Dona Vivi é uma mulher baixinha, pequena, de olhos apertadinhos que
vive em Oruru, Bolívia, com o marido Juan. Naquela noite, em La Paz, no
fevereiro de 2003, ela chegou espavorida, agarrada ao braço do velho
companheiro, o rosto moreno corado de ansiedade. Tinham ido tomar um café na
rodoviária e viram a confusão. Pela rua acima vinha a turba de gente quebrando
e queimando tudo. Ela percebeu que algo estava errado porque conhecia bem a
turbulência da vida boliviana. Mulher de mineiro e filha de cocaleiro, ela
mesma já tinha passado por coisas assim sua vida inteira. Nunca fora fácil ser
trabalhador na Bolívia.
Dona Vivi tentou sair em direção ao hotel, mas Juan não estava muito
bem. Tinha dificuldade para andar. Fora por isso mesmo que tinham vindo para La
Paz. Ele iria fazer alguns exames no Hospital Obrero. Os seguranças da
rodoviária fecharam as portas de ferro, ninguém mais podia entrar ou sair.
Entre os turistas que esperavam ônibus, o medo era palpável. Os gritos da gente
lá fora ecoavam fortes e parecia que um imenso vagalhão iria assomar por sobre
o pavilhão.
A confusão começara horas antes em frente ao Palácio Presidencial.
Policiais militares, que estavam em greve há dois dias, tinham ido fazer um
protesto e foram recebidos a bala pelo exército boliviano. Em poucos minutos a
guerrinha particular das forças armadas gerou 13 mortos. Em frente a Praça
Morillos os corpos se estendiam diante de uma multidão ainda passiva. Mas,
quando o sangue escorreu pela calçada, uma espécie de frêmito tomou conta das
gentes. Estudantes secundaristas que tinham ido à praça para protestar
começaram a função jogando pedras nas janelas do palácio. Foi o estopim de uma
revolta represada. As pessoas, em turbilhão, começaram a entrar nos prédios e a
quebrar tudo. De dentro dos edifícios voavam mesas, cadeiras, computadores,
papéis. Em pouco tempo o fogo irrompeu. Em volta da praça o clima era de
completa balbúrdia.
Sem qualquer policiamento e com o exército alheio a tudo, protegendo
apenas o palácio, a multidão foi colocando para fora todos os seus demônios. O
que era um protesto político virou desaguadouro de outras mágoas. Uma grande
loja de departamentos, identificada como “americana” foi completamente saqueada
e destruída. A turba seguia, derrubando, queimando, saqueando, destruindo. E,
assim, foi descendo em direção à rodoviária, onde estavam Vivi e Juan. Não
pouparam nem as bancas das índias. Tudo era arrasado.
Aquela foi uma tarde de terror. Só no início da noite Vivi conseguiu
chegar na hospedaria com seu marido Juan. No dia seguinte teriam a consulta no
hospital, mas já anteviam que aquilo iria ter de esperar. Durante a noite, os
hóspedes se reuniram na sala principal, todos muito assustados. Seria uma
madrugada de tensão e medo. Era um hotelzinho barato e talvez por isso tenha
ficado de fora da sanha dos saqueadores que assaltaram a cidade por toda a
noite. Acordados, todos, ouviam os tiros, os gritos, e sentiam o cheiro da
fumaça do fogo que queimava por toda La Paz.
O segundo dia foi o pior. A polícia continuava amotinada. Os
saqueadores tomavam a cidade. Nas estradas, outros tantos bloqueavam ônibus e
carros. Bancos queimavam, prédios do governos eram destruídos e o exército
havia colocado franco atiradores pelos prédios, os quais atiravam contra a
multidão que se dividia entre os que protestavam e os oportunistas que
saqueavam. As centrais obreras tinham chamado uma greve geral para aquele dia e
o clima era de muito pavor. Ninguém sabia o que poderia acontecer. Todos
esperavam um rio de sangue.
As caminhadas de sindicalistas e representantes do movimento popular
aconteceram em La Paz e nas principais cidades da Bolívia. Bandeiras brancas
pediam paz. Franco atiradores balearam uma médica e mataram uma enfermeira que
ajudavam os feridos. A cidade entrou em comoção. Ninguém mais queira sair dos
hospitais para ajudar. Foi um dia inteiro de completa confusão. Mortos e mais
mortos. No meio disso tudo o governo se mantinha calado. Na televisão, os
comentaristas exigiam que o presidente Sanchez de Losada resolvesse o caso da
polícia para que esta voltasse às ruas, reestabelecendo a ordem.
Vivi e Juan não se assustaram com toda a violência. Durante aquela
manhã haviam saído para tomar café e também saíram na hora do almoço. Não
podiam ficar sem se alimentar, dissera ela. “A senhora não tem medo?” -
perguntava eu. “Isso é a Bolívia, querida”, respondia, serena. No meio da tarde,
enquanto pela porta do hotel passavam as gentes carregando portas, janelas,
computadores e outros que tais, ela, serena, anotava receitas de comida
brasileira que eu lhe passava. “Adoro cozinhar”.
No início da noite o presidente veio à TV falar com o povo. Havia
concedido o aumento aos policiais e estes estariam voltando para as ruas. A
Bolívia voltaria a ter paz (?), dizia. Na sala, com os companheiros de hotel,
ouvi, aparvalhada, a fala de Goni, o presidente. Falava ele com sotaque inglês.
“Mas como???” - perguntava eu, perplexa. Ele parece um estadunidense falando.
“Ele é um deles”, diziam os homens, irritados. “Viveu a vida toda lá,
representa os interesses deles”. “Mas vocês o elegeram?”... “Somos todos uns
burros”, vociferou um mineiro de Cochabamba que esperava o fim dos conflitos
para voltar para casa. “Somos todos uns burros”, repetia.
Fiquei mais um dia em La Paz esperando que liberassem os ônibus.
Pelas ruas, as pessoas falavam do levante com aquela fleuma que é peculiar a um
povo calejado nos horrores e nas rebeliões. A vida voltava ao normal. Na
rodoviária, os turistas retomavam o movimento. As velhas índias ocupavam seus
lugares pelas escadarias a pedir esmolas e os policiais, de volta às ruas, eram
saudados com alegria. Vivi e Juan foram, enfim, ao hospital. “Vou experimentar
a feijoada, filha”, despediu-se, sorrindo, a mulher de sangue índio e esperança
atávica. A Bolívia ficaria para trás, manchada de sangue e fogo...como se o
tempo não houvesse passado desde o passado imemorial...
Eu ainda não sabia, mas aquele era um dos tantos episódios da famosa
Guerra do Gás, que colocaria para correr o presidente com sotaque de “americano”.
E, desde ali, a Bolívia seguira por outros senderos.
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