Alzheimer/Velhice

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Brasil: já estivemos no inferno


Presidente Collor e a corrida maluca

Talvez essa nova geração não conheça, mas já estivemos no inferno. Muitas vezes. E só para lembrar dos tempos de agora podemos falar da ditadura militar. Dias duros, de mortes, torturas e desaparições. Também passamos por um longo período de “distensão”, saindo do regime dos milicos para novamente passar às mãos da boa e velha elite civil. Não foi fácil cruzar o umbral da ditadura. As lutas foram grandiosas e massivas: batalha pela anistia, batalha pelas diretas. Quantas lágrimas de frustração e ódio vivemos depois dos gigantescos comícios e atos que mobilizaram multidões, e que se esfumaçaram numa decisão de cúpula, para uma eleição indireta? Depois de tantos anos de dor, a tal democracia vinha tutelada, pelas mãos de um congresso infame. E nos tocou Tancredo Neves como presidente, um velhinho simpático, mas de passado claro sobre quem e o que defendia. Mas, o diabo ainda queria mais, e o Tancredo morreu, ou foi morrido. E quem assumiu a presidência? Nada menos do que o príncipe do Maranhão, José Sarney e nós tivemos de aguentar seus marimbondos de fogo por cinco anos inteiros.  

Com Sarney nós passamos pelo Plano Cruzado, de mudança de moeda, num contexto de inflação gigante. Ele congelou o preço das coisas e aumentou os salários em 15%. A euforia era grande entre a população, mas logo depois veio a paulada, e o Plano Cruzado II reajustou a gasolina em 60%, a luz em 120% e as demais mercadorias em mais de 100%. A inflação disparou outra vez, chegando a 1973% no final do mandato. É, dá pra crer? 1973%. Quatro dígitos. Ainda no meio desse turbilhão Sarney chamou a tão sonhada Constituinte, que acabou sendo mais um balde de água fria, pois ela não foi exclusiva como  queria a maioria. Nova derrota para o movimento social. Ainda assim a Carta que brotou do congresso acabou sendo bastante progressista, em comparação com o inferno da ditadura militar.  E foi essa aparente “vitória” que preparou o país para seu momento mais esperado: a eleição direta para presidente.  

Era o ano de 1989. Havia mobilização em todo o país. A Central Única dos Trabalhadores estava no auge, organizando os trabalhadores e o Partido dos Trabalhadores parecia amalgamar todos os desejos das gentes. Lula era o candidato e tudo indicava que o sol vermelho iria iluminar a nação. Quem viveu aqueles dias, lembra. A profusão de militantes, o avanço das bandeiras, a petezada nas ruas, fazendo bazar, distribuindo panfletos. Uma esperança se agigantava. Então, da distante Alagoas, das profundezas da casa grande e do engenho, assoma um jovenzinho que iria aparecer como o novo herói nacional: um caçador de marajás. Fernando Collor de Mello. Os marajás, é claro, eram os inimigos de sempre da elite selvagem, os funcionários públicos. Foi criada uma campanha nacional de denúncias contra os trabalhadores que eram acusados de salários altíssimos, vivendo como marajás. Globo, Veja e Isto É cavoucavam histórias de trabalhadores públicos milionários e forjavam o ódio da população contra os “privilegiados”. E havia? Sim, havia, como há até hoje. Alguns poucos, muito poucos. Mas, a já conhecida manipulação midiática agiu com todas as fichas. Não iria deixar um barbudo comunista (?) tomar o poder. Collor, empunhando a espada da justiça, virou o candidato da classe dominante e a primeira eleição direta, depois de mais de duas décadas de ditadura e um governo de transição, foi vencida pelo valente governador alagoano, que iria varrer do país a corrupção. Sim, essa história da carochinha existe faz tempo. Não é uma pauta nova.  

