Conversa no Seminário sobre Rádios Comunitárias Comunicação Popular e Libertadora (09.12.2003)
“Somos todos míopes,
Exceto para dentro.
Só o sonho
Vê com o olhar.”
Fernando Pessoa.
Eu vou falar de carnalidade, porque assim como Nietzsche, um adorável filósofo do século 19, eu também acredito que o corpo é a grande razão. Então eu vou menos falar de dados e números e mais de vivências. Fernando Pessoa, um poeta português, dizia que “Compreender é esquecer de amar”, daí essa minha quase neurose com a vivência carnal, com os sentidos, o toque, a presença física. Com o amor. Esse amor que vem primeiro do que a compreensão. . Assim, vou falar de uma comunicação popular que tenho vivido ao longo de mais de 20 anos de encontros fraternos, ternos e conturbados com as gentes das comunidades empobrecidas, longe da abundância, dos gabinetes. Nas estradas que, justamente por serem secundárias, guardam buracos escuros, sujeira, solidão, sangue, dor, mas que também guardam belezas jamais vistas, segredos vitais para a felicidade, a alegria, a utopia.
Daí que fazer comunicação popular, longe das câmeras das grandes redes, fora dos grandes jornais é um desafio e uma aventura que pode despertar os mais escondidos desejos de transformação e modificar para sempre a vida de um ser humano. Não que eu acredite que a comunicação feita nas margens pode, por si só, transformar o mundo, mas o fato de se levar a informação aonde ela custa a chegar - ou não chega nunca - já é uma pequena revolução. Às vezes, para uma mulher que tem um filho pequeno, saber que o dia 20 é dia de vacina pode fazer a diferença entre a vida e a morte.
Dentro desse contexto onde a comunicação popular se encontra com a rádio comunitária? Bom, penso que ou se encontra ou a rádio não é comunitária. E por quê? Vou dar corpo, então, ao conceito de comunidade. Segundo o dicionário: qualidade do que é comum, sociedade, lugar onde residem indivíduos agremiados, comuna. Se é assim, então toda imprensa ou o jornalismo é comunitário, afinal um jornal é lido por centenas de sociedades, de indivíduos agremiados. Assim também a TV e o rádio são vistos e ouvidos.
Mas, a nossa história construiu um outro significado para essa palavra, que extrapola o verbete. É uma expressão que se origina das CEBs, trabalho de organização e evangelização popular iniciado pela igreja no período do regime militar. A partir da opção preferencial pelos pobres, se inicia um trabalho em que fé e política se dão as mãos num projeto emancipador. Nele, os povos oprimidos nas cidades e nos campos se reconhecem como pessoas em luta, juntas, sujeitos de sua história. Assim, comunidade passa a ter novo significado, quer dizer “lugar onde as pessoas conspiram”, como diria Rubem Alves. Co-aspiram, respiram juntas na luta por justiça, por distribuição de riqueza, vida plena.
Comunidade então, é o espaço organizado na vontade imensa de transformar a realidade de miséria, opressão, desigualdade e injustiça. Viver em comunidade é apostar que é possível viver no encontro, na partilha, ao contrário do que nos remete a chamada globalização ou a pós-modernidade, na qual cada um vive no seu canto, em solidão, buscando soluções individuais. Neste sentido, o empobrecido é o que mais vive em comunidade, porque ele está no limite da condição humana e não pode viver sozinho. Ele precisa do outro para se apoiar e se construir. Na comunidade, o aparente caos é unicamente superfície. Ali a solidariedade se faz concreta em ações cotidianas como emprestar uma xícara de arroz, fazer fiado na venda, providenciar um enterro ou cuidar do filho da vizinha que sai para trabalhar.
Então, é nesse locus que nascem as rádios comunitárias e, portanto devem estar casadas com o desejo de mudança dessa gente. Qualquer desconexão com esse projeto faz dela qualquer coisa, menos uma rádio comunitária. Alguém que se arvore no direito de colocar um transmissor para funcionar num lugar assim tem que estar firmemente ligado aos mais profundos anseios de libertação do povo do lugar. . Nesse sentido, qual seria a corporalidade de uma rádio comunitária dentro de um contexto como esse? As comunidades empobrecidas são sufocadas pelas rádios comerciais que atuam unicamente em função do mercado, e raras vezes em função de interesse público, as comunidades não se vêem reconhecidas ou retratadas nesses veículos. Quando aparecem tem um aspecto ritual. Não são sujeitos, não interferem na produção.
As rádios comunitárias surgem então como resistência a esse modelo mercadológico das rádios comerciais. Num primeiro momento esse tipo de rádio surge com uma programação alternativa, músicas não comerciais, grupos políticos, movimentos culturais e outros. . Mas, pouco a pouco, vão sendo descobertas como uma alternativa de mobilização popular. Então, passam a crescer dentro das comunidades para dizer a palavra dessas comunidades, para contar de seus problemas, de suas lutas e das soluções que vão encontrando para suas mazelas. Nascem para democratizar a informação, para fugir do padrão “oficial” das notícias e dos interesses produzidos e incutidos pelas rádios comerciais.
