Alzheimer/Velhice

segunda-feira, 30 de junho de 2008

O guri

Ali estava no chão, estatelado, o menino. Nunca mais o riso, a pandorga, ou a correria na bicicleta. Foi embora cedo, 16 anos, a vida esvaída numa destas insanas guerras do tráfico. Quem o viu criança lembra bem. Correndo pelas ruas de terra do bairro, os cabelos grudados na testa por conta do suor, e aquele riso de cristal.
- O que tu queres ser quando crescer Chiquinho?
- Quero ser bonito! - E foi perseguindo esse sonho que seguiu o rumo da morte.

Ele não entendia porque os guris que ele via no centro da cidade tinham tênis bonito, roupas de grife, minúsculos e potentes MP3, celulares, e ele não. Não havia sentido naquilo. Ele era igual a todo mundo. Pedia pra mãe comprar o tênis que via na TV e ela respondia mal-humorada: “Tu não vê que não dinheiro nem pra comer?” E ele matutava, sem compreender.

Por isso não hesitou quando o Cabeça ofereceu trabalho. Tinha 11 anos e já sabia o que era bom. Queria aquela mesma vida que via na novela das oito, com direito a carro e mulheres bonitas. Ele ia chegar lá. Levar e trazer droga era o de menos se tivesse grana para viver como um rei. A escola, abandonou, não o levaria a lugar nenhum. Estudar coisas inúteis e ser discriminado por ser preto e pobre era o que lhe esperava no futuro.

Foi ficando rebelde, construindo dentro dele uma raiva surda, contra tudo o que não compreendia. Um dia, por um desses acasos da vida, conheceu alguém. Uma mulher. Ela olhou pra ele como ninguém nunca antes olhara. E lhe contava coisas que ninguém dissera. E lhe dava livros. As palavras, antes incompreensíveis, passaram a fazer sentido e ele começou a entender. Aquele seu mundo não era coisa natural, e a pobreza não era o estigma de uma raça indolente. Havia saídas coletivas. Havia esperança.

Foi quando ele quis mudar. Mas não deu tempo. Naquela noite de outono, tombou na rua, baleado por outro guri, como ele. Antes de expirar lembrou do livro que levava na bolsa e que tinha lido no final de semana. “Voltarei e serei milhões”. Assim falara Tupac Catari, ao morrer na luta por libertação. Ele talvez voltasse também. Mas não seria mais como foi. Sorriu. No dia seguinte, na TV, foi mostrado. “Mais um bandido morto”. Era o Chiquinho, só um guri que queria ser bonito.

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