Alzheimer/Velhice

sábado, 20 de novembro de 2010

Sou negro


O cinema já imortalizou esta cena. Zumbi dos Palmares, resistindo até o último momento, no alto da Serra da Barriga, comandando mais de 50 mil almas, preferindo a morte digna que a rendição. Não sem razão que esta passou a ser a principal figura do panteão de heróis do povo negro. E haveria de ter muitos e tantos, sem nome ou rosto, que enfrentaram a escravidão nestas terras tropicais, trazidos, como bichos, nos navios negreiros ingleses, sustentando a economia daquele país que viria a ser um império.

Pois foi com os braços de homens e mulheres negros que os lordes garantiram a revolução industrial e a consolidação do sistema capitalista. Só o braço escravo, já bem contou Eric Williams, daria conta da colonização baseada na monocultura extensiva. Mas essa gente valente, que foi sequestrada de suas terras, nunca se rendeu. A liberdade era seu horizonte e tão logo escapavam das correntes criavam quilombos, comunidades livres, solidárias, auto-gestionadas. A maior delas: Palmares. E é em honra a esse povo, com Zubi à frente, que no dia 20 de novembro, se celebra o Dia da Consciência Negra.

A data não é uma lembrança ritual de um tempo que já passou. Ela é a ferida aberta de uma sociedade que segue vivenciando os pressupostos do tempo da escravidão, mergulhada no racismo e na discriminação. Basta ver o que aconteceu agora, no período eleitoral, com as manifestações raivosas contra os nordestinos. Por isso que é preciso lembrar, e lembrar, e lembrar o que resultou de todo o processo escravista nestas terras brasilis.

Desde quando os portugueses decidiram apostar na mão-de-obra escrava aqui, nas novas terras, foi necessário consolidar uma ideologia que respaldasse o absurdo. Era mais do que óbvio que a elite colonial não haveria de espalhar aos quatro cantos que esta era uma medida “econômica” necessária para garantir seus lucros. O melhor foi então criar a idéia de que os negros eram de uma raça inferior, tal qual os índios, gente de segunda classe aos quais não faria diferença ser escravizado. Ou melhor. Era natural que o fossem. E então foi só repetir, e repetir, e repetir. A coisa pegou. E tanto, que passados 300 anos de escravidão, até mesmo os escravos – pessoas das gerações que se seguiram e que nunca haviam conhecido a liberdade – acreditaram nisso.

Depois, com o fim do regime escravista, uma vez que já estava garantida acumulação do capital das famílias coloniais, a ideologia seguiu fazendo seus estragos. Os negros libertos ficaram ao léu. Não havia política para inclusão de toda uma multidão de gente que, de repente, se via livre. Muitos, já velhos, não tinham como vender a sua força de trabalho e perambulavam pelas ruas, a mendigar. Ao que o sistema acrescentou novos adjetivos: preguiçosos, vagabundos, marginais. Nas grandes cidades eles foram se encravando nos morros, buscando um canto para morar, já que o Estado lhes abandonava.

E então, como não havia como eliminar a presença do negro na vida nacional, uma vez que aqui eram milhões, a elite decidiu que era preciso “embranquecer” o país, já que, conforme sustentavam os ideólogos de plantão, a raça negra haveria de constituir sempre um dos fatores da inferioridade do país. Ou seja, depois de terem usado do braço negro para forjar suas riquezas, a elite os considera causa da desgraça nacional. Cínismo pouco é bobagem.

Desde então, sociólogos, antropólogos e cientistas sociais se debruçam sobre aquilo que chamaram e ainda chamam de “problema do negro”, buscando refletir os elementos do racismo e do preconceito. Diante desta diferenciada forma de capitulação ideológica, o sociólogo Guerreiro Ramos vai apontar sua metralhadora verbal. “Por que o negro é um problema? O que o faz ser um problema? Uma condição humana só é elevada a condição de problema quando não se coaduna com um ideal, um valor, uma norma. Se se rotula `problema´ao negro é porque ele é anormal. O que torna problemática a situação do negro é que ele tem a pele escura. Essa parece ser a anormalidade a sanar”. Ramos lembra que foi a superioridade européia no processo de colonização que criou estas manifestações - as quais chama de “patológicas” – de que o padrão estético dito normal e bonito só pode ser o branco. “ É uma tremenda alienação que não leva em conta a realidade local. Nossa país é um país de negros”.