A rádio comunitária então tem que retratar os interesses da comunidade onde está inserida. Ela tem que ser feita por pessoas da comunidade, para a comunidade. As notícias, os programas, devem ser produzidos por gente da comunidade. Na produção de notícias devem ser consultadas e ouvidas pessoas da comunidade, sempre em contraponto com as informações oficiais que forem necessárias para o esclarecimento de um problema. Por exemplo, se noticiamos a falta de água em uma determinada comunidade devemos ouvir as pessoas que estão sofrendo os problemas, saber como estão se organizando para solucioná-lo e questionar a autoridade responsável para ouvir o que está sendo feito.
Todo o processo de criação e produção da rádio deve ser conduzido por um grupo responsável, nascido ali, na comunidade. Servindo como educação e pedagogia popular, atraindo pessoas que curtam a idéia de fazer rádio pois tudo feito com amor e paixão sai sempre melhor.. Mas é fundamental que se aposte no novo, na criação de novas fórmulas. É muito importante que, na programação, além dos tradicionais programas musicais, haja um investimento na informação e no jornalismo. As pessoas têm necessidade de saber o que está acontecendo e numa rádio comunitária, o olhar sobre os fatos é o olhar de quem está inserido na comunidade com coisas que digam respeito àquelas pessoas, que tenham ligação com sua vida real.
É necessário produzir notícias sobre a cidade, o país e o mundo, sempre com um ponto de vista que não é o dos grandes veículos. Daí a necessidade de que os textos sejam produzidos pelo corpo de redação da própria rádio e não copiados de jornais e revistas que, geralmente, reproduzem o ponto de vista dos poderosos, do oficial. . É claro que a formação desse grupo de redatores vai necessitar de mais tempo e mais trabalho, mas é absolutamente necessária. O fato de serem moradores da comunidade vai permitir que a linguagem utilizada seja acessível e familiar, provocando maior proximidade e identificação.
Dito isso, da corporalidade da rádio, é preciso agora falar da comunicação popular e dos pressupostos que a orientam. E aí, é claro, dentro do meu ponto de vista. Ao longo desses anos todos construí um conceito que chamo de jornalismo libertador. Não é nada novo. É pensado a partir da filosofia de libertação, do filósofo Enrique Dussel. Eu vou explicar.... Comunicar, informar, formar, trans-formar, tudo isso está casado, no jornalismo que eu pratico. Dentro dos pressupostos dessa teoria, o trabalho que se faz nas comunidades empobrecidas é ex-cêntrico. No sentido de que não está no centro, anda à margem, beira o asfalto, quer provocar a discussão sobre um outro mundo, diferente desse que aí está. O trabalho que eu faço não lida com os empobrecidos como os excluídos do sistema, porque, na verdade, não o são. Sua condição é a prova viva da inclusão, não como sujeitos, é claro, mas como carne moída para alimentar os cães, engrenagens necessárias.
Assim, um jornalismo que se pretenda libertador e transformador precisa ter um compromisso amoroso com uma outra idéia de sociedade, com divisão da riqueza, com sujeitos cientes de sua força e beleza. O jornalismo libertador trabalha então com o suposto da alteridade, na medida em que é capaz de pensar o outro como outro, diferente, mas real. Trabalha com a idéia de que é preciso contar as histórias dos oprimidos, dos deserdados, dos desvalidos, das vítimas, que é preciso narrar o mundo do ponto de vista da realidade desse outro, que está fora do centro. . Tem, portanto, um compromisso ético com a corporalidade, porque, segundo Dussel, o critério universal em que se funda a ética é a vida mesma. Para ele, viver, simplesmente viver, nesse mundo em que um assassina o outro, passa a ser uma exigência ética. E a libertação do corpo, da opressão e da miséria, é o único pressuposto ético possível.
Mas como praticar esse jornalismo libertador na rádio comunitária. É simples! Basta que estejamos preparados para olhar o mundo com os olhos da alteridade. Já sabemos que carregamos conosco uma “mala”, repleta de pré-supostos e pensares sobre o mundo. Por isso, o que fará de nós um jornalista libertador será justamente a capacidade de realizar este encontro: o rosto de um ser, diante do rosto de outro ser, livres. Saber ouvir o outro, saber encarar o outro, apesar de todas as diferenças.
Vale lembrar então, alguns dos elementos que vêm suleando (ver a partir do sul) o trabalho que tenho desenvolvido há anos, no âmbito da sala de aula e nas comunidades, em comunhão com dezenas de alunos e gente do povo. O primeiro é olhar o mundo a partir do ponto de vista local. Analisar e refletir toda a realidade que cerca a comunidade, desvelar seu contexto, saber como a comunidade nasceu, quais são suas referências, qual o papel que representa no todo municipal, quais sonhos e desejos embalam seus moradores, quais os nexos que formam com o estadual, com o nacional, com o continente e o mundo, enfim, um retrato do visível e do invisível..
O segundo elemento da teoria é o ser. No jornalismo libertador, a fonte não é objeto, é sujeito. Deixa de ser chamada de fonte, conceito que a coisifica e passa a ser tratada como ser, real, com nome e sobrenome.
Na proposta do jornalismo libertador, aquele que repassa informação, que conta uma história, que entrega sua dor, seus sonhos, sua vida, nas mãos de um repórter, precisa ser visto na sua inteireza. Precisa ser tratado como sujeito, como com-panheiro, partilhador de caminhada. E aí se estabelece uma outra relação, amorosa. Mas não no sentido do amor sentimento, que se esgota. E sim, como ensina Dussel , no caminho do amor compromisso, na ética de libertação.
