristeza e ternura nos últimos dias. O bravo soldado Bradley Manning. Sua carinha de menino, ainda cheia de espinhas, caminhando entre os guardas, com o semblante imutável, definitivamente certo de que fez o que tinha de fazer. Esse garoto era um analista de inteligência lotado no batalhão de suporte da 2ª Brigada da 10ª Divisão da Estação de Operação de Contingência, durante a Guerra dos EUA contra o Iraque. Mais um desses meninos que são obrigados a servir num país distante, travando uma guerra que não é deles, em nome de interesses escusos.

E tal como outros tantos soldados metidos nessas guerras estúpidas, Bradley viu coisas que não pode suportar. Todas essas denúncias que são feitas de terror, assassinatos, estupros, violências, torturas. Tudo isso passou por ele nos dados que manipulava no computador. Premido pela consciência ele decidiu divulgar os horrores que eram praticados pelos soldados no Iraque. Seu desejo era singelo: coibir os abusos. Como qualquer estadunidense comum ele acredita em quase todas as histórias de “mundo livre”, “democracia perfeita” e todas essas ideologias que o governo martela todos os dias através dos meios de comunicação e outras correias de transmissão. Ele sente orgulho em pertencer à armada de seu país. Por isso era confuso ver o que via. Aquelas imagens que observava no computador não fechavam com o ideal de mundo perfeito que tinha na cabeça. 

E foi por conta desse soldado que o mundo pode ver imagens duras como a da morte de uma dezena de civis, promovida sem qualquer pudor desde um helicóptero. E outras tantas atrocidades que apareceram no sítio da Wikileaks. Pois tudo o que Bradley queria é que esse terror tivesse fim. Na sua ingenuidade, talvez, ele acreditou que o desvelamento da verdade sobre o que acontecia no Iraque pudesse parar a máquina da morte. 

Pois o jovem soldado não sobreviveu à traição. Um informante que investigava o caso dos vazamentos de informação conseguiu descobrir que era Bradley a pessoa que havia desviado os documentos e o entregou às autoridades estadunidenses. Ao contrário de Julian Assange ou Edward Snowden, Bradley não teve para onde fugir. Foi preso e ficou confinado em condições de detenção desumanas. Foi apresentado à nação como um traidor. Virou o inimigo número um dos EUA. O “mundo livre” não podia deixar barato o fato de ter tido sua máscara arrancada por um quase guri. Assim, durante sua prisão, desde 2010, Bradley provou daquilo que via seus companheiros fazerem com os “inimigos”. Foi submetido a tratamento desumano. Segundo seu advogado, David, Coombs, Bradley permanecia trancado, sozinho, na cela, sem que tivesse roupas de cama, ou qualquer outro objeto pessoal. Até seus óculos foram retirados. Tudo o que podia fazer era caminhar em círculos dentro da cela vazia. Durante a noite, era obrigado a tirar toda a roupa e entregar aos guardas. Dormia apenas com a cueca. Uma suprema humilhação que visava destruir sua autoestima e seu desejo de viver.

Nessa semana o vimos de novo na televisão, durante seu julgamento. Acusado de 21 crimes diferentes ele foi condenado a 136 anos de prisão. Seus crimes se resumem num só: ele revelou a verdade sobre a guerra. Ele tirou o véu da mentira, colocou à nu a podridão, o terrorismo, o assassinato frio de homens, mulheres e crianças, gente civil.   

E ali estava ele, agora com 25 anos, sereno, ao ouvir a sentença. Talvez, dentro do coração, ainda esteja cheio de perplexidade, porque tudo o que queria era provocar o debate sobre o horror de uma guerra e os excessos cometidos por seus companheiros. Bradley, ao contrário do que dizem seus acusadores, queria salvar o seu “mundo livre”, limpá-lo das manchas. Um garoto ingênuo e sonhador.  Cometeu o terrível erro de tentar salvar seu país. Deveria ser carregado nos braços como um herói pelo seu povo. Deveria ser reverenciado por outros tantos jovens que, como ele, partem para os confins da terra lutando em guerras que nem entendem. 