Naqueles dias nós como nação atravessamos mais um umbral do inferno. Com Collor na presidência veio o famoso ajuste neoliberal. O Brasil seria como o Chile, o México e outros tantos países da América Latina que estavam se livrando do “peso” de tudo o que era público. A privatização salvaria o país. E, de novo, a máquina de ideologia midiática  agiu com força. E, assim, como hoje, havia o cercadinho em Brasília onde os admiradores do novo presidente jovial e atlético, iam vê-lo correr, todas as manhãs. Era o seu ritual. Saía de manhã, sempre com uma camiseta com dizeres motivacionais, e fazia sua corrida. Atrás dele corria a imprensa babosa, e no trajeto, as pessoas gritavam e sonhavam com uma foto com o herdeiro da coroa. Quando a corrida acabava, ele abria a boca para os microfones e vociferava contra o serviço público, contra os trabalhadores, contra as empresas públicas e atacava o Congresso Nacional. Sim, esse roteiro já vivemos.  

Mas, no campo da economia, o atleta logo disse a que veio. Lançou o Plano Collor, congelando os preços outra vez. E enquanto a mídia festejava suas corridas, ele confiscou a poupança da população. Sim. A poupança. Toda a gente que tinha dinheiro guardado na poupança ficou sem ele. Não podia sacar. Não confiscou investimentos na bolsa ou em outras operações que envolviam mais dinheiro. Não. Roubou a grana dos pobres. E não satisfeito, ainda confiscou valores que estavam nas contas-correntes. Então imaginem o que foi o desespero das pessoas, no geral classe média baixa, tendo perdido todos os seus recursos. Foi um choque. Naqueles dias o Paulo Guedes era uma mulher: a ministra Zélia Cardoso de Mello. Ela justificava o confisco como necessário para equilibrar as contas. Vamos salvar o país, e que seja o povo mais pobre a pagar a conta. Óbvio. Nunca antes a população tinha pago um preço tão alto e o caçador de marajás mostrava que os marajás eram os únicos que não seriam caçados. Aqueles foram tempos tenebrosos. Gente se matou, famílias inteiras foram à bancarrota, negócios se esfumaçaram.  

No terceiro ano de governo de Collor, a própria elite dominante, cansada das ditas “loucuras” do presidente, decidiu que tinha de derrubá-lo. Assim, aproveitando o desespero da população que já se levantava em rebeldia, passou a apoiar as manifestações dos “caras pintadas”, movimento da juventude que pintava o rosto de verde e amarelo nos protestos contra Collor. Sim, nós da esquerda já usamos as cores da nossa bandeira para protestos massivos e foi bonito.  Até a rede Globo entrou na luta, mostrando as grandes manifestações e incentivando a participação. Por fim, Collor foi denunciado ao Congresso por ter usado dinheiro público para fazer um jardim na casa da mãe e o congresso, acossado pelas ruas,  decidiu pelo impeachment. Sim, não foi por 200 mil mortes, mas por conta de um jardim e de uma Elba.  

A partir daí o que se seguiu foi uma sequência de presidentes bem comportados e alinhados com os desejos da classe dominante. Fazendo tudo pelos mais ricos e tirando tudo o que podiam dos mais pobres. Passamos também por governos petistas que, apesar de terem atuado com mais eficácia na redução de danos para os mais empobrecidos, nunca avançaram numa pauta de mudanças estruturais. Pois é, temos vivido o inferno, nós, os trabalhadores, parece que desde sempre.  

Assim o que estamos passando agora, com o novo dirigente da nação, não é novidade. A história se repete, como farsa, em decibéis mais elevados. De novo as bravatas, de novo os inimigos internos, de novo o que vai nos salvar da corrupção, de novo o que (aparentemente) briga com os deputados, de novo o presidente atleta que faz flexões, corre, anda a cavalo e resfolega. De novo, a imprensa baba-ovo correndo atrás. De novo o cercadinho. De novo, um povo apático, porque tinha esperanças.  

