Quem passa pelas ruas do centro de Florianópolis já naturalizou a cena de famílias indígenas sentadas nas esquinas principais, com seus cestos, bichinhos de madeira e crianças. Poucos são os que percebem a presença humana. Alguns, ao notar, fazem aquela cara típica de quem está incomodado. Aquelas caras morenas, aqueles pés descalços e aquelas crianças ranhentas significam exatamente isso: um incômodo. No máximo, conseguem alguma comiseração. Nada mais que isso.
Os índios Guarani, que vivem nas proximidades de Florianópolis, seja em Biguaçu ou no Morro dos Cavalos, vivem a mesma triste realidade dos irmãos de outras etnias no Brasil. Sem terras boas, perdidos de sua cultura num mundo que nem os integra nem os aceita, precisam sair das aldeias para trocar as belezas que fabricam por dinheiro. Muita vezes, são esses minguados trocados garantidos pelas mulheres que permitem a sobrevivência. Tutelados pelo estado, mas sem uma assistência digna, as mais de 240 etnias brasileiras vivem em constante combate com o poder público bem como com o agronegócio, disposto a roubar tudo o que resta de terra indígena para o monopólio da soja, da cana ou do gado. E, nessa batalha, o índio acaba sendo sempre a parte mais fraca. Roubado, assassinado, destruído, apagado da história.
O relatório da violência contra os povos indígenas no Brasil produzido pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) é a prova mais concreta dessa realidade. O trabalho levanta todos os enfrentamentos e retrocessos vividos pelos indígenas no ano de 2012, espaço de tempo em que se percebe uma brutal intensificação da violência, seja ela física ou institucional.
Foi em 2012 que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a Emenda Constitucional 215, um tremendo retrocesso legal articulado pelas bancadas dos ruralistas e dos evangélicos. Com essa emenda fica na mão dos deputados a decisão sobre a titulação das terras não só dos indígenas, mas também dos quilombolas. Ora, essas bancadas são as representações do capital internacional concretizados em empresas como a Monsanto, Bayer, Syngenta, Cargill e outras, todas ligadas ao agronegócio, que vem abrindo novas fronteiras agrícolas em estados como o Mato Grosso do Sul e Amazônia, espaços onde ainda têm muito índio. Daí a necessidade de ter o controle das demarcações. Muitas têm sido as manifestações contrárias por parte dos indígenas, mas a coisa avança. Até porque, as demais entidades de movimentos populares e sindicais não conseguem assumir essa causa como sua. São pautas que ficam na periferia dos movimentos enquanto os índios resistem em quase completa solidão.
Também no ano de 2012 a Advocacia Geral da União publicou uma portaria, a 303, na qual apresenta uma interpretação sobre as condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal no que diz respeito à terra indígena Raposa Serra do Sol (Pará), estendendo as mesmas para todas as áreas e retroativamente, o que significa que qualquer demarcação já realizada pode ser revista a qualquer momento. De novo aí estão agindo as grandes empresas internacionais do agronegócio em parceria com a oligarquia rural local. Desde aí, tem havia momentos importantes de levantamentos indígenas, de luta, protesto, manifestação. Tudo isso enfrentado com violência estatal e empresarial, ocasionando mortes e desaparições.
A situação chegou a tal ponto que, no Mato Grosso do Sul, onde estão centenas de indígenas esperando demarcação de terras, vivendo na beira de estradas, um grupo de Guarani-Kaiowá precisou lançar um manifesto anunciando a decisão de morrer coletivamente se preciso fosse para que o governo acordasse um mínimo diante da tragédia das gentes. A reação internacional, bem mais que nacional, reacendeu o problema da demarcação de terras, mas ainda que a comoção tomasse conta do país por algum tempo, logo essa pauta deu lugar a outros temas, e tudo seguiu como antes. Nada resolvido, apenas a fria e decisiva violência contra as populações.