O terceiro elemento é o próprio jornalista/comunicador que precisa se re-fazer. Trabalhar na perspectiva da libertação supõe uma pessoa diferente, capaz de conspirar da beleza que é se comprometer, se envolver, partilhar. Isso não significa perder de vista a objetividade dos fenômenos que são narrados, mas, conforme Genro Filho (1987), também não impede que se tenha claro que qualquer fato mediado pelo olho humano está carregado de subjetividade. É mais ou menos como estar sempre segurando as rédeas do yng e yang, da sombra e luz, da objetividade e subjetividade, trabalhando no equilíbrio necessário. Jornalista libertador tem posição, atitude, toma o partido da vítima, mas não deixa de narrar a vida contextualizando e interpretando, desvelando a beleza e a dor, a luz e a sombra, dando ao leitor o direito de saber quem ele é e o que defende. E mais, dando ao leitor também a condição de sujeito. Aquele que ouve sobre o fato narrado a partir de vários pontos de vista e, assim, pode tomar posição, interpretar e estabelecer nexos.
O mundo dito pós-moderno nos chama a competitividade, ao individualismo exacerbado, ao vale-tudo, daí, pensar em como fazer jornalismo dentro dessa realidade implica necessariamente pensar o ser que o faz. Já basta de jornalistas apáticos, amebas sem posição diante do mundo. O jornalista libertador precisa re-inventar o jornalismo no contexto de seu tempo. Numa época de celulares, emails, internet, computers, é mais do que necessário humanizar as redações, tirar o pé da salinha quente e cair no mundo real. Estar na vida, vendo, narrando e interpretando é a sua tarefa.
O jornalismo libertador caminha na vereda da ética. Ou seja, não segue as normas morais que o sistema opressor indica como boas, mas sim deixar-se guiar pelas necessidades do oprimido, da vítima, do que está fora do centro, do que luta contra a dominação. Loucura? Perda de senso? Pode ser. Num mundo como o que vivemos hoje, em que um precisa morrer para que o outro viva, já não dá mais para se pensar em como ser bom dentro do sistema. Aquele que opta pelo caminho da libertação não pensa em melhorar o sistema opressor. Pensa em como sair dele, criar uma nova ordem.. A comunicação é direito humano, o jornalismo é serviço público e, assim, é bom que seja dito que só pode existir dois tipos de jornalismo.
O que serve a uma minoria dominante (moral de dominação) e o que serve aos oprimidos, maioria da população (ética de libertação). E, quando falamos em servir a maioria, estamos falando em cons-piração (respirar juntos) com as comunidades oprimidas e dominadas, em estar junto com a população nos seus mais secretos sonhos de amor. Esse é o pressuposto do jornalismo libertador que se pratica em comunidades empobrecidas, aquele que cons-pira, que caminha junto, que se torna instrumento de transcendência, que dá visibilidade ao oprimido, não como o marginal (bandido), mas como o pobre, real e capaz de superar a sua condição.
É bom lembrar que ocupar-se dos excluídos, caminhar amorosamente com eles, não é ter pena ou olhá-los em condolência, mas sim, devolver-lhes, no mundo, o lugar que lhes é próprio e do qual foram expulsos por uma ordem injusta e excludente. O jornalismo libertador caminha com essa gente recordando-lhes sempre de sua dignidade inviolável. O jornalismo libertador busca a beleza no caos, não na tentativa de “dourar a pílula”, mas para provar que o humano é por si mesmo belo e que a feiura imposta pela dor e pela miséria não pode ser vista como normalidade. Assim, na narração das vidas que vivem à margem, o jornalista libertador desvela, com pertinácia e persistência, os mecanismos e interesses que as jogam para fora do mundo como se fossem dejetos, lixo, e, com elas, descobre novos modelos de convivência.
E na prática, como isso se dá? Não há fórmula pronta, receita de bolo, embora seja certo que há esses elementos suleadores (pensando a partir do sul, sempre) que podem ajudar na reflexão e no fazer. O jornalismo libertador precisa revelar/desvelar aos que vivem à margem do sistema, aos oprimidos, a sua realidade. Não o esteriótipo, como faz ratinho e cia, mas sim o ser na sua totalidade. O homem e a mulher comuns, na luta diária pela sobrevivência, retratando e problematizando as formas de organização que encontram para viver no mundo.
Se escolhermos fazer comunicação, jornalismo, nas comunidades é preciso respeito. Não dá para chegar num determinado lugar feito “a grande esperança branca”, achando que nós, por sermos jornalistas e termos estudado numa faculdade, somos os que sabemos tudo. Há que ter humildade para saber que aquele povo ali, numa determinada comunidade, sabe muito mais de si do que qualquer um. O jornalista é só um mediador, àquele que vai oferecer sua técnica, seu saber, a serviço de uma causa maior.
A minha intenção, já disse não é apresentar “receitas de bolo” mas, solidária e amorosamente, compartilhar o segredo das palavras que andam. Acredito piamente que o direito à informação acaba sendo primordial e necessário se quisermos efetivamente mudar o mundo onde vivemos. E, considerando que os grandes meios de comunicação não passam à maioria da população as informações necessárias para fazer evoluir o germe da mudança, vejo como absolutamente necessária a comunicação alternativa, popular, feita nos caminhos secundário e marginais. . Não é só com isso que vamos mudar o mundo. Mas é preciso caminhar nessa direção e penso que os nichos populares podem ser a alavanca para a transformação. Não sonho com a diminuição da pobreza, com menos injustiça nem com menos sofrimento. Sou modesta, como El Che, o comandante. Quero o impossível. Sonho com o fim da pobreza, com a justiça plena, com a distribuição de renda e nenhum sofrimento e é na direção desse ainda-não que enfuno minhas velas.