Bradley Manning nos deu as provas da verdade tão denunciada. Agora vai pagar por isso, na solidão, certamente submetido a toda sorte de humilhações.  

Por conta disso se articulam em todo mundo comitês de apoio ao soldado que pedem a sua libertação. É que as pessoas que lutam por um mundo justo sabem que esse é um dever. Bradley arriscou tudo para nos dar a verde. Agora é hora de retribuir esse doloroso presente. 

terça-feira, 30 de julho de 2013

Alma húngara

Eu era menina e vivia na cidade de São Borja. Estranha guria, amante da solidão. Envolta em livros e velhos discos. Nos dias de verão intenso, quando o mundo parecia derreter e todas as almas faziam a sesta no pós meio dia, eu pegava a vitrolinha e ia para a varanda ouvir os discos do meu pai. Antigas canções sertanejas, música caipira de raiz. Ângela Maria, Carlos Galhardo, Orlando Silva, Vicente Celestino, Silvio Caldas, Miguel Aceves Mejía. Não me cabiam nem o rock, nem o iê-iê-iê. Eu era uma guria velha.

Mas havia um disco em particular que me tirava do mundo. Na capa, uma cena de acampamento cigano. Uma fogueira, uma mulher morena, bonita, com véus coloridos e pandeiro na mão. Ela dançava e, à sua volta, os demais a miravam com fervor. Dentro da capa, o disco, já surradinho, trazia toda a sorte de canções húngaras. Violino, acordeão, uma coisa que parecia penetrar peito adentro, como uma flecha fervente. Havia uma delas em particular que me amolecia as pernas e me tomava inteira de paixão. Czardas. Nunca em toda vida uma música me emocionou tanto. Quando ela tocava, meu corpo magrinho assomava e, com os olhos fechados, eu ficava a dançar. Primeiro, piano, só o balançar dolente. Depois, aquela explosão de beleza.

Nada podia ser mais inverossímil. No interior do Rio Grande, de frente para a campanha infinita, uma guriazinha meio-charrua se fazia cigana, de alma e coração. E quando eles chegavam, os ciganos de verdade, eu os espiava cheia de vontade de ser roubada, para poder viajar pelo mundo dançando ao pé da fogueira. Até hoje, quando o violino começa a tocar, volto àqueles dias de infância. E minha alma voa para os não lugares da Hungria que nunca conheci, mas que sempre amei.

O espaço do sagrado




Sou um bicho raro. Minhas primeiras leituras foram os mitos gregos, depois vieram os hebraicos, os semitas, os dos povos originários, os celtas, os africanos. Encantava-me esse universo da fé. E, nesse entrecruzamento de deuses, deusas e expressões do sagrado, fui percebendo que a religiosidade nos toma por dois motivos básicos: a falta de uma explicação plausível para os mistérios do mundo e a nossa fragilidade humana. Nietzsche muito bem definiu isso quando disse que a religião servia aos fracos.

Pois ao longo desse mais de meio século de vida, tantas vezes me vi tão fraca, tão sem força, tão frágil diante da tormenta do viver que, nessas horas, sempre, sem qualquer pudor,  me apeguei aos deuses. Eles serviam como redes onde podia descansar meu corpo doído ou espaços de abrigo seguro para minha alma em escombros. Mas, com Mestre Eckart aprendi que também os momentos de sublime beleza estão repletos desse sentimento indizível do sagrado. Horas assim em que a sensação de felicidade é tão grande que a gente se sente mergulhada num oceano intraduzível. O mistério. O ômega.

Também, ao longo dessa caminhada de mulher militante, de lutadora social, nunca escondi que junto a mundanidade das lutas, fatalmente carreguei a atmosfera do sagrado. Nunca me envergonhei de amar os ensinamentos de Jesus, de Buda, dos pajés, dos xamãs. porque, todos eles apontam para a construção de um ser humano de beleza, de sensibilidade, de ternura, de cuidado com o outro. Mesmo quando tomada pelo ódio, assoma em mim a certeza de que o ódio nos move na luta contra os vilões do amor, e, por conta disso, é necessário. Nossa humana condição é essa mesmo, sombra e luz, yng e yang.  E assim vamos caminhando.