Guerreiro Ramos argumenta que enquanto os estudiosos brasileiros não se libertarem da visão eurocêntrica da qual são cativos, muito pouco se poderá dizer sobre o racismo e a discriminação do negro no país. Os autores mais incensados, como Gilberto Freire e Nina Rodrigues, por exemplo, viam o negro como o exótico, o problemático, o não-Brasil. Euclides da Cunha acreditava que a fusão das raças era prejudicial e que o mestiço era um decaído, embora pudesse transcender e ser salvo pela civilização. Era uma espécie de tese de “embranquecimento” pela inclusão na vida nacional. Oliveira Viana chegou a dizer que a inferioridade seria passageira porque a tendência seria, pela mestiçagem, embranquecer.

Na tese defendida por Guerreiro Ramos a saída é a afirmação cotidiana da condição de negro, “niger sum”, pelo seu significado dialético numa sociedade em que todos parecem querer ser brancos por força da ideologia. “Sou negro, identifico como meu o corpo em que está o meu eu e considero minha condição ética como um dos suportes do meu orgulho pessoal”. Ele também defendeu, durante toda a vida, de que era necessário tirar do próprio negro a idéia de que havia um “problema do negro”. “O negro no Brasil é povo, o negro não é um componente estranho da nossa demografia”.

Hoje, o movimento negro atuante no Brasil tem trabalhado bastante essa tese, de afirmação cotidiana, mas não é fácil desfazer séculos de ideologia. Além do que é também possível encontrar entre algunas ONGs a idéia de que para o negro valem as políticas pobres como aquelas que, com dinheiro de fundações estrangeiras - como Ford, a Kellogs e outras que são inclusive responsáveis pela condição econômica de periferia de nossa gente - promovem cursos de cabelereira para mulheres negras e de garção para homens negros, como se a eles só pudessem ser garantidas estas profissões.

As cotas nas universidades avançaram em muito a dialetização da questão racial no Brasil, tanto que o racismo vivo e fulgurante se manifestou de várias maneiras, inclusive com estudantes brancos entrando na Justiça contra elas, como se as cotas já não fossem uma realidade nas universidades. Só que as cotas que existiam até então eram para os estudantes com cursinho particular, os nascido em berço explêndido e estes não admitiam “repartir” a vida universitária com estes que muitos ainda consideram “inferiores”, justificando a cristalização da ideologia implantada nos tempos coloniais.

Também o sistema capitalista é pródigo em cooptar as idéias e bandeiras do movimento negro, transformando em produto a idéia de afirmação racial, como se pode notar nas revistas especializadas que acabam dando destaque ao negro, mas sempre dentro dos padrões capitalistas, de consumo e de estética.

Por isso a lembrança de Zumbi é tão desconfortável, e não foi sem razão que, em Florianópolis, tenha sido recusada pela Câmara de Vereadores a proposta de um feriado no Dia da Consciência Negra. Porque quando se fala de Zumbi dos Palmares, se fala de outro modo de organizar a vida, auto-gestionada, cooperativa, solidária, comunitária, outros padrões de beleza e de relação com as coisas. Quando se fala em Zumbia se fala de luta aguerrida, armada, rebelde. Porque na sua história de líder de Palmares, Zumbi recusou a rendição, a composição de classe, a capitulação. Ele foi até o fim na proposição /niger sum/ (sou negro), e para a elite branca e racista isso pode se configurar num “mau explemplo”. Melhor encobrir ou ainda, tornar um produto.

De qualquer forma aí está o Dia da Consciência Negra nos interpelando, fazendo pensar que ainda há muito caminho a percorrer na destruição da ideologia racista inoculada desde os tempos coloniais.

Que viva Zumbi e que viva a idéia poderosa da afirmação de Guerreiro Ramos: Sou negro, sou povo brasileiro!

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Zumbi vive


Foi assim, andando sem rumo pelo centro da cidade, eu vi Zumbi. Estava em frente ao McDonalds da Deodoro, encostado na parede, olhando fixo para outros adolescentes como ele, que se empanturravam de Big Mac. Era um guri de uns 17 anos, com um tênis que parecia maior que o pé, magro, calça jeans caída deixando aparecer um fio da cueca e o abdômen bem torneado. O rosto luzia como o de um deus. Impassível, com um pé na parede, ele observava. Não havia ódio, nem raiva no rosto de barba rala, a qual cofiava, pensativo. Talvez um enfado. Nas mesinhas, a gordurosa comida se misturava aos risos dos “bem nascidos”. E ele ali, Zumbi, olhando, soberbo.

Então, como pressentindo que algo muito esperado vinha, ele enfim desviou o olhar do grupo ruidoso. E pela direita surgiu a princesa, Dandara, eu presumo. Gigante, luzidia, caminhava como se estivesse nas nuvens, apesar do salto 10. Poderosa, impressionante, num vestido amarelo ouro que lhe realçava as formas de bronze. Os brincos enormes balançavam brilhantes e ela abriu um sorriso de pérola quando viu o garoto, agora com o rosto suavizado pela visão do paraíso. Na mesa do McDonalds, todo mundo parou para vê-la chegar, era por demais luminosa.