São utopias sim, mas essas que fazem a gente caminhar. O jornalismo e os jornalistas podem ajudar nessa caminhada, podem ser a ponte para o tempo novo, para uma nova humanidade que ultrapasse o humano vil, sórdido, injusto, e que acorde novas auroras, caminhando efetivamente para o grande meio-dia.O que é a notícia popular. Vivemos num planeta no qual quase tudo parece ter se globalizado. A Internet liga mundos, a sociedade é apresentada como uma rede de nós eletrônicos, de pessoas conectadas por computadores. Gente que compra via Net, que ama via Net, que trabalha via Net. Os teóricos afirmam que não há escapatória, todos estamos enredados neste mundo virtual e a vida parece impossível sem a presença dos computadores. Vivemos a sociedade dos fluxos, da informação. Mas será mesmo?
Bom, não dá para negar que uma camada muito expressiva da comunidade humana está metida na rede informacional, tecnológica, virtual. Mas este é um planeta grandioso, de quase sete bilhões de habitantes, no qual uma grande parte, talvez a maioria, se vê excluída de todas as “belezas e delícias” da sociedade em rede. Basta abrirmos a janela de nossas casas ou de nossos apartamentos/túmulos”, e pronto: nos deparamos com a realidade, que é bem menos cor-de-rosa do que a vida limpa que se vive via Internet. E esse mundo que se vê da janela, o mundo dos espaços da vida cotidiana real, não está na rede. Nem retratado, nem ligado..
Há um contingente gigantesco de pessoas que sequer têm acesso ao jornal da cidade onde vivem. Imaginem os sertanejos perdidos nos sertões do Brasil, os moradores das grandes favelas, os que estão jogados nas vias marginais, os acampados nas beiras de estradas, os perdidos da história? Há um povo imenso precisando conhecer as coisas do mundo para, quem sabe, mudá-lo. Informações que eles não vão acessar na net. Eles precisam do mundo real. Essa é a notícia que pode fazer a diferença.
Esse é o segredo do que chamo de jornalismo libertador. Numa determinada comunidade, que vê o mundo a partir das antenas da Globo, é preciso levar a informação que interessa a ela e que não sai na TV nem no jornal. E mais, é preciso fazer a ligação daquilo que aconteceu no mundo, no país, na cidade, com o seu dia-a-dia, para que as pessoas possam enfim, compreender a notícia que apareceu no jornal da noite. . A notícia popular na rádio comunitária tem que dar conta do mundo da comunidade e interpretar o mundo a sua volta ligando-o com o seu cotidiano. A notícia popular precisa falar das promoções do boteco da esquina, do bazar de caridade promovido pela igreja, dos negócios criados na comunidade e que estão prosperando. A notícia popular precisa falar das pessoas da comunidade, desvendar seus perfis, seus trabalhos comunitários, precisa passar a agenda da Associação de Moradores, dias de reuniões, pautas de discussão, as lutas que trava com o poder público.
A tarefa do jornalismo que se pratica no meio popular/comunitário é inserir as pessoas no universo das notícias que elas ouvem e vêem, muitas vezes sem entender o real significado. É decodificar os segredos, a linguagem empolada e difícil dos jornais, revistas e até da TV. Fazer comunicação popular é falar uma linguagem “entendível”, clara, sem enrolações. É trazer para a comunidade as informações mínimas sobre o que anda acontecendo naquele espaço em que vive, e suas relações com a cidade e o mundo.
Para encerrar quero contar uma história. No antigo egito para que um morto pudesse entrar na glória de Osíris precisava passar por uma ante-sala. Nela, uma deusa lhe arrancava o coração e o colocava numa balança, na qual um dos pratos continha uma pena de ave. A condição para entrar no céu era de que o coração do morto ficasse em equilíbrio com a pena. Assim deve ser um comunicador popular. De coração leve como uma pluma, capaz de perceber que a vida humana é frágil como um cristal e que tudo o que temos de fazer é cuidar dela. Nós, comunicadores, com a palavra, com a informação vital, e principalmente com o absurdo e louco desejo de criar uma outra sociedade, de partilha e vida plena. O rádio é um canal mágico e poderoso. Nenhum homem, nenhuma mulher tem o direito de usar essa feitiçaria se não for para a realização da nossa beleza. Pensem nisso quando ligarem o transmissor.
“Somos todos míopes,
Exceto para dentro.
Só o sonho
Vê com o olhar.”
Fernando Pessoa.
Eu vou falar de carnalidade, porque assim como Nietzsche, um adorável filósofo do século 19, eu também acredito que o corpo é a grande razão. Então eu vou menos falar de dados e números e mais de vivências. Fernando Pessoa, um poeta português, dizia que “Compreender é esquecer de amar”, daí essa minha quase neurose com a vivência carnal, com os sentidos, o toque, a presença física. Com o amor. Esse amor que vem primeiro do que a compreensão. . Assim, vou falar de uma comunicação popular que tenho vivido ao longo de mais de 20 anos de encontros fraternos, ternos e conturbados com as gentes das comunidades empobrecidas, longe da abundância, dos gabinetes. Nas estradas que, justamente por serem secundárias, guardam buracos escuros, sujeira, solidão, sangue, dor, mas que também guardam belezas jamais vistas, segredos vitais para a felicidade, a alegria, a utopia.