Minha mãe era muito igrejeira e desde pequena convivi com essa atmosfera de santos e cerimônias. Uma das coisas que ela me ensinou é que o sagrado não está nas coisas, nas imagens. O sagrado está em nós e na maneira como vemos as coisas e nos movemos no mundo. Ainda assim, me apego a coisas, porque elas, de alguma forma, concretizam determinados sentimentos que por vezes, me são necessários. Amo a figura de São Francisco, por exemplo, não por ser santo, mas por ser o homem que foi, e gosto de tê-lo em casa, numa imagem, porque ao mirá-lo, volta e meia me recordo do que preciso ser. Também tenho em casa uma chacana, símbolo da religiosidade andina, e sua sombra na parede me impele a compreender as profundezas do mistério.

Guardo bonequinhos do Sr. Spock, do Mulder, do Saci, seres de ficção que me encantam com sentimentos bons, de alguma forma, sagrados. Tenho retratos do Che na parede  e espalho pela casa bernunças e carrancas do São Francisco.  Porque, para mim, imagens significam. Chorei quando os talibãs quebraram as estátuas do Buda porque imagino o quanto aquilo podia significar para alguém. Luto pelas comunidades indígenas e me indigno quando os brancos destroem seus espaços simbólicos do sagrados.

Não importa se a gente é de direita ou de esquerda. As coisas significam. E elas podem nos paralisar, nos alienar, nos escravizar ou nos libertar. Tudo vai depender de uma série de outras variáveis que vamos construindo ao longo da vida. Confesso, vivo carregada de religiosidade, embora isso não me torne prisioneira de dogmas ou de pessoas. Busco o sagrado e não tenho vergonha de me deitar nas redes do que chamam "supertição" ou "ópio".  Respeito os deuses de todos e tenho a firme convicção de que o melhor dos mundos é aquele no qual não existem "povos eleitos", definidos por algum homem ou mulher que se arvore decifrar o sagrado. O sagrado é indizível, indefinível, é um momento único de encontro com a beleza suprema. Disso não podem nascer igrejas, apenas relações de amor.

Sonho com o dia em que poderemos viver  nossas fraquezas, amparada nos nossos mais variados deuses e deusas, sem que ninguém diga qual deles é melhor. Esse dia está longe, e até lá, ainda teremos de vivenciar muita intolerância. O que é uma pena.

Enquanto isso, canto!

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Levanta o povo Charrua

Charruas levados prisioneiros para a França

Era uma fria manhã de 1834 na bela Lyon. Enquanto a cidade amanhecia, com seus odores de pão fresco e gentes malcheirosas, um homem jovem andava ligeiro pela rua ainda vazia. Carregava nos braços um bebê. Vestia-se pobremente e volta e meia olhava para trás, esperando ver soldados. Os poucos transeuntes não sabiam, mas ali ia um valente cacique charrua, chamado Tacuabé. Carregava a filha da também charrua Guyunusa que, como ele, fora aprisionada na região da Banda Oriental (hoje Uruguai), e remetida a Paris, como um bicho raro. Eram quatro os índios levados para a França: Tacuabé, de 23 anos, Vaimava, um velho cacique, Senaqué, um conhecido pajé charrua e Guyunusa. Obrigados a se apresentarem em circos pelos arredores de Paris, sofrendo maus tratos e saudosos de sua terra, os charrua foram morrendo um a um. O primeiro foi Senaqué, que definhou de tristeza, depois o velho Vaimaca. Guyunusa, com pouco mais de 20 anos, tomada pela tuberculose, morreu em Lyon, deixando um bebê que se acredita fosse filha de Vaimaca. Obteve de Tacuabé a promessa de que a garota haveria de ser livre. E assim, tão logo ela fecha para sempre os olhos, o jovem charrua decida escapulir do circo, levando com ele a menina. Os historiadores nunca acharam o rastro do cacique e da menina charrua, mas, se sobreviveram é possível que hoje o sangue charrua também corra em alguma família aparentemente francesa. Porque se ser charrua é ser valente, não há dúvidas de que Tacuabé conseguiu garantir a vida, dele e da menina, naqueles longínquos e tristes dias. 