Ela chegou e lhe sussurrou algo. Ele riu largo e olhou para as mesinhas. Ela jogou a cabeça para trás e estufou o peito como a dizer, “vamo-nos”. E saíram pela rua, de mãos dadas, vez ou outra olhando um nos olhos do outro. Ela lhe afagou o cabelo, ele maneou a cabeça, ela lhe tocou a boca com a orelha, ele assentiu. Então, pararam em frente ao carrinho de água de coco. Ela sorveu com gosto a água amarguinha. Ele acompanhou. Ela olhou com mofa para o McDonalds, ele abriu outra fieira de pérolas. E dividiram o coco, um e outro, lambendo o mesmo canudo. Zumbi e Dandara, dois negros de hoje, defendendo suas barricadas. Cá fora assomam os exércitos, os Domingos Velho, a cultura do consumo e da colonização mental. E eles ali, na água de coco, resistindo e rindo-se dos burgueses, como reis do quilombo.

Encheram-me de ternura aqueles dois, e me fizeram ver que a resistência negra aí está, todos os dias, na rua, na cidade, abrindo veredas, a despeito do racismo e do preconceito. E se foram eles pelo mercado afora, deixando um rastro de beleza na rua e em mim.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Tomando o céu por assalto - El Salvador e a luta da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional


El Salvador é um país da América Central com apenas 21.040,79 km. Faz limite com Honduras, Guatemala e Oceano Pacífico. Seu pequeno território inclui ainda nove ilhas e o golfo de Fonseca, abrigando pouco mais de seis milhões de almas. O que é hoje um país dependente, antes da chegada dos espanhóis abrigava duas importantes civilizações: os pipiles, que tinham seu centro em Cuzcatlán e os maias, na parte ocidental. Estes dois povos tinham uma cultura bastante avançada, conheciam a astronomia, a arquitetura e a escrita baseada em desenhos.

Os espanhóis apareceram por aquelas terras no ano de 1524, comandados por Pedro Alvarado que venceu os pipiles e fundou a cidade de San Salvador, para apagar da memória a linda Cuzcatlán. Desde então, o processo de extermínio das comunidades autóctones seguiu como em toda a América Latina, e instalou-se a colônia. Ainda assim, a cidade fundada por Alvarado teve um protagonismo importante na luta pela independência da região. Quando por todo o continente clamavam as vozes de libertação, em 1811, um padre de nome José Matias Delgado levantou o povo em armas. Foi derrotado mas plantou uma semente que nunca mais haveria de deixar de germinar.

Tanto que quando a Guatemala se fez livre em 1821 e anexou El Salvador ao seu território, os movimentos por liberdade não cessaram. Durante muitos anos a região fez parte das Províncias Unidas da América Central (com Guatemala, Honduras, Nicarágua e Costa Rica). Mas, em 1841, finalmente El Salvador tornou-se república independente.

Esta condição não foi coisa fácil e por 40 anos o país viveu inúmeros conflitos entre as forças conservadoras e liberais. Foi só no início do século XX que os conservadores venceram a queda de braço e governaram o país por décadas, sempre escolhendo seus sucessores sem se importar em consultar a população. El Salvador era como uma grande fazenda, na qual as gentes eram apenas um detalhe. Ditadores eram coisa comum no país.

Mas esta face da opressão e violência contrastava com o desejo de liberdade que seguia vivo na população e eram as revoltas populares que faziam avançar direitos no país. Apesar da mão firme dos dirigentes militares, o povo se insurgia vez ou outra e o Partido Comunista era uma das poucas instituições a travar a luta por democracia e autoderminação.

Nos anos 60, quando toda a América Latina caiu sob as ditaduras militares, El Salvador já era “useira e vezeira” desta prática. Ainda assim, naqueles anos os partidos de esquerda foram colocados na ilegalidade. Mais de 300 mil pessoas sairam do país, fugindo da miséria e da opressão. Quando os anos 70 chegaram, a luta interna exigia medidas mais radicais e é aí que nascem as Forças Populares de Libertação “Farabundo Martí”, o Partido da Revolução Salvadorenha, que ficou conhecido como o Exército Revolucionário do Povo, a Resistência Nacional e o Partido Revolucionário dos Trabalhadores Centroamericanos. O país vivia uma efervescência popular que ficou ainda mais forte com o triunfo da revolução sandinista, na vizinha Nicarágua, em 1975. Vários focos guerrilheiros floresciam no país.