No relatório do CIMI, os números falam alto. Os governos de Lula e Dilma Roussef foram os que menos homologações de terra fizeram desde o primeiro governo civil, na década de 80. Sarney homologou 67 áreas e Lula 79. Dilma realizou apenas 7 homologações, embora existam hoje 339 terras indígenas já identificadas sem que qualquer providência tenha sido tomada. Isso sem falar das outras 293 áreas em processo de estudo. Fica clara, portanto, a completa omissão do governo federal diante da tragédia vivida pelas famílias indígenas. Também no ano de 2012 aumentaram os casos de conflitos e mortes envolvendo indígenas, fruto das invasões efetuadas por fazendeiros para a exploração ilegal de recursos naturais. Foram 62 ocorrências contra 42 em 2011.
O caso mais dramático de violência estatal foi o ataque à aldeia do povo Munduruku, no Pará, onde a polícia federal invadiu a comunidade, destruiu moradias, escola, o posto de saúde, os barcos, o sistema de comunicação e todos os instrumentos de trabalho dos indígenas. O pretexto para isso foi o de que os indígenas estavam praticando garimpo ilegal. Na ação, que foi pródiga em espancamentos, acabou assassinado um jovem índio, Adenilson, praticamente executado com um tiro na cabeça. Na verdade, o povo Munduruku tem sido uma pedra no sapato do governo e do agronegócio na medida em que trava uma feroz batalha contra as hidrelétricas planejadas para o rio Tapajós. A ação violenta da PF foi uma intimidação e mesmo que tenha sido brutal, resultando num morto, nada aconteceu. Fora isso ainda foram registrados mais 60 casos de indígenas mortos em conflitos provocados por fazendeiros ou estado, sendo que só o Mato Grosso do Sul é responsável por 32 assassinatos.
O fato é que os indígenas brasileiros estão colocados no meio de um processo que alguns economistas chamam de neo-desenvolvimentismo e que a mídia chama de progresso. Nesse universo estão as hidrelétricas, são 40 só na região amazônica, o alargamento da fronteira agrícola, a opção pela monocultura predatória, os interesses do agronegócio, a exploração de matéria primária como o minério. Tudo isso tem exigido a desocupação das terras onde vivem os indígenas. O argumento para isso é que eles estão entravando o processo de crescimento e que é preciso que eles se sacrifiquem pela nação. Nada poderia ser mais cínico. E, nessa guerra de interesses o estado já provou que está ajoelhado diante dos grileiros de terra.
Enfim, o relatório cuidadosamente elaborado pelo CIMI é um relato de horrores que merece ser conhecido pelo povo brasileiro. Há que se tomar posição diante da nova onda explícita de destruição da vida e da cultura dos povos originários. Nunca é demais lembrar que essa gente já ocupava esse território bem antes de que chegassem aqui os portugueses e espanhóis, portanto, não é possível que se tente empurrar para baixo do tapete da história essa realidade. Hoje são quase um milhão de pessoas que se autodeclaram indígenas e eles têm todo o direito de ocupar suas terras originais, bem como viver sua cultura e definir como querem organizar a vida. Esse é um direito assegurado pela Constituição e deveria ser um imperativo ético. A esfarrapada desculpa do progresso não se sustenta, uma vez que as benesses desse "progresso" são dirigidas a um pequeno e específico grupo: o do agronegócio. Ou seja, uma gente que sequer produz comida para a mesa das gentes.
As grandes mobilizações que acontecem hoje no Brasil carregam as mais variadas bandeiras, mas poucas são as que expõem a tragédia vivida pelos povos indígenas. Há que montar uma grande rede de solidariedade, caminhando para uma articulação concreta das lutas. A batalha dos indígenas por seu território é também a batalha da gente por harmonia e equilíbrio. Não há como separar o drama da destruição da Amazônia da nossa vida cotidiana, pois cada folha que cai no norte provoca algo no sul. É a lei da natureza. Tudo está ligado. O relato da violência contra os povos indígenas no Brasil é, como sempre, um grito lancinante. O que se espera é que ele não fique no vazio.
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