Quem eram os charrua

Corria o ano de 1513 quando Juan de Solis chegou ao Rio da Prata e isso marcaria para sempre a vida dos povos que ali viviam desde há séculos. O povo charrua era uma gente aguerrida que habitava as pradarias do que hoje é o Uruguai, a pampa argentina e parte do Rio Grande do Sul. Chamado de vale do rio Uruguai essa era uma região de coxilhas e muitas pradarias, espaço de ventos intensos tanto no verão como no inverno. Além da gente charrua e do povo minuano, dividiam o espaço as capivaras, ratos do banhado, pecaris, veados, jaguatiricas e o mítico ñandu (a ema). 

Já em 1526, o espanhol Diego Mogger relata em suas cartas sobre esses indígenas que eram vistos de longe, observando e sendo observados bem na entrada do Rio da Prata. Os espanhóis descreviam os charrua como uma gente moreno-oliva, de estatura média, pomo de adão saliente, dentes bons, rosto largo, boca grande e lábios grossos. Os homens usavam cabelo bem comprido, muito lisos, e tinham por costume amputar um dedo da mão. Já os minuano eram um pouco mais baixos, de fala baixa, melancólicos e igualmente acobreados. Durante todo o processo de ocupação do território do que hoje é o sul da América Latina eles se mantiveram à distância, porque seu espaço era o interior e tantos os espanhóis quanto os portugueses preferiam se radicar nas margens do mar ou dos grandes rios. Mesmo assim, desde a chegadas dos invasores muitas foram as escaramuças, principalmente com os charrua. Desde o ano de 1573 já é possível encontrar relatos de lutas com os espanhóis. 

Eles viviam como grupos seminômades, em acampamentos estáveis, ora aqui, ora ali, seguindo o ritmo das estações. Caçavam e plantavam coletivamente num território que, depois da invasão, ficou durante mais de dois séculos como fronteira não demarcada entre Espanha e Portugal. Era visto pelos invasores como “terra de ninguém”. Mas, ao contrário do que poderiam crer os que chegavam da Europa, aquele era um espaço já há centenas de anos ocupado não só pelos Charrua mas também pelos povos Minuano, Tapes, Chaná e até Guarani. Ainda assim, apesar das lutas esporádicas, os originários eram ignorados. "Sem alma", diziam os padres. Assim, para os europeus, Joãos e Marias ninguém.

Só que, na verdade, esses povos já tinham desenvolvido uma cultura. Tinham uma organização comunitária e eram regidos por um conselho da aldeia. As tarefas eram definidas, os homens caçavam e as mulheres cuidavam dos toldos que lhe serviam de abrigos. Desenvolveram tecnologias eficazes para a caça como é o caso da boleadeiras, instrumento usado para derrubar os ñandus e bichos maiores. Já cozinhavam a carne e produziam vasos de barro escuro, os quais serviam para uso doméstico. Reverenciavam as forças da natureza e acreditavam na ressureição, uma vez que seus mortos eram enterrados com todos os seus objetos pessoais, para uso na outra vida. No verão andavam nus, no inverno se ungiam com gordura de peixe e usavam peles de animais. As mulheres usavam uma espécie de fralda de algodão, hoje conhecida como xiripá, chamado por eles de cayapi. Os homens usavam uma vincha (faixa de pano) na testa. Toda a organização girava em torno do núcleo familiar. Um homem quando queria se casar fazia o pedido ao pai da moça e já montava sua tenda. A comunidade não tinha hierarquia, tampouco chefe, tudo era decidido no conselho. Presos de guerra não eram escravizados, viravam família e se integravam na vida da comunidade. Todo grupo tinha uma mulher velha que cuidava da saúde. O grupo tinha por costume se reunir no cair da noite para planejar o dia seguinte, mas nada era imposto. Era um povo livre e essa forme de viver iria, três séculos mais tarde, encantar o jovem Artigas, que seria um dos libertadores nas guerras de independência. 

