Alzheimer/Velhice

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Os jovens, o mp3 e a desumanidade.

Foi assim. Eu estava ali, naquele bendito terminal do Rio Tavares, esperando já há mais de 20 minutos pelo ônibus do Castanheira. Fervia de ódio, pois ninguém gosta de fazer aquele absurdo transbordo tão perto de casa. E, assim, enfadada, observava o movimento das gentes. Então eu a vi. Lá longe, numa das plataformas, no ônibus que vai para o Campeche, uma velhinha tentava subir no coletivo. Ela fazia um tremendo esforço para alcançar o degrau e não conseguia.

Pois bem em frente a ela estava encostado um jovenzinho de uns 17 anos. Estava com um desses equipamentos de som pequeninos, o mp3, e os fones encravados nos ouvidos. Ele balançava a cabeça e cantarolava bem alto, alheio a tudo. Apesar de estar com os olhos abertos ele parecia não ver a velhinha e seu esforço quase sobre humano para subir no degrau do ônibus. Meus olhos se centraram no guri por átimo de segundo e fique a pensar: que desgrama de mundo é esse em que as pessoas não conseguem mais enxergar um ao outro. Que porcaria de planeta é esse em que os seres humanos se encaixotam dentro de seus mundos, e fecham seus ouvidos para a vida que geme ao seu redor.

O garoto seguia cantando e a fila de gente que estava por ali esperando tampouco enxergava o esforço da velhinha, o povo perdido em si mesmo, muitos também refugiados nos mp3. Estranho mundo em que a música, em vez de trazer alegria, aliena e separa. Fiquei meio bronqueada com esse lance de mp3. Bateu a vontade de sair gritando: “escuta aqui, ninguém vê essa velha tentando entrar no ônibus?”. Mas, desisti do intento.

Resignada com a falta de olhos pra ver do povo urbano, saí do meu cantinho lá atrás e vim ajudar a velhinha. Toquei o seu braço, sorri pra ela, e ajudei a entrar. Ela estava com uma trombose, falou, e a perna doía muito. Ajeitei aquele corpinho frágil no banco, ela agradeceu: “obrigada filha”. E havia um lampejo de alegria no seu olhar. Eu desci. As pessoas seguiam ali na fila, com cara de paisagem. O guri fechara os olhos e cantava alto.

Naquele triste terminal, as pessoas mofavam, perdidas de sua humanidade. Só os mp3 pareciam ter vida.

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