Alzheimer/Velhice

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Quando o “menor” não é meu

A cidade de Florianópolis, no sul do Brasil, está estarrecida diante de algumas informações que chegam aos correios eletrônicos como se fosse um rastilho de pólvora. Uma garota de 13 anos, de um colégio de gente endinheirada, teria sido estuprada por colegas, praticamente da mesma idade. Um dos garotos seria filho de conhecido empresário, outro de um delegado. Uma carta de mães indignadas – que o colégio nega que sejam de lá – descreve a atrocidade com riqueza de detalhes. Nenhuma informação saíra na imprensa porque, dizem as mães, um dos estupradores é filho do dono de uma rede de comunicação. O jornal Diário Catarinense deu uma nota no dia 30 de junho, lacônica, divulgando o ocorrido, mas, alertando para o fato de que como todos são menores de idade o inquérito segue sob segredo de justiça. Nenhum nome, nenhuma informação a mais.

Muito bem. Corretíssima nota do DC. Quando são menores os envolvidos em crimes, não se divulgam nomes, não se publicam fotos. E mesmo se são maiores e não há flagrante, não se poderia divulgar porque haveria apenas uma presunção de crime. Os nomes só poderiam ser divulgados depois de as pessoas terem sido julgadas. E as fotos, só publicadas com a autorização do vivente. Mas, claro, isso só vale para os que conhecem a lei, no caso, os ricos, que podem ter bons advogados. Com os pobres, tudo é liberado.

Seria bom que o DC agisse assim em todos os casos que envolvessem adolescentes infratores. Seria bom que os jornais preservassem o direito dos menores, impedindo assim que eles ficassem marcados para o resto da vida por conta de alguma infração cometida nesta idade “tão problemática”. Mas ocorre que este debate está eivado de um recorte de classe. Quando são os pobres que cometem crimes, o que está implícito nos informes que nos chegam via TV ou jornal é de só poderiam acabar assim. “Não tem educação, não tem chances, estão fadados ao fracasso”. Como se isso fosse coisa natural. E não é assim. O prefeito Sérgio Cabral, do Rio de Janeiro, chegou ao absurdo de chamar as mulheres pobres e negras que vivem nos morros de “fábricas de marginal” porque, afinal, é de seus ventres que saem os filhos da pobreza.

Mas e quando quem comete um crime é um rico? Como a coisa anda? A primeira tese que se levanta é que a criatura deve ter algum problema mental. Vide o caso da loira que matou os pais, num fato que ficou semanas no ar. Pois é assim. Já se é um pé rapado quem mata os pais, aí está certo. É quase óbvio, é “da sua natureza”. Um juiz que rouba o INSS é protegido pela polícia federal. Jovens que matam um homossexual não tem seus nomes revelados para não terem seu futuro estragado. Não são menores, só ricos. Os canalhas que falsificam licenças ambientais, porque são empresários freqüentados por artistas e governadores são escoltados por agentes públicos, sem autorização para fotos. Depois, quando são soltos seguem suas vidas entre champanhes e festas. Nada os marca para sempre. Nada.

Agora este caso da garota violentada é mais um para esta triste estatística. Ficará em segredo de justiça para não manchar a vida dos garotos. Certamente haverão de se defender teses sobre graves problemas que teriam estes adolescentes, porque só isso poderia explicar tamanha infâmia, tamanha crueldade. Não é da natureza de jovens bem-nascidos cometerem atrocidades. Vamos lembrar os que queimaram o índio Galdino, hoje vivendo muito bem, em cargos públicos até. “Foi uma fatalidade”.

Ah! A hipocrisia burguesa! Todos os dias, em cada lugar deste mundão de deus os ricos estão violentando as gentes. De todas as formas. Parece ser da natureza de quem domina permanecer na impunidade. Por isso eles criam exércitos, milícias, leis, justiça. Porque estas coisas existem para eles, para proteção deles. É por isso que os gritos de “justiça, justiça” dos que estão à margem, fora do centro de poder, se perdem no vazio. A justiça é uma invenção dos poderosos para sua própria proteção. Só a eles serve. Vez em quando se dá uma vitória a um pobre para que o povo tenha a ilusão de que é possível confiar no sistema. Bobagem! Lei não é sinônimo de justiça.