A ocupação espanhola

A vida dos charrua começaria a mudar radicalmente a partir de 1607 quando os espanhóis introduzem o gado bovino e equino na região e, como as pradarias não tinham fim, os animais se espalhavam chegando a gerar imensos rebanhos selvagens chamados de “cimarrón”. Tão logo conheceram o cavalo, os charrua se encantaram com a beleza, a velocidade e a docilidade dos mesmos. Trataram de aprender a lidar com eles e em pouco tempo era exímios cavaleiros, imbatíveis no lombo nu dos velozes cimarrón. Nas batalhas, eles se agarravam às crinas e permaneciam deitados de um lado, praticamente invisíveis aos inimigos. Por algum motivo não sabido, charrua e cavalo passaram a ser quase como uma só criatura.

Por outro lado, foi justamente o crescimento exponencial do gado bovino o responsável pelo fim da mal arranjada paz no território charrua. Como a carne e o couro eram artigos disputados pelo comércio da época, a região que antes era dominada pelos indígenas passa a receber levas de faeneiros (a mando dos espanhóis) e changueadores (aventureiros) que buscavam arrebanhar o gado selvagem para a venda aos ingleses. Essa mistura com a gente europeia e criolla vai enfraquecendo o já frágil domínio que os charrua tinham sobre o território da campanha. Também é nessa época que ficam mais acirradas as relações com a gente branca que começava a adentrar para o interior, cercando terras e fazendo-as suas.

Em 1626 é a vez da chegada dos jesuítas que começam a criar missões para aldear os índios. O objetivo era domesticar e converter. Os guarani foram mais suscetíveis ao discurso e a ação dos jesuítas, mas os charrua não quiseram nem saber. Eram homens e mulheres livres, acostumados aos caminhos da pampa e não houve quem pudesse prendê-los, ainda que com discursos de salvação. Diz a história que chegou a existir uma pequena redução charrua, em torno de 500 almas, mas não durou mais que quatro anos. Os charrua prezavam a liberdade e, acossados pela invasão branca, acabavam por realizar operações de saque nos povoados, em busca do fumo e da erva-mate. Por conta disso a relação com os colonizadores se acirrava cada vez mais. Naqueles dias começavam a surgir as estâncias, e o gado deixava de ser solto nas pradarias, sendo recolhido em grandes currais. Assim, os animais livres escasseavam e os indígenas perdiam sua fonte de sobrevivência, passando a viver em estado de miséria. Sem terra, sem gado e sem comida, só restava o roubo.

Para os espanhóis e criollos que começaram a ocupar as terras da Banda Oriental, aquela "indiarada" começou a ser um problema e tanto. Era preciso exterminá-los. Foi nesse contexto que aconteceu a famosa "batalha de Yi" em 1702, quando os espanhóis decidiram encerrar a aliança que mantinham com os charrua e os minuano, e resolveram matar todo mundo. Para isso, de forma perversa, contaram com a ajuda dos guarani, os quais já mantinham aldeados há anos. E o resultado foi que mais de 200 charrua pereceram sob o exército de dois mil guarani. Outros quinhentos, levados como prisioneiros para as missões, foram assassinados pelos tapes, também orientados pelos jesuítas e chefes espanhóis. Era o que os espanhóis chamavam de "limpeza dos campos". Na metade do século muitos tinham sido passado pela faca e as mulheres e crianças mandadas a Buenos Aires e Montevidéu servindo como domésticas. Ainda assim, vários grupos resistiram e seguiram vagueando pelos campos, vivendo de contrabando de gado e roubo.