A experiência nicaraguense levou a um processo de unificação da esquerda que constitui a Coordenadora Político Militar, juntando várias instituições. No campo político nasce, nos anos 80, a Frente Democrática Salvadorenha, disposta a jogar no campo eleitoral, dentro das regras da democracia liberal. Mas, essa experiência não dura mais do que 17 dias e as entidades percebem a necessidade de se preparar a investida armada conjunta, por isso também é criada a Frente Democrática Revolucionária. A luta se acirra em todo o país contra o governo de corte autoritário e direitista. Em março de 1980, nem mesmo o bipo da igreja católica Dom Oscar Romero é poupado. Por ajudar os pobres e defender os guerrilheiros era muito mal visto pelo poder, o que levou ao seu assassinato, em plena missa, quando rezava junto com seus fiéis.

A morte de Romero acelerou a junção da esquerda, que atuava em focos separados. Assim, no dia 10 de outubro de 1980, a união de três grandes entidades de esquerda dá vida à Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional com o seguinte manifesto: haverá somente uma direção, um só plano militar, um só comando e uma só linha política. Diante disso, os Estados Unidos passou a ajudar o governo salvadorenho, pois havia que derrubar qualquer outra tentativa de libertação na América Central. Começa então uma guerra sem quartel. O governo é cada vez mais duro, usando todas as armas do terror contra a população camponesa. As gentes resistem em frentes de luta organizada.

A guerra civil em El Salvador durou longos 10 anos, ceifou mais de 75 mil vidas, e as forças revolucionárias não lograram vencer. A ajuda militar estadunidense que fincou pé na região para destruir os sandinistas, acabou por atuar também no país, levando a FMLN a assinar um acordo de paz em 1991, sob a mediação da ONU e hoje a Frente é partido político integrado á vida institucional salvadorenha.

Mas é na década de luta guerrilheira da brava gente salvadorenha que nasce a Rádio Venceremos, inspirada na histórica Rádio Rebelde criada por Che Guevara na Cuba revolucionária. Esta emissora, transmitindo nas condições mais adversas, no meio da mata, conseguiu ao longo de todo o processo revolucionário ser uma referência de luta e organização do povo alçado em rebelião. Hoje, a memória daqueles dias de bravura e esperança está registrada no Museu da Palavra e da Imagem. Um dos fundadores da rádio, o venezuelano radicado em El Salvador, Carlos Henríquez Consalvi, que hoje comanda o museu, conseguiu recuperar um vídeo que conta como atuavam os comunicadores populares durante a marcha pela liberdade.

O documentário emociona ao mostrar homens e mulheres na valente tarefa de difundiar informações desde a selva, sem qualquer possibilidade técnica, apenas com a férrea vontade de mudar o mundo. As caras de alegria de cada um dos que ali protagonizaram a história do povo salvadorenho são e uma ternura abissal. E mostram como é possível fazer comunicação quando o que está na frente é um sonho possível de vida digna e riquezas repartidas. Tomando o céu por assalto, estas gentes salvadorenhas nos ensinam o caminho. Vale a pena ver.

http://www.tal.tv/es/webtv/video.asp?house=P001483&video=10-ANOS-TOMANDO-EL-CIELO-POR-ASALTO

domingo, 14 de novembro de 2010

Puxada de Cavalo

Cerca de 15 pessoas mantém uma vigília na entrada de Ribeirão Souto, em Pomerode , Santa Catarina, em protesto contra a chamada "puxada de cavalo". Nesta "brincadeira", a comunidade obriga os cavalos a puxarem mais de duas toneladas, num longo e doloroso processo de tortura. No ano passado várias pessoas foram agredidas e este ano os manifestantes contam com a proteção da polícia militar.
Neste momento, as pessoas estão cerca de dois quilômetros do local onde acontece a "puxada". O pessoal da comunidade está armado com ovos podres e bosta de cavalo para jogar em quem se aproximar com o que eles chamam de discurso de "ecochato". Segundo os manifestantes a tortura aos cavalos nem pode ser chamada de "tradição" pois faz apenas pouco mais de uma década que a "brincadeira" acontece. Ainda há muita estrada para trilhar na defesa dos animais.
Nietzsche, no final da vida, teve um momento de profunda tristeza quando viu um cavalo ser espancado pelo seu dono. Agarrou-se ao animal e chorou por muito tempo, impotente diante do arbítrio. Hoje, já é possível fazer mais do que chorar. Os animais estão aí para serem cuidados pelos humanos. Basta de tortura!
Lá em Pomerode, poucas mas comprometidas pessoas, fazem a sua parte.