Daí que fazer comunicação popular, longe das câmeras das grandes redes, fora dos grandes jornais é um desafio e uma aventura que pode despertar os mais escondidos desejos de transformação e modificar para sempre a vida de um ser humano. Não que eu acredite que a comunicação feita nas margens pode, por si só, transformar o mundo, mas o fato de se levar a informação aonde ela custa a chegar - ou não chega nunca - já é uma pequena revolução. Às vezes, para uma mulher que tem um filho pequeno, saber que o dia 20 é dia de vacina pode fazer a diferença entre a vida e a morte.
Dentro desse contexto onde a comunicação popular se encontra com a rádio comunitária? Bom, penso que ou se encontra ou a rádio não é comunitária. E por quê? Vou dar corpo, então, ao conceito de comunidade. Segundo o dicionário: qualidade do que é comum, sociedade, lugar onde residem indivíduos agremiados, comuna. Se é assim, então toda imprensa ou o jornalismo é comunitário, afinal um jornal é lido por centenas de sociedades, de indivíduos agremiados. Assim também a TV e o rádio são vistos e ouvidos.
Mas, a nossa história construiu um outro significado para essa palavra, que extrapola o verbete. É uma expressão que se origina das CEBs, trabalho de organização e evangelização popular iniciado pela igreja no período do regime militar. A partir da opção preferencial pelos pobres, se inicia um trabalho em que fé e política se dão as mãos num projeto emancipador. Nele, os povos oprimidos nas cidades e nos campos se reconhecem como pessoas em luta, juntas, sujeitos de sua história. Assim, comunidade passa a ter novo significado, quer dizer “lugar onde as pessoas conspiram”, como diria Rubem Alves. Co-aspiram, respiram juntas na luta por justiça, por distribuição de riqueza, vida plena.
Comunidade então, é o espaço organizado na vontade imensa de transformar a realidade de miséria, opressão, desigualdade e injustiça. Viver em comunidade é apostar que é possível viver no encontro, na partilha, ao contrário do que nos remete a chamada globalização ou a pós-modernidade, na qual cada um vive no seu canto, em solidão, buscando soluções individuais. Neste sentido, o empobrecido é o que mais vive em comunidade, porque ele está no limite da condição humana e não pode viver sozinho. Ele precisa do outro para se apoiar e se construir. Na comunidade, o aparente caos é unicamente superfície. Ali a solidariedade se faz concreta em ações cotidianas como emprestar uma xícara de arroz, fazer fiado na venda, providenciar um enterro ou cuidar do filho da vizinha que sai para trabalhar.
Então, é nesse locus que nascem as rádios comunitárias e, portanto devem estar casadas com o desejo de mudança dessa gente. Qualquer desconexão com esse projeto faz dela qualquer coisa, menos uma rádio comunitária. Alguém que se arvore no direito de colocar um transmissor para funcionar num lugar assim tem que estar firmemente ligado aos mais profundos anseios de libertação do povo do lugar. . Nesse sentido, qual seria a corporalidade de uma rádio comunitária dentro de um contexto como esse? As comunidades empobrecidas são sufocadas pelas rádios comerciais que atuam unicamente em função do mercado, e raras vezes em função de interesse público, as comunidades não se vêem reconhecidas ou retratadas nesses veículos. Quando aparecem tem um aspecto ritual. Não são sujeitos, não interferem na produção.
As rádios comunitárias surgem então como resistência a esse modelo mercadológico das rádios comerciais. Num primeiro momento esse tipo de rádio surge com uma programação alternativa, músicas não comerciais, grupos políticos, movimentos culturais e outros. . Mas, pouco a pouco, vão sendo descobertas como uma alternativa de mobilização popular. Então, passam a crescer dentro das comunidades para dizer a palavra dessas comunidades, para contar de seus problemas, de suas lutas e das soluções que vão encontrando para suas mazelas. Nascem para democratizar a informação, para fugir do padrão “oficial” das notícias e dos interesses produzidos e incutidos pelas rádios comerciais.
A rádio comunitária então tem que retratar os interesses da comunidade onde está inserida. Ela tem que ser feita por pessoas da comunidade, para a comunidade. As notícias, os programas, devem ser produzidos por gente da comunidade. Na produção de notícias devem ser consultadas e ouvidas pessoas da comunidade, sempre em contraponto com as informações oficiais que forem necessárias para o esclarecimento de um problema. Por exemplo, se noticiamos a falta de água em uma determinada comunidade devemos ouvir as pessoas que estão sofrendo os problemas, saber como estão se organizando para solucioná-lo e questionar a autoridade responsável para ouvir o que está sendo feito.
Todo o processo de criação e produção da rádio deve ser conduzido por um grupo responsável, nascido ali, na comunidade. Servindo como educação e pedagogia popular, atraindo pessoas que curtam a idéia de fazer rádio pois tudo feito com amor e paixão sai sempre melhor.. Mas é fundamental que se aposte no novo, na criação de novas fórmulas. É muito importante que, na programação, além dos tradicionais programas musicais, haja um investimento na informação e no jornalismo. As pessoas têm necessidade de saber o que está acontecendo e numa rádio comunitária, o olhar sobre os fatos é o olhar de quem está inserido na comunidade com coisas que digam respeito àquelas pessoas, que tenham ligação com sua vida real.