Artigas, os charrua e a independência

São esses valentes que o jovem José Artigas vai encontrar nas cercanias das terras onde vivia com os pais, na imensidão da campanha gaúcha. Desde bem guri ele fugia para as tolderias e aprendia com os charrua o valor da vida em liberdade. Aprendeu suas táticas de guerra, sua cultura, sua forma comunitária de viver. Quando então, finalmente, saiu de casa para não mais voltar, foi viver de aventuras como contrabandista de gado. Abdicando de ser um “filho de fazendeiro” era com os irmãos charrua que ele vagueava pelos campos na única rebelião possível naqueles dias: pegar os espanhóis pelo bolso. Em 1897, quando decide entrar para o batalhão de Blandengles, Artigas já tem muito claro os seus objetivos. Inspirado por tantas lutas que assomaram contra o domínio espanhol, Artigas decide que, junto com os negros e índios – os mais explorados entre os explorados – vai comandar a luta pela independência da Banda Oriental. 

E é assim que as coisas acontecem. O soldado Artigas não é um soldado qualquer. Ele pensa e propõe. Tem do seu lado uma leva de homens livres que o seguem de livre vontade. Não como um líder, mas como a um irmão. Acreditam nele e nos seus desejos de vida digna, de terra repartida, de vida comunitária. Esse legado, aprendido com os charrua, é o que vai comandar toda a proposta artiguista de libertação. E é na valentia indígena que acontece a primeira grande batalha de Artigas, na comunidade de Las Piedras, em 1810. Armados apenas de facas, os comandados de Artigas colocam para correr os soldados bem armados da coroa. Depois disso, são inúmeras as páginas da guerra, com Artigas e seu grupo de índios e negros, aos quais chamava de “povo de heróis”. Com eles, praticava a política da soberania popular e da autodeterminação, gestando uma consciência de classe, de pertencimento, que se manteve firme até o massacre final. Nos acampamentos comandados por Artigas todas as coisas eram discutidas abertamente, cada soldado, cada mulher, cada ser, tinha direito a voz e voto. Era essa gente que deliberava, Artigas apenas cumpria. No primeiro grande êxodo, quando o povo seguiu com ele pelo lado norte do rio Uruguai, Artigas chegou a criar uma entidade sociológica, a qual dizia obedecer. Era o “povo oriental em armas”. Nunca traiu os seus companheiros e com eles levou a Banda Oriental à liberdade. 

Mas, a história da libertação desta parte do sul do mundo tem também os seus traidores, que acabaram sendo os carrascos de Artigas e dos charrua. Logo depois da independência, os interesses da elite criolla foram se consolidando e “aquela gente suja” que andava com Artigas acabou virando uma pedra no sapato. Ninguém queria que as ideias de reforma agrária, democracia e autodeterminação vingassem por ali.  A revolução artigista representava uma transformação radical nos métodos e práticas de governo. A prioridade era a ação direta do povo. As comunidades elegiam seus representantes de forma livre e era nas assembleias que se discutiam os temas relevantes da nação. Este sistema foi cunhado como o “sistema dos povos livres”. Pela primeira vez, depois da conquista europeia, o território voltava a ser das gentes. E a proposta defendida por Artigas era tão avançada que ele conseguia manter unidos os povos originários e os descendentes espanhóis sob o mesmo desejo: criar uma pátria nova, livre, soberana, onde cada um tivesse o mesmo poder. Era coisa demais para as elites locais e para os que sonhavam em dominar a região, rica em carne e couro. 

Foi aí que começou a se gestar o processo de destruição de Artigas e de seu povo. Através de intrigas e difamações, o comandante é escorraçado do Uruguai, partindo para o exílio no Paraguai. Com ele seguem dezenas de famílias charrua, decididas a compartilhar sua derrota. Mas, outros tantos permanecem no território uruguaio e passam a ser vistos como um perigo em potencial. Eram homens livres e não haveriam de aceitar a perda das terras e de todo o ideário construído com Artigas. O presidente da nação recém-criada, Fructuoso Rivera decide então chamar os charrua para uma armadilha. 

