Alzheimer/Velhice

sábado, 17 de março de 2012

Lucinha, orixá do rio


Rio São Francisco, final de tarde. Era comum as gentes passearem pelo cais de Pirapora (MG) para ver o pôr-do-sol. Havia algo de mágico nisso. Todos os dias eu pegava a magrela e, pedalando, fazia todo o cais, desde as duchas (pequenas cachoeiras) onde ficava o Xangô (um bar) até o final, lá onde descansavam os “gaiolas”, os grandes barcos que navegavam o rio ainda movidos a carvão. Bem no final era a zona do meretrício, lugar proibido para as mocinhas. Mas, eu sempre fui curiosa e distraída. O rio me encantava e eu descia, descia, descia... Quando via, já estava em meio às pequenas casas que já anunciavam a luz vermelha.

Foi lá que conheci a Lucinha, uma linda negra pernalta, de riso solto e gestos largos. Era como uma flor de manacá, fresca e cheirosa. Lavava roupa para fora e passava o dia inteiro no tanque. “Tem problema não, branquinha. A gente fortalece os músculos e não cria barriga. Olha só... É só encolher o estomago... Sempre. A barriga não se cria”. Não ligava de morar na zona e não dava bola para fuxico. “Me deito com quem eu quero. Ninguém me paga as contas”. Gostava de ficar na calçada, ao fim do dia, com sua bacia de mangas ou tamarindos. Depois, banhava no rio e secava ao sol como as roupas que lavava. “Têm dias que eu queria deitar na água e ir até Juazeiro, boiando. Será que existe céu? Conheci minha mãe não, acho que sou filha do cão”.

Hoje, enquanto batia os lençóis no tanque de casa lembrei-me daquela moleca, poucos anos mais velha que eu. Onde andaria? Que teria sido feito de sua vida? Ainda posso ouvir sua risada de cristal enquanto corria pela areia da praia perseguindo um pássaro qualquer. Nossa amizade fugidia, de alguns minutos ao pôr-do-sol, de compartilhamento de frutas e pequenos sonhos se quedou lá na beira do rio. O bom e velho São Chico, forjador de belezas em mim. A Lucinha era como um orixá das águas, uma força viva da natureza e deve andar por lá, de músculos duros e barriga sarada. Nunca me dera conta, mas agora sei, essa mania de encolher o estômago... Lembranças de um tempo antigo e da sabedoria barranqueira.

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