Alzheimer/Velhice

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A cidade desigual: tremei, sem-lanchas...




Circulou na ilha de Santa Catarina uma reportagem sobre os "sem-lancha" que vivem na capital. Em linhas gerais, dizia que em Florianópolis o nível de vida é tão alto que os ricos que povoam a ilha têm como grande demanda social a construção de marinas, porque, agora, muito mais gente pode comprar barcos para passear no fim de semana, percorrendo as 42 praias que há.

Otília lia o recorte tirado da internet no ônibus das 18:15 que faz Centro/Rio Tavares. Ficara  40 minutos na fila porque, pagando 2,90 reais, ela decide ir sentada, mesmo que tenha de deixar passar dois ou três ônibus, sempre lotados. Eu sentei ao seu lado e fiquei rabeirando com o olho o tal recorte. Ela percebeu e começou a falar. Tinha a voz embargada. "Sabe o que eu queria? Conhecer quem escreve isso? Será que os que escrevem nos jornais não vivem na cidade? Será que são de fora? Ou será que são uns filhos da puta, mesmo?" Foi a minha hora de envergonhar, já que jornalista sou.

Otília mora no sul, no bairro Tapera. A rua onde tem seu "barraco", como chama, não tem calçamento nem esgoto. Ela trabalha numa padaria no centro da cidade. Veio para Florianópolis na grande explosão migratória dos anos 80. O pai, lavrador na região de Lages, não  conseguia mais trabalho e decidiu vir para a capital para ver o que dava. Aqui batalharam muito pra viver. "A gente chegou e ficou naqueles barracos que tinha na Via Expressa, lembra, que o Amim mandou derrubar? Meu pai catava lixo e a gente se virava. A mãe foi trabalhar de doméstica e crescemos nessa batalha. Hoje conseguimos fazer uma casinha lá na Tapera, é nossa, mas foi muito sacrifício. A mãe, mesmo, não viu. E lá no bairro não tem classe alta não, a gente é tudo pobre. Essa cidade do jornal só existe em Jurerê".

Otília não está muito errada. Os "sem-lancha" existem na ilha e são muitos. Ocupam os bairros nobres como Jurerê, Daniela, Santa Mônica, Itaguaçu, o centro, a Beira-Mar. E só conseguem desfrutar da vida porque existem milhares, como Otília, que limpam sua sujeira, fazem sua comida, cuidam de seus filhos. Como diz Ítalo Calvino, em suas cidades invisíveis, há uma cidade que aparece e outra que fica velada. Assim em Floripa. Na mesma região dos Ingleses, do famoso Costão do Santinho, vivem centenas de famílias sem-teto, em barracos sobre as dunas ou terrenos de ocupação, alagadiços e insalubres. No sul da ilha outras tantas famílias batalham para barrar a onda imobiliária que vem arrasando o modo de vida, erguendo prédios de alto nível para moradores esporádicos que chegam de helicóptero no verão.

São pelo menos 64 áreas de periferia na cidade, gente vivendo em condições precárias, em constante luta por moradia, por vida digna. Por esses dias, mais de 120 famílias foram jogadas fora de um terreno que ocuparam na vizinha cidade de São José, e estão abandonadas em ginásios. Precisam, em meio ao desespero, encontrar forças para lutar. E com elas vai o movimento social, que se mobiliza, e organiza, e protesta. A ilha da magia não é a ilha de paz e riqueza que a mídia apregoa. O que há são grandes empreendimentos que construtoras e especuladores querem impor à cidade, num "progresso" que só chega para alguns. Desde há anos tentam construir marinas em lugares como a Lagoa da Conceição e a Ponta do Coral, espaços de beleza e de vida comunitária. A meta é privatizar a beleza, entregá-la aos novos e velhos ricos.

Enquanto isso, pessoas como Otília, e toda aquela massa que se acotovela nos ônibus ao final da tarde, só têm direito ao indescritível pôr do sol, que se vislumbra pela janela. Muitas vezes até ele é negado porque não são poucos os que, vencidos de cansaço, fecham os olhos e dormem. Perdem a beleza, e a vida vai se esvaindo. Por isso, a indignação de Otília, a incredulidade diante do recorte, do cinismo do repórter.

Florianópolis adormece, mas nas entranhas, viceja a luta. E enquanto a classe alta sonha com marinas, os pobres se organizam e planejam o assalto a uma vida que seja digna de ser vivida. Tremei, sem-lancha, porque a onda vem...!  

3 comentários:

  1. Nesta cidade do "faz de conta" terá transporte coletivo, em lanchas, claro,superhipermega lotadas, com direito a baldeações nos terminais ?....e os usuários, seriam os "novos pobres", empregados dos "com-lanchas" particulares?

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  2. A crônica da semana é sobre os sem-lancha, os sem-lanche e os sem-noção de Florianópolis. Espero que gostem.

    http://www.notaderodape.com.br/2012/10/os-sem-lancha-os-sem-lanche-e-os-sem.html

    crônica de Fernando Evangelista e de todos que pensam como tu, Elaine. Somos muitos que n~]ao aceitamos esta visão estereotipada de nossa Ilha. Telma Piacentini

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  3. Florianópolis, hoje uma cidade dividida, não seja amanhã uma cidade partida. Uma cidade Dilacerada entre a 'angustia do atraso' e a 'agonia do progresso', o temor do provincialismo e as armadilhas do cosmopolitismo das megalópoles.
    Tudo isto foi sabiamente escrito a 20 anos pela Antropóloga "Márcia Fantin" em seu livro " Uma cidade dividida", que fez uma comparação entre o que aconteceu no Rio e hoje vai se tornando uma realidade em nossa cidade, neste belo texto da nobre Jornalista Elaine Tavares.
    Parabéns pela sua capacidade de narrar em uma forma simples e tão compreensiva.

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