É necessário produzir notícias sobre a cidade, o país e o mundo, sempre com um ponto de vista que não é o dos grandes veículos. Daí a necessidade de que os textos sejam produzidos pelo corpo de redação da própria rádio e não copiados de jornais e revistas que, geralmente, reproduzem o ponto de vista dos poderosos, do oficial. . É claro que a formação desse grupo de redatores vai necessitar de mais tempo e mais trabalho, mas é absolutamente necessária. O fato de serem moradores da comunidade vai permitir que a linguagem utilizada seja acessível e familiar, provocando maior proximidade e identificação.
Dito isso, da corporalidade da rádio, é preciso agora falar da comunicação popular e dos pressupostos que a orientam. E aí, é claro, dentro do meu ponto de vista. Ao longo desses anos todos construí um conceito que chamo de jornalismo libertador. Não é nada novo. É pensado a partir da filosofia de libertação, do filósofo Enrique Dussel. Eu vou explicar.... Comunicar, informar, formar, trans-formar, tudo isso está casado, no jornalismo que eu pratico. Dentro dos pressupostos dessa teoria, o trabalho que se faz nas comunidades empobrecidas é ex-cêntrico. No sentido de que não está no centro, anda à margem, beira o asfalto, quer provocar a discussão sobre um outro mundo, diferente desse que aí está. O trabalho que eu faço não lida com os empobrecidos como os excluídos do sistema, porque, na verdade, não o são. Sua condição é a prova viva da inclusão, não como sujeitos, é claro, mas como carne moída para alimentar os cães, engrenagens necessárias.
Assim, um jornalismo que se pretenda libertador e transformador precisa ter um compromisso amoroso com uma outra idéia de sociedade, com divisão da riqueza, com sujeitos cientes de sua força e beleza. O jornalismo libertador trabalha então com o suposto da alteridade, na medida em que é capaz de pensar o outro como outro, diferente, mas real. Trabalha com a idéia de que é preciso contar as histórias dos oprimidos, dos deserdados, dos desvalidos, das vítimas, que é preciso narrar o mundo do ponto de vista da realidade desse outro, que está fora do centro. . Tem, portanto, um compromisso ético com a corporalidade, porque, segundo Dussel, o critério universal em que se funda a ética é a vida mesma. Para ele, viver, simplesmente viver, nesse mundo em que um assassina o outro, passa a ser uma exigência ética. E a libertação do corpo, da opressão e da miséria, é o único pressuposto ético possível.
Mas como praticar esse jornalismo libertador na rádio comunitária. É simples! Basta que estejamos preparados para olhar o mundo com os olhos da alteridade. Já sabemos que carregamos conosco uma “mala”, repleta de pré-supostos e pensares sobre o mundo. Por isso, o que fará de nós um jornalista libertador será justamente a capacidade de realizar este encontro: o rosto de um ser, diante do rosto de outro ser, livres. Saber ouvir o outro, saber encarar o outro, apesar de todas as diferenças.
Vale lembrar então, alguns dos elementos que vêm suleando (ver a partir do sul) o trabalho que tenho desenvolvido há anos, no âmbito da sala de aula e nas comunidades, em comunhão com dezenas de alunos e gente do povo. O primeiro é olhar o mundo a partir do ponto de vista local. Analisar e refletir toda a realidade que cerca a comunidade, desvelar seu contexto, saber como a comunidade nasceu, quais são suas referências, qual o papel que representa no todo municipal, quais sonhos e desejos embalam seus moradores, quais os nexos que formam com o estadual, com o nacional, com o continente e o mundo, enfim, um retrato do visível e do invisível..
O segundo elemento da teoria é o ser. No jornalismo libertador, a fonte não é objeto, é sujeito. Deixa de ser chamada de fonte, conceito que a coisifica e passa a ser tratada como ser, real, com nome e sobrenome.
Na proposta do jornalismo libertador, aquele que repassa informação, que conta uma história, que entrega sua dor, seus sonhos, sua vida, nas mãos de um repórter, precisa ser visto na sua inteireza. Precisa ser tratado como sujeito, como com-panheiro, partilhador de caminhada. E aí se estabelece uma outra relação, amorosa. Mas não no sentido do amor sentimento, que se esgota. E sim, como ensina Dussel , no caminho do amor compromisso, na ética de libertação.
O terceiro elemento é o próprio jornalista/comunicador que precisa se re-fazer. Trabalhar na perspectiva da libertação supõe uma pessoa diferente, capaz de conspirar da beleza que é se comprometer, se envolver, partilhar. Isso não significa perder de vista a objetividade dos fenômenos que são narrados, mas, conforme Genro Filho (1987), também não impede que se tenha claro que qualquer fato mediado pelo olho humano está carregado de subjetividade. É mais ou menos como estar sempre segurando as rédeas do yng e yang, da sombra e luz, da objetividade e subjetividade, trabalhando no equilíbrio necessário. Jornalista libertador tem posição, atitude, toma o partido da vítima, mas não deixa de narrar a vida contextualizando e interpretando, desvelando a beleza e a dor, a luz e a sombra, dando ao leitor o direito de saber quem ele é e o que defende. E mais, dando ao leitor também a condição de sujeito. Aquele que ouve sobre o fato narrado a partir de vários pontos de vista e, assim, pode tomar posição, interpretar e estabelecer nexos.
