O cinema já imortalizou esta cena. Zumbi dos Palmares, resistindo até o último momento, no alto da Serra da Barriga, comandando mais de 50 mil almas, preferindo a morte digna que a rendição. Não sem razão que esta passou a ser a principal figura do panteão de heróis do povo negro. E haveria de ter muitos e tantos, sem nome ou rosto, que enfrentaram a escravidão nestas terras tropicais, trazidos, como bichos, nos navios negreiros ingleses, sustentando a economia daquele país que viria a ser um império.
Pois foi com os braços de homens e mulheres negros que os lordes garantiram a revolução industrial e a consolidação do sistema capitalista. Só o braço escravo, já bem contou Eric Williams, daria conta da colonização baseada na monocultura extensiva. Mas essa gente valente, que foi sequestrada de suas terras, nunca se rendeu. A liberdade era seu horizonte e tão logo escapavam das correntes criavam quilombos, comunidades livres, solidárias, auto-gestionadas. A maior delas: Palmares. E é em honra a esse povo, com Zubi à frente, que no dia 20 de novembro, se celebra o Dia da Consciência Negra.
A data não é uma lembrança ritual de um tempo que já passou. Ela é a ferida aberta de uma sociedade que segue vivenciando os pressupostos do tempo da escravidão, mergulhada no racismo e na discriminação. Basta ver o que aconteceu agora, no período eleitoral, com as manifestações raivosas contra os nordestinos. Por isso que é preciso lembrar, e lembrar, e lembrar o que resultou de todo o processo escravista nestas terras brasilis.
Desde quando os portugueses decidiram apostar na mão-de-obra escrava aqui, nas novas terras, foi necessário consolidar uma ideologia que respaldasse o absurdo. Era mais do que óbvio que a elite colonial não haveria de espalhar aos quatro cantos que esta era uma medida “econômica” necessária para garantir seus lucros. O melhor foi então criar a idéia de que os negros eram de uma raça inferior, tal qual os índios, gente de segunda classe aos quais não faria diferença ser escravizado. Ou melhor. Era natural que o fossem. E então foi só repetir, e repetir, e repetir. A coisa pegou. E tanto, que passados 300 anos de escravidão, até mesmo os escravos – pessoas das gerações que se seguiram e que nunca haviam conhecido a liberdade – acreditaram nisso.
Depois, com o fim do regime escravista, uma vez que já estava garantida acumulação do capital das famílias coloniais, a ideologia seguiu fazendo seus estragos. Os negros libertos ficaram ao léu. Não havia política para inclusão de toda uma multidão de gente que, de repente, se via livre. Muitos, já velhos, não tinham como vender a sua força de trabalho e perambulavam pelas ruas, a mendigar. Ao que o sistema acrescentou novos adjetivos: preguiçosos, vagabundos, marginais. Nas grandes cidades eles foram se encravando nos morros, buscando um canto para morar, já que o Estado lhes abandonava.
E então, como não havia como eliminar a presença do negro na vida nacional, uma vez que aqui eram milhões, a elite decidiu que era preciso “embranquecer” o país, já que, conforme sustentavam os ideólogos de plantão, a raça negra haveria de constituir sempre um dos fatores da inferioridade do país. Ou seja, depois de terem usado do braço negro para forjar suas riquezas, a elite os considera causa da desgraça nacional. Cínismo pouco é bobagem.
Desde então, sociólogos, antropólogos e cientistas sociais se debruçam sobre aquilo que chamaram e ainda chamam de “problema do negro”, buscando refletir os elementos do racismo e do preconceito. Diante desta diferenciada forma de capitulação ideológica, o sociólogo Guerreiro Ramos vai apontar sua metralhadora verbal. “Por que o negro é um problema? O que o faz ser um problema? Uma condição humana só é elevada a condição de problema quando não se coaduna com um ideal, um valor, uma norma. Se se rotula `problema´ao negro é porque ele é anormal. O que torna problemática a situação do negro é que ele tem a pele escura. Essa parece ser a anormalidade a sanar”. Ramos lembra que foi a superioridade européia no processo de colonização que criou estas manifestações - as quais chama de “patológicas” – de que o padrão estético dito normal e bonito só pode ser o branco. “ É uma tremenda alienação que não leva em conta a realidade local. Nossa país é um país de negros”.
