Alzheimer/Velhice

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

As Malvinas e a sujeira por baixo do tapete





A vinda do príncipe William às Malvinas para treinamento militar, e o anúncio da Inglaterra de que enviará o moderno navio de guerra HMS Dauntless para patrulhar as águas do arquipélago detonou uma série de denúncias sobre a militarização do Atlântico Sul e trouxe a tona uma série de questões não resolvidas do conflito sobre a retomada da soberania das ilhas levada a cabo pelos militares em 1982.

Naqueles dias, já na agonia do regime militar, a ditadura enfrentava problemas demais. O modelo econômico estava esgotado, havia um reboliço social, a inflação alcançava patamares altíssimos, a miséria assomava. A saída encontrada pela junta militar foi o apelo ao patriotismo. E desde aí, o chamado para a guerra contra a Grã-Bretanha no sentido de recuperar as ilhas que haviam sido invadidas em 1833 durante o período em que os ingleses fizeram da América Latina o seu espaço de poder colonial. A primeira ocupação do arquipélago aconteceu em 1690, pela Espanha, então invasora oficial, e desde aí França e Inglaterra lutavam pelo comando até que em 1833, quando a América Latina terminava seu processo de libertação colonial, a Inglaterra consolidou seu poder sobre as ilhas. Os argentinos, depois de finalizado o processo de libertação, sempre reivindicaram aquele espaço como seu. Assim, o motivo da disputa era mais do que justo, embora o momento e a forma só servissem para desviar a atenção dos problemas internos. O resultado só poderia ser o desastre.

Nesse sentido, a jogada dos militares foi, na verdade, o começo do fim do regime. A guerra durou dois meses apenas, com a Argentina sendo solapada pelo exército britânico. Morreram 649 soldados argentinos, 255 britânicos e três civis das ilhas. E, ao final do conflito, com o governo militar sendo deixado sozinho pelas demais nações, quem acabou pagando caro, como sempre, foi o povo, tanto o argentino que sofreu o terror da guerra em sua porta (com a vinda de bombardeiros nucleares para a costa), quanto o inglês. A Inglaterra vivia naqueles dias um processo eleitoral e a guerra foi a hora perfeita para aprofundar as medidas de arrocho que já vinham sendo praticadas pela dama de ferro, Margareth Tatcher.

Hoje, perto do aniversário de 30 anos do conflito, a militarização na área das Malvinas faz acender o pisca alerta. Aquela não é uma região qualquer. Geopoliticamente é a entrada para a região Antártica e estratégica no que diz respeito ao tráfego marítimo no espaço austral. Além disso, fala-se em prospecção de petróleo por parte da Inglaterra. Do ponto de vista da lógica, não há argumento para que o arquipélago continue na mão dos ingleses, uma vez que historicamente, na América Latina, o colonialismo já teria acabado. Assim, nada mais justo que aquele território voltasse para as mãos do povo argentino. Esse é um debate que mexe com as entranhas de qualquer cidadão do país vizinho.

Assim, os últimos acontecimentos soam como uma provocação ao governo argentino, que vive uma conjuntura bem diferente da época da guerra. Já não há mais uma ditadura militar e sim um governo que não é bem visto pelo grupo dos poderosos. Cristina Kirchner faria parte do chamado eixo-do-mal (governos de esquerda) que governa hoje o continente latino-americano.

Para os argentinos, esse seria um bom debate, pois há uma grande parte da população que não colocaria na presidente essa etiqueta de esquerda. Basta ver os constantes conflitos e a feroz repressão que os trabalhadores vêm enfrentando nas grandes cidades, no campo, na luta contra as mineradoras, na questão indígena, sem que Cristina assuma uma posição favorável à maioria.

De qualquer sorte, a presidente pegou a pauta apresentada pelos ingleses e tem feito duras declarações e denúncias sobre a militarização das Malvinas, exigindo, inclusive, uma posição da ONU com relação a isso. A crise reacendeu também um pouco do patriotismo que andava apagado e os veteranos da guerra voltaram à cena, fazendo manifestações e se colocando do lado da presidente.

Mas, nesse universo de gente que lutou contra a Inglaterra naquela guerra quase absurda, pois visava muito mais o fortalecimento da ditadura, gente há que até hoje não foi reconhecida pela lei como veterana de guerra. São os soldados que estiveram em alerta e a postos no continente. Segundo a lei que definiu indenizações e pensões aos veteranos de guerra, apenas aqueles que participaram do campo de batalha nas ilhas e no mar tiveram direito de ser reconhecidos. Os soldados que ficaram no continente não foram considerados veteranos, coisa que se colocou inaceitável por toda uma juventude que viveu o terror por dois meses, sempre em alerta contra uma possível invasão pelos ingleses: “nós vivemos todo o estresse de uma guerra real. Nós esperávamos a cada minuto que um avião bombardeasse nossas cidades, nós estávamos em prontidão, sofrendo e vivendo todas as angústias das batalhas. Não é justo que nos abandonem agora”, afirma Luis Gianini, do Acampamento Toas da Plaza de Mayo, que representa mais de 400 ex-soldados.

Esse acampamento foi erguido há quatro anos exigindo o reconhecimento destes soldados, reivindicando que sejam incluídos no orçamento das aposentadorias. Todos os dias, a presidente Cristina os vê de sua janela, faça chuva ou faça sol. Mas, passado todo esse tempo nada foi conseguido, como se a governante fosse incapaz de ver e ouvir o clamor das famílias que se revezam no acampamento. O governo segue dizendo que os soldados que ficaram no continente não participaram da guerra e por isso não teriam direito. Para os manifestantes, essa posição é absurda e ninguém está disposto a desistir dessa luta.

Agora, na última semana, com a retomada do tema pela grande imprensa eles decidiram fazer uma manifestação na 9 de julho (principal rua de Buenos Aires), para que seus argumentos pudessem ser ouvidos, mas foram duramente reprimidos pela polícia com caminhões lança-água e bombas de gás. Vinte e quatro pessoas foram presas. Para os manifestantes, essa é só mais uma brutalidade do governo que já os pune por não reconhecê-los. Mas, isso não os fará calar nem desistir da luta. Nos últimos anos, os veteranos das Malvinas conquistaram aposentadorias bastante polpudas (cerca de 1.500 dólares) e esses 400 soldados que viveram todos os terrores da guerra, ainda que não tenham entrado em batalha, querem fazer valer seus direitos. “Para nós, muito mais do que o dinheiro é o reconhecimento. Nós estivemos na guerra, nós sofremos tudo aquilo e a nação argentina não pode nos excluir dessa triste página da história”.

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