Alzheimer/Velhice

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Te recordo, mãe



A mãe não era bolinho. Apesar de odiar levantar cedo, quando éramos crianças ela não se furtava a ser a primeira a saltar da cama para nos fazer o café. E não era coisa pouca não. Todas as manhãs ela nos obrigava a comer um bife com ovo, além de café com pão e polenta, o que causava sempre muita reclamação entre nós. Poxa vida, era muita coisa. Mas, por fim, mostrava-se sábia, porque com tanta comida no bucho, quando dava a hora do recreio ainda não tínhamos fome, então não se gastava com lanche. Na família temos inúmeras histórias hilárias daquelas manhãs. 

A mãe também gostava de música e suas preferências eram o mexicano Miguel Aceves Mejia, e os brasileiros Agnaldo Timóteo e Ângela Maria. No cinema, adorava o Cantinflas. Nunca soube o porquê dessa paixão pelos mexicanos, mas herdei isso dela e ainda hoje nas minhas listas de música, lá está o Miguel Mejia. Ela também adorava varar as noites vendo filmes na televisão e era apaixonada por jogos de basquete. Vai entender. Era minha parceira segura para ver filmes de vampiro. Nascida e criada nas planuras do Japejú, em Uruguaiana, ela se casou com 22 anos, sem amar o meu pai. Amava mesmo era um garoto que conhecera num trem quando tinha 15 anos. Mas, por conta de obscuras tramas protagonizadas por minha vó, esse amor não vingou. As cartas do jovem eram destruídas quando chegavam. 

E, pensando ter sido esquecida pelo garoto, ela aceitou o destino imposto pela mãe. Carregou esse amor dentro dela por toda a vida, e fez dos filhos sua razão de viver. Quando a vida exigiu, não se achicou e lutou como uma leoa para defender a família. Era nosso pilar principal. Nosso sul. A tristeza lhe consumiu e o fato de ter de sair do Rio Grande abriu feridas profundas. Não por acaso teve tuberculose, a doença da tristeza, e seu pulmão foi minguando dia após dia longe do pago que tanto amava. Tinha mania de limpeza e mesmo quando proibida pelos médicos de qualquer esforço, vez em quando era pega em cima de uma mesa, limpando os lustres ou janelas. 

Também fazia questão de plantar as próprias verduras, mantendo uma horta por toda a vida. Morreu num começo de tarde de fevereiro, deixando um bolo assado no forno. Ela me ensinou a costurar, a cozinhar, a amar as plantas, fazer crochê, tricô, pintar tecido, fazer pudim. Ela tinha orgulho de mim, por eu ter desafiado o destino e ter ido atrás do meu sonho, coisa que ela não fez. Ela dizia que eu tinha o mesmo dentinho torto do seu amado Paulo. Ela me fazia rir e sua voz docinha no telefone, depois que sai de casa, me salvou a vida muitas vezes. 

Num dia como hoje, em 1932, ela nasceu e trilhou seu caminho com simplicidade, ternura, melancolia e força. Eu a reverencio ouvindo suas músicas preferidas e agradecendo, muito e muito. Tenho certeza de que ela está sorrindo, lá na casa da beleza. Feliz aniversário, doce e querida Helena. Te amo e sinto tua falta, embora nas noites de tormento escute sempre a sua voz dizendo: tô aqui, filha.