Corre o ano de 1831, num cálido abril, quando Fructuoso envia convites a todas as tolderias charrua para um encontro em Salsipuedes. Pede a ajuda dos indígenas para defender as fronteiras contra os portugueses. Os charrua acorrem, solícitos, em defesa da pátria oriental, a qual aprenderam a amar como sua. Eles chegam, armam seus toldos e esperam pelo presidente. Ele nunca chegaria. Durante a noite, enquanto os indígenas dormem, o exército ataca. A ordem é matar todo mundo. Nenhum charrua deve sair vivo.  O que se vê na manhã seguinte é um banho de sangue. O povo charrua está exterminado. Os poucos que restam vivos são vendidos como escravos. A nova nação se vê livre do incômodo: o valente povo charrua que, na verdade, foi o protagonista da liberdade.  

Entre os “escravos” levados para Montevidéu seguem Vaimaca, Senaqué, Tacuabé e Guyunusa, que dois anos mais tarde são levados como “bichos de circo” para a França. Subsumidos como criados e perdidos de sua liberdade o povo charrua originário do Uruguai vai se apagando, até deles não restar mais vestígios. Alguns poucos homens que sobrevivem ao massacre de Salsipuedes, comandados pelo cacique Sepé atravessam o rio Uruguai pela cidade de Quaraí, e passam para o lado português, indo, mais tarde, se integrar às colunas do exército farrapo que iniciou a luta pela independência na região do Rio Grande do Sul. Misturados aos minuanos e tapes, eles irão escrever páginas gloriosas no chão brasileiro, mas, igualmente derrotados, também desaparecem na poeira da história. 

O fim?

Até o final do século XX era dado como certo que o povo charrua era uma gente extinta. Dela restava só a memória daqueles anos longínquos da independência. Mas, pouco a pouco, pessoas foram se deparando com suas raízes, descobrindo seus ancestrais. Descendentes da gente charrua que passou para o Paraguai com Artigas, do grupo que cruzou o rio Uruguai e veio para o Brasil, dos que sobreviveram como escravos ou empregados domésticos. A história charrua voltou a ser contada, palavras da língua original começaram a ser lembradas e a vida brotou. O povo charrua foi assomando nos descendentes e hoje já são milhares os que se autodenominam assim. Há uma organização do povo charrua no Uruguai e outra no Rio Grande do Sul. Não há um território específico sendo reivindicado ainda, mas já se sabe que no início de 1900 havia um pequeno grupo fixado na região de Tacuarembó, no Uruguai, bem como atualmente há um grupo vivendo em comunidade próximo à Porto Alegre. 

Para os descendentes o mais importante agora é recuperar a história. O povo do Uruguai precisa saber que só é livre porque um dia o povo charrua se levantou em armas, junto com Artigas, e defendeu as fronteiras ajudando a criar a nação. O povo do sul precisa saber que os charrua foram enganados, massacrados, mas ainda assim deixaram viva a sua marca. Não é sem razão que na entrada de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a estátua que representa a cidade é uma figura que é um misto de paisano e charrua. O famoso “laçador”, apesar de um semblante bem paisano, aparece com o xiripá, a vincha na testa e a boleadeira, elementos típicos da cultura charrua. 

E, hoje, já na metade da primeira década do século vinte e um, os charrua se levantam e se mostram. Tanto que no dia 9 de novembro de 2007, após uma luta que já durava 172 anos, a Câmara Municipal de Porto Alegre reconheceu a comunidade charrua como um povo indígena brasileiro. Considerado extinta pela Fundação Nacional do Índio (Funai), essa foi uma vitória fundamental. O evento foi organizado em conjunto pelas comissões de Direitos Humanos da Câmara Municipal, da Assembleia Legislativa e do Senado Federal.

Há informações de que existem mais de seis mil charrua nos países que compõem o Mercosul. Só no Rio Grande do Sul, são mais de quatrocentos índios presentes nas localidades de Santo Ângelo, São Miguel das Missões e Porto Alegre. A terrível sentença de Fructuoso Rivera não se cumpriu. O povo que dominava todo o território da Banda Oriental não foi exterminado. Ele vive e avança!