Dou um exemplo de uma comunidade indígena dos Andes. Lá, se alguém viola o código da comunidade, é punido exemplarmente. O coletivo não pode ser maculado pela ação individual. A comunidade depende da harmonia. Se um homem mata outro ele não vai preso. Ele é obrigado a sustentar por toda a vida a sua família e a do outro que ele matou, vivendo essa vergonha para sempre. Porque um homem morto é um braço a menos na construção do coletivo. São regras simples, de comunidades simples.

No mundo capitalista a justiça é individual. Um homem morto é só um homem morto num universo de milhares de braços sobrantes. Uma peça, que é trocada, sem dor. Não há uma quebra no equilíbrio, porque é cada um por si. Por isso às famílias agredidas só resta chorar.

É o que ocorre agora, em Florianópolis, neste triste caso. A família da garota violada buscará justiça. Achará? O que devolve uma inocência perdida? O que recupera toda essa dor de nunca mais poder confiar em alguém? Como se retoma o equilíbrio numa sociedade medida pelo individualismo e pelo consumo? Quem se importa com essa dor? Haverá uma indignação momentânea e o caso cairá no esquecimento, como sempre é numa sociedade eternamente a espera do próximo espetáculo? Num estado dominado por um monopólio de comunicação, qual será a repercussão disso tudo?

Este é o estado da coisa. E deve ser pensado no seu todo. Os finos salões da burguesia também são capazes das coisas mais sórdidas. E não é por problema mental não. Só que aos poderosos tudo parece permitido. Até quando? Até que as gentes mudem este panorama, construindo uma outra sociedade que não esta, dominada pelo dinheiro de alguns. Porque hoje, aqui, neste modo de organizar a vida, a burguesia, por exemplo, pede histericamente a redução da idade penal para conter a violência cada dia maior. Mas, não é para todos. Isso vale apenas para quando o “menor” não é seu.

19 comentários:

  1. Bah, Elaine, você foi certeira! No ponto.

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  2. Elaine, muito bem pontuada a relação da Justiça estar relacionada à classe social da elite: os ricos. Quem estuda a colonização brasileira, aprende sobre a origem da impunidade reinante até os dias de hoje. Não só uma reforma legislativa, mas uma reforma judiciária e uma do sistema de comunicação são necessárias para fortalecer um sistema democrático, que ainda enfrenta embates sócio-econômicos fortíssimos.
    Como os ricos se protegem na formulação das leis e nas suuas aplicações, os movimentos populares tem muito ainda o que fazer.
    Abraço!
    Claudia.

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  3. http://dialogico.blogspot.com/2010/07/quando-o-menor-nao-e-meu.html

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Cara Elaine,
    O mundo é um lugar escroto, injusto. Sempre foi assim e sempre será. Pra que se iludir? O máximo que ganhamos nos iludindo são bons artigos como este seu. Palavras são importantes, mas a realidade será essa merda até o fim dos tempos. O cada-um-por-si de todos os dias, o pobre fodido e humilhado, a hipocrisia reinante. Hipocrisia que fica evidente entre os "baluartes" do jornalismo local, uns e outros "que lutaram contra a ditadura" (que piada), e capricham na pretensa erudição vazia em textos babacas para proteger e puxar saco dos patrões e amigos poderosos. Bando de equivocados.

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  6. Elaine,
    Excelente texto. Adorei.
    Parabéns!
    Abraços,
    Daniela Felix

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  7. O primiero de uma tonelada que eu me sinto na obrigação de cumprimentar a autora! Parabéns.

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  8. Cara Elaine Tavares, excelente texto.
    Tomei a liberdade de reproduzir, citando sua autoria e fonte, no meu blog < http://gilnei-os.blogspot.com/2010/07/quando-o-menor-nao-e-meu-por-elaine.html >.
    É isso, valeu! Gilnei 

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  9. Isso menina!!! Como alguém já disse, você foi ao ponto.
    Aí, como aqui, a questão é a mesma, e seu artigo diz bem do que se trata.
    Parabéns, continue.

    Abraços,

    Eduardo (Salvador, BA)

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  10. Rafael, posso ate entender seu pessimismo, mas enquanto houver vida sobre a terra, ha esperanca. Nao podemos cruzar os bracos. Acredito no poder do "a uniao faz a forca". Pessoas de carater precisam se unir. Eh o que vou fazer agora que descobri o blog da Elaine. Elaine parabens! Que Deus a abencoe sempre!