Guerreiro Ramos argumenta que enquanto os estudiosos brasileiros não se libertarem da visão eurocêntrica da qual são cativos, muito pouco se poderá dizer sobre o racismo e a discriminação do negro no país. Os autores mais incensados, como Gilberto Freire e Nina Rodrigues, por exemplo, viam o negro como o exótico, o problemático, o não-Brasil. Euclides da Cunha acreditava que a fusão das raças era prejudicial e que o mestiço era um decaído, embora pudesse transcender e ser salvo pela civilização. Era uma espécie de tese de “embranquecimento” pela inclusão na vida nacional. Oliveira Viana chegou a dizer que a inferioridade seria passageira porque a tendência seria, pela mestiçagem, embranquecer.
Na tese defendida por Guerreiro Ramos a saída é a afirmação cotidiana da condição de negro, “niger sum”, pelo seu significado dialético numa sociedade em que todos parecem querer ser brancos por força da ideologia. “Sou negro, identifico como meu o corpo em que está o meu eu e considero minha condição ética como um dos suportes do meu orgulho pessoal”. Ele também defendeu, durante toda a vida, de que era necessário tirar do próprio negro a idéia de que havia um “problema do negro”. “O negro no Brasil é povo, o negro não é um componente estranho da nossa demografia”.
Hoje, o movimento negro atuante no Brasil tem trabalhado bastante essa tese, de afirmação cotidiana, mas não é fácil desfazer séculos de ideologia. Além do que é também possível encontrar entre algunas ONGs a idéia de que para o negro valem as políticas pobres como aquelas que, com dinheiro de fundações estrangeiras - como Ford, a Kellogs e outras que são inclusive responsáveis pela condição econômica de periferia de nossa gente - promovem cursos de cabelereira para mulheres negras e de garção para homens negros, como se a eles só pudessem ser garantidas estas profissões.
As cotas nas universidades avançaram em muito a dialetização da questão racial no Brasil, tanto que o racismo vivo e fulgurante se manifestou de várias maneiras, inclusive com estudantes brancos entrando na Justiça contra elas, como se as cotas já não fossem uma realidade nas universidades. Só que as cotas que existiam até então eram para os estudantes com cursinho particular, os nascido em berço explêndido e estes não admitiam “repartir” a vida universitária com estes que muitos ainda consideram “inferiores”, justificando a cristalização da ideologia implantada nos tempos coloniais.
Também o sistema capitalista é pródigo em cooptar as idéias e bandeiras do movimento negro, transformando em produto a idéia de afirmação racial, como se pode notar nas revistas especializadas que acabam dando destaque ao negro, mas sempre dentro dos padrões capitalistas, de consumo e de estética.
Por isso a lembrança de Zumbi é tão desconfortável, e não foi sem razão que, em Florianópolis, tenha sido recusada pela Câmara de Vereadores a proposta de um feriado no Dia da Consciência Negra. Porque quando se fala de Zumbi dos Palmares, se fala de outro modo de organizar a vida, auto-gestionada, cooperativa, solidária, comunitária, outros padrões de beleza e de relação com as coisas. Quando se fala em Zumbia se fala de luta aguerrida, armada, rebelde. Porque na sua história de líder de Palmares, Zumbi recusou a rendição, a composição de classe, a capitulação. Ele foi até o fim na proposição /niger sum/ (sou negro), e para a elite branca e racista isso pode se configurar num “mau explemplo”. Melhor encobrir ou ainda, tornar um produto.
De qualquer forma aí está o Dia da Consciência Negra nos interpelando, fazendo pensar que ainda há muito caminho a percorrer na destruição da ideologia racista inoculada desde os tempos coloniais.
Que viva Zumbi e que viva a idéia poderosa da afirmação de Guerreiro Ramos: Sou negro, sou povo brasileiro!