O mundo dito pós-moderno nos chama a competitividade, ao individualismo exacerbado, ao vale-tudo, daí, pensar em como fazer jornalismo dentro dessa realidade implica necessariamente pensar o ser que o faz. Já basta de jornalistas apáticos, amebas sem posição diante do mundo. O jornalista libertador precisa re-inventar o jornalismo no contexto de seu tempo. Numa época de celulares, emails, internet, computers, é mais do que necessário humanizar as redações, tirar o pé da salinha quente e cair no mundo real. Estar na vida, vendo, narrando e interpretando é a sua tarefa.
O jornalismo libertador caminha na vereda da ética. Ou seja, não segue as normas morais que o sistema opressor indica como boas, mas sim deixar-se guiar pelas necessidades do oprimido, da vítima, do que está fora do centro, do que luta contra a dominação. Loucura? Perda de senso? Pode ser. Num mundo como o que vivemos hoje, em que um precisa morrer para que o outro viva, já não dá mais para se pensar em como ser bom dentro do sistema. Aquele que opta pelo caminho da libertação não pensa em melhorar o sistema opressor. Pensa em como sair dele, criar uma nova ordem.. A comunicação é direito humano, o jornalismo é serviço público e, assim, é bom que seja dito que só pode existir dois tipos de jornalismo.
O que serve a uma minoria dominante (moral de dominação) e o que serve aos oprimidos, maioria da população (ética de libertação). E, quando falamos em servir a maioria, estamos falando em cons-piração (respirar juntos) com as comunidades oprimidas e dominadas, em estar junto com a população nos seus mais secretos sonhos de amor. Esse é o pressuposto do jornalismo libertador que se pratica em comunidades empobrecidas, aquele que cons-pira, que caminha junto, que se torna instrumento de transcendência, que dá visibilidade ao oprimido, não como o marginal (bandido), mas como o pobre, real e capaz de superar a sua condição.
É bom lembrar que ocupar-se dos excluídos, caminhar amorosamente com eles, não é ter pena ou olhá-los em condolência, mas sim, devolver-lhes, no mundo, o lugar que lhes é próprio e do qual foram expulsos por uma ordem injusta e excludente. O jornalismo libertador caminha com essa gente recordando-lhes sempre de sua dignidade inviolável. O jornalismo libertador busca a beleza no caos, não na tentativa de “dourar a pílula”, mas para provar que o humano é por si mesmo belo e que a feiura imposta pela dor e pela miséria não pode ser vista como normalidade. Assim, na narração das vidas que vivem à margem, o jornalista libertador desvela, com pertinácia e persistência, os mecanismos e interesses que as jogam para fora do mundo como se fossem dejetos, lixo, e, com elas, descobre novos modelos de convivência.
E na prática, como isso se dá? Não há fórmula pronta, receita de bolo, embora seja certo que há esses elementos suleadores (pensando a partir do sul, sempre) que podem ajudar na reflexão e no fazer. O jornalismo libertador precisa revelar/desvelar aos que vivem à margem do sistema, aos oprimidos, a sua realidade. Não o esteriótipo, como faz ratinho e cia, mas sim o ser na sua totalidade. O homem e a mulher comuns, na luta diária pela sobrevivência, retratando e problematizando as formas de organização que encontram para viver no mundo.
Se escolhermos fazer comunicação, jornalismo, nas comunidades é preciso respeito. Não dá para chegar num determinado lugar feito “a grande esperança branca”, achando que nós, por sermos jornalistas e termos estudado numa faculdade, somos os que sabemos tudo. Há que ter humildade para saber que aquele povo ali, numa determinada comunidade, sabe muito mais de si do que qualquer um. O jornalista é só um mediador, àquele que vai oferecer sua técnica, seu saber, a serviço de uma causa maior.
A minha intenção, já disse não é apresentar “receitas de bolo” mas, solidária e amorosamente, compartilhar o segredo das palavras que andam. Acredito piamente que o direito à informação acaba sendo primordial e necessário se quisermos efetivamente mudar o mundo onde vivemos. E, considerando que os grandes meios de comunicação não passam à maioria da população as informações necessárias para fazer evoluir o germe da mudança, vejo como absolutamente necessária a comunicação alternativa, popular, feita nos caminhos secundário e marginais. . Não é só com isso que vamos mudar o mundo. Mas é preciso caminhar nessa direção e penso que os nichos populares podem ser a alavanca para a transformação. Não sonho com a diminuição da pobreza, com menos injustiça nem com menos sofrimento. Sou modesta, como El Che, o comandante. Quero o impossível. Sonho com o fim da pobreza, com a justiça plena, com a distribuição de renda e nenhum sofrimento e é na direção desse ainda-não que enfuno minhas velas.
São utopias sim, mas essas que fazem a gente caminhar. O jornalismo e os jornalistas podem ajudar nessa caminhada, podem ser a ponte para o tempo novo, para uma nova humanidade que ultrapasse o humano vil, sórdido, injusto, e que acorde novas auroras, caminhando efetivamente para o grande meio-dia.O que é a notícia popular. Vivemos num planeta no qual quase tudo parece ter se globalizado. A Internet liga mundos, a sociedade é apresentada como uma rede de nós eletrônicos, de pessoas conectadas por computadores. Gente que compra via Net, que ama via Net, que trabalha via Net. Os teóricos afirmam que não há escapatória, todos estamos enredados neste mundo virtual e a vida parece impossível sem a presença dos computadores. Vivemos a sociedade dos fluxos, da informação. Mas será mesmo?