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  11. Rafael, posso ate entender seu pessimismo, mas enquanto houver vida sobre a terra, ha esperanca. Nao podemos cruzar os bracos. Acredito no poder do "a uniao faz a forca". Pessoas de carater precisam se unir. Eh o que vou fazer agora que descobri o blog da Elaine. Elaine parabens! Que Deus a abencoe sempre!

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  12. E enquanto isso, nos salões da burguesia, a música continua sonoramente apropriada aos ouvidos deles.

    Ótimo texto, excelente argumentação!
    Parabéns!

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  13. Excelente texto mesmo, muitíssimo bem escrito. Estou divulgando e repassando a frente com a devida autoria e fonte.

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  14. http://muitasbocasnotrombone2.blogspot.com/2010/07/quando-o-menor-nao-e-meu-por-elaine.html

    muito bom o texto, republiquei no meu blog. Mora no campeche? MInha mãe mora! =) To vez em quando por aí. bjs

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  15. Elaine, recebi teu texto por e-mail, depois de ter sido publicado no blog Tijoladas. Como tinha o link do teu blog, resolvi fazer uma visita, para te parabenizar pelo texto. Acho que é exatamente aí o nó da questão. No fim, o limite é o capitalismo praticamente sem limites. E não se poderia esperar outra coisa da justiça e da mídia burguesa, como sempre.
    Adorei o blog, parabéns por ousar ser uma voz destoante!

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  16. Muito bom o seu artigo. Copiei e colei.

    Parece que muitos jornalistas não estão preocupados com a saúde física ou mental da vítima. Só querem falar dos "di menor", criticar o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e prender e arrebentar nossas crianças.
    A TV Record está em campanha pelo rebaixamento da idade penal... está na companhisa do Carlos Brickmann, um jornalista reacionário e um ferrenho defensor do Paulo Maluf (aquele do "estupra, mas não marta"). Não me admira que estejam usando o caso apenas para difundir seu ódio contra as crianças e pedir o rebaixamento da idade penal...
    O caso é grave... e também é grave a hipocrisia da RBS (afiliada da Rede Globo): ela sempre divulga este tipo de caso, inclusive fazendo entrevistas ilegais, expondo crianças, adolescentes e as vítimas. Mas, desta vez, manteve silêncio só porque o principal acusado é filho de um dos donos da RBS.
    Mas nós não devemos usar os adolescentes como "bodes expiatórios".
    Reitero: o caso é grave e devemos prestar total solidariedade à vítima. No caso das sanções aos agressores, não devemos nos isentar das nossas responsabilidades em cuidar, educar e monitorar suas atividades. As medidas pedagógicas sempre devem prevalecer. Não dá para abandonar as crianças e adolescentes e depois simplesmente pedir prisão quando eles cometem os delitos (por mais graves que sejam).

    São Paulo, 08/07/2010
    Mauro Alves da Silva
    Presidente do Grêmio SER Sudeste
    Promoção da Cidadania e Defesa do Consumidor.
    http://gremiosudeste.wordpress.com
    Autor da Cartilha: Conselho Tutelar – Como evitar os erros de A a Z.

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  17. Olá, Elaine, excelente texto! O Mauro me mandou por e-mail e inseri o link no EducaFórum. Vou passar sa acompanhar o seu blog. Um abraço!

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  18. Oi, Elaine
    Parabéns pelo texto. Gostaria só de de ressaltar duas coisas:
    - o uso nojento que a Record está fazendo deste caso para desmoralizar a concorrente Globo (da qual a RBS é afiliada). Creio que devem querer a apuração de todos os crimes e não só deste!
    - a família dos estupadrores também deve estar sofrendo. Eu, pelo menos, estaria. Não que isto diminua a importância do crime cometido, digo isto só para não perdermos a capacidade de sentir compaixão.

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  19. Excelente texto Elaine! Infelizmente há uma verdadeira criminalização da pobreza em nosso país.Mudamos o texto da lei;de código de menores passamos ao ECA, com a promessa de proteção integral à TODAS as nossas crianças e adolescentes.Porém o que vemos é a permanecia de práticas discriminatórias na execução da lei.Para os pobres,o vexame,a humilhação...para os ricos a superproteção.

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