Há três anos quase morri. Estava com uma infecção numa pequena espinha que brotou nas costas e nenhum dos 12 médicos dos postos de saúde de Florianópolis pelos quais passei conseguiu ver. Depois de um mês inteiro de agonia, já com bolas gigantes em todo o pescoço e omoplatas, por insistência dos amigos, decidi buscar um infectologista famoso. Ele me atendeu e em menos de 15 minutos já tinha o diagnóstico. Olhou para mim, deu importância para minhas queixas, realizou um bom exame e medicou. Coisa rara. Em três dias estava bem.
Essa maratona nos postos de saúde me mostrou duas situações: médicos mais antigos, totalmente insensíveis e arrogantes, e médicos jovens, apavorados e despreparados. De 12 profissionais nenhum olhou para a espinha que eu tinha nas costas, sobre a qual eu insistentemente reportava. Alguns deles nem me tocaram, escrevendo a receita do indefectível paracetamol. Uma desimportância com os seres doentes, uma desconexão humana.
Naqueles dias de desespero me veio, nítida, a imagem do Dr. Hildebrando, um médico que cuidava de mim e dos meus irmãos na pequena cidade de São Borja. Morava do lado da nossa casa e minha mãe não tinha dúvidas. Se algum de nós ficava doente, ela saia porta afora e invadia o consultório. Ele era um homem sério, não recordo de vê-lo sorrir. Mas, era cuidadoso. Atendia com paciência e, no final do dia, batia na porta a perguntar como estávamos. Se a doença era grave ele vinha, todos os dias, espiar. Dinheiro era a última coisa que entrava na relação. Se houvesse, muito que bem, se não, também não era problema.
O Dr. Hildebrando era desses médicos que cuidava de seus pacientes por toda a vida. E quando alguns deles morria, ele ia ao enterro, cabisbaixo. Seguia o caixão na sua impotência, visto que sabia que a medicina só ia até certo ponto. Depois, era o mistério.
Médicos como aquele não existem mais. Pelo menos eu não tive a sorte de encontrar por aqui onde vivo hoje, na bela ilha de Santa Catarina. Em 24 anos de moradia, cada vez que fico doente vou num médico diferente. Não encontrei o meu “Dr.Hildebrando”, alguém que me olhasse como uma criatura humana, frágil e insegura na dor. No geral, a maioria nos vê como um talão de cheques ou um pedaço doente. Hoje, há médico para cada pedacinho do corpo. Perdeu-se a ideia de totalidade. Ninguém mais trata as pessoas, só pedaços delas. Tampouco há essa humildade de saber que às vezes, o único remédio que a pessoa precisa é um apertar de mãos e um dizer seguro: fica tranquila, isso vai passar. Não, seus olhares não se cruzam com os do paciente e suas bíblias são os catálogos das indústrias farmacêuticas.
Dia desses enfrentei forte gripe. Com medo da H1N1 fui atrás de médico. Toda a agonia outra vez. Assustada e sem conseguir consulta, me rendi outra vez ao particular. Liguei para 10 clínicas e mesmo pagando não havia vaga. Mais alguns telefonemas e nada de vaga. “Só para o dia 22”, e era dia 2. “Até lá já morri”. “Sinto muito”. Nem pagando.
Perdida de toda a sanidade recorri a automedicação. Pesquisas na internet, buscas nos livros de medicina. Estressada até o último grau, envolvida com greves e outros quetais, fui para a farmácia encomendar os remédios. Por um milagre, a farmacêutica olhou pra mim. E sentiu todo o desespero. Solícita foi perguntando o que era, os sintomas, acalmando. “É gripe forte, mas não é a suína. Fica tranquila. Vai passar”. Caí em lágrimas. Era o que eu precisava. Alguém que pudesse ver um ser humano em escombros. Seu nome é Selma e ela tende na farmácia do terminal, no meio do caos. Sai com o xarope na mão e a alma em festa. Não era o Dr. Hildebrando, mas já estava bom. Ainda assim sigo esperando, que haja, em algum lugar, alguém capaz de cuidar da gente como aquele carrancudo, mas cuidadoso, médico do interior.
E que a doença não me alcançe...
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