Bom, não dá para negar que uma camada muito expressiva da comunidade humana está metida na rede informacional, tecnológica, virtual. Mas este é um planeta grandioso, de quase sete bilhões de habitantes, no qual uma grande parte, talvez a maioria, se vê excluída de todas as “belezas e delícias” da sociedade em rede. Basta abrirmos a janela de nossas casas ou de nossos apartamentos/túmulos”, e pronto: nos deparamos com a realidade, que é bem menos cor-de-rosa do que a vida limpa que se vive via Internet. E esse mundo que se vê da janela, o mundo dos espaços da vida cotidiana real, não está na rede. Nem retratado, nem ligado..
Há um contingente gigantesco de pessoas que sequer têm acesso ao jornal da cidade onde vivem. Imaginem os sertanejos perdidos nos sertões do Brasil, os moradores das grandes favelas, os que estão jogados nas vias marginais, os acampados nas beiras de estradas, os perdidos da história? Há um povo imenso precisando conhecer as coisas do mundo para, quem sabe, mudá-lo. Informações que eles não vão acessar na net. Eles precisam do mundo real. Essa é a notícia que pode fazer a diferença.
Esse é o segredo do que chamo de jornalismo libertador. Numa determinada comunidade, que vê o mundo a partir das antenas da Globo, é preciso levar a informação que interessa a ela e que não sai na TV nem no jornal. E mais, é preciso fazer a ligação daquilo que aconteceu no mundo, no país, na cidade, com o seu dia-a-dia, para que as pessoas possam enfim, compreender a notícia que apareceu no jornal da noite. . A notícia popular na rádio comunitária tem que dar conta do mundo da comunidade e interpretar o mundo a sua volta ligando-o com o seu cotidiano. A notícia popular precisa falar das promoções do boteco da esquina, do bazar de caridade promovido pela igreja, dos negócios criados na comunidade e que estão prosperando. A notícia popular precisa falar das pessoas da comunidade, desvendar seus perfis, seus trabalhos comunitários, precisa passar a agenda da Associação de Moradores, dias de reuniões, pautas de discussão, as lutas que trava com o poder público.
A tarefa do jornalismo que se pratica no meio popular/comunitário é inserir as pessoas no universo das notícias que elas ouvem e vêem, muitas vezes sem entender o real significado. É decodificar os segredos, a linguagem empolada e difícil dos jornais, revistas e até da TV. Fazer comunicação popular é falar uma linguagem “entendível”, clara, sem enrolações. É trazer para a comunidade as informações mínimas sobre o que anda acontecendo naquele espaço em que vive, e suas relações com a cidade e o mundo.
Para encerrar quero contar uma história. No antigo egito para que um morto pudesse entrar na glória de Osíris precisava passar por uma ante-sala. Nela, uma deusa lhe arrancava o coração e o colocava numa balança, na qual um dos pratos continha uma pena de ave. A condição para entrar no céu era de que o coração do morto ficasse em equilíbrio com a pena. Assim deve ser um comunicador popular. De coração leve como uma pluma, capaz de perceber que a vida humana é frágil como um cristal e que tudo o que temos de fazer é cuidar dela. Nós, comunicadores, com a palavra, com a informação vital, e principalmente com o absurdo e louco desejo de criar uma outra sociedade, de partilha e vida plena. O rádio é um canal mágico e poderoso. Nenhum homem, nenhuma mulher tem o direito de usar essa feitiçaria se não for para a realização da nossa beleza. Pensem nisso quando ligarem o transmissor.
Gostei muito do texto, bem explicativo e motivador.
ResponderExcluirSó gostaria de fazer duas observações sobre dois trechos:
“O fato de serem moradores da comunidade vai permitir que a linguagem utilizada seja acessível e familiar, provocando maior proximidade e identificação.”
Aí temos um problema. Sabemos que, pela desigualdade social existente, a linguagem utilizada nas periferias é, antes de tudo, divergente das regras do português correto. Não seria responsabilidade de um comunicador divulgar uma informação de forma clara e acessível, mas também seguindo aquilo que conhecemos com o correto? Não seria assim uma forma de promover uma “escola sem paredes”?
“A comunicação é direito humano, o jornalismo é serviço público e, assim, é bom que seja dito que só pode existir dois tipos de jornalismo.O que serve a uma minoria dominante (moral de dominação) e o que serve aos oprimidos, maioria da população (ética de libertação).”
Achei muito maniqueista este conceito. A comunicação é muito mais abrangente do que isto. Até mesmo no mundo corporativo/empresarial as pessoas começam a ganhar seu espaço como 'sujeito'. Sabemos da censura estatal e privada que existe na imprensa tradicional, mas transformar isso entre uma disputa entre 'bem' e 'mal' é exagero.
Existem aqueles que, erradamente, dizem que este jornalismo comunitário é apenas uma ferramenta de fomentar a ideologia sindical e de esquerda. Segundo eles, o 'bem' e o 'mal' é invertido.
Marcelo, quando falo em linguagem acessível não quero dizer que não seja culta e correta. É o jeito de dizer..
ResponderExcluirquanto ao segundo ponto, entendo teu ponto de vista sobre o maniqueismo... mas não é disputa entre bem e mal.. e sim dois pontos de vista radicalmente diferentes que não têm como se encontrar....
valeu pelos comentários...