E bueno, o certo é que a história não é um terminal de ponto final. Ela caminha sempre para frente. Nós já conhecemos bem as instâncias do inferno, nós já nos enfrentamos com o diabo centenas de vezes e ainda que a custo alto, temos vencido. O belzebu dos nossos dias já é conhecido e as veredas da resistência se perfilam. Não há mal que sempre dure. Uma greve aqui, outra ali, uma pequena manifestação acolá, a coisa vai crescendo porque é a vida material que define o rumo. A vida encontra o caminho para viver. A maioria escolhe não aceitar um governo que traz a morte. Isso a história da humanidade nos mostra, está tudo aí, nos livros. Todos os tiranos caem, os maus governos se acabam e a luta dos povos não tem fim.  

Portanto, não há que desesperar. Há que fazer o que sempre fizemos. Resistir, organizar e lutar. , como diz o poeta mineiro: “a canção sabemos de cor. Só nos resta aprender”.  

Aguarda aí, diabo da vez. Estamos em caminhada. 



segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Onde andas, jornalismo?



 Vira e mexe alguém decreta a morte do jornalismo, e aqui entenda-se jornalismo como um fazer específico que desvela a realidade dos fatos, a partir do singular, abrindo-se para o universal. O jornalismo como a análise do dia, a análise crítica dos fatos, a descrição e a interpretação da realidade, tudo junto e misturado.

Bom, se pensarmos naquilo que se pratica nos meios comerciais de massa, pode haver alguma razão. Deveras, por ali, raramente acha-se o jornalismo. Há desinformação premeditada, há mentiras, há propaganda, mas muito pouco de jornalismo. Ainda que ele sobreviva, vez ou outra assomando em meio ao lixo, pela mão de algum jornalista raiz. É raro, mas acontece.

Nas redes sociais, é como buscar agulha no palheiro. Essas são terras sem lei, nas quais as maiores barbaridades têm morada. Cada pessoa atrás do seu computador ou do seu celular é um produtor de informação. Boa parte delas totalmente inúteis para a compreensão da realidade. Uma grande parte é formada por mentiras bem elaboradas pelos grupos políticos interessados em confundir. Quanto mais informação falsa, melhor. Um meme baseado em mentira pode alcançar visualizações virais enquanto um belo texto de reportagem tem modestas curtidas. As redes, já sabemos, não são espaços de reflexão ou de busca de conhecimento. É só um algaravia festiva movida pelas curtidas sistemáticas e insanas. Tudo é engano. Publica-se um textão e em menos de um segundo já temos cinco curtidas, mostrando obviamente que a pessoa curtiu automaticamente, seja por gostar de quem postou, seja por puro hábito de tocar o sinal de positivo, visando ser simpático. É, portanto, impossível confiar nesses espaços. Ali, o jornalismo não só está morto, como bem enterrado.

Também temos de procurar muito bem o jornalismo nos meios de comunicação independentes, comunitários, populares e sindicais. Nesses espaços igualmente achamos propaganda, algum engano, mas é bem mais fácil encontrar o jornalismo. Porque não são meios acossados por empresas financiadoras. Há certa autonomia para abrir os véus da realidade, mergulhando em busca da essência dos fatos. Até porque, no mais das vezes, há um compromisso político nesse fazer. Ainda assim, por falta de recursos o jornalismo acaba ficando para trás.

Também é possível achar o jornalismo em alguns blogs de jornalistas específicos ou mesmo em algumas páginas de entidades e instituições. Porque apesar da formação cada vez mais superficial, indefectivelmente ainda aparecem jornalistas capazes da reportagem, da investigação, da apuração de qualidade, da impressão e da descrição, construindo o que chamamos de verdadeiro jornalismo, que é o que desvela e desaloja.

Para usar um exemplo bem contemporâneo podemos citar o trabalho da jornalista Schirlei Alves sobre o julgamento do estuprador de Jurerê. Quem, senão o jornalismo, se debruçaria sobre as páginas do processo buscando as letras pequenas e interpretando a realidade, como a colega fez? Ou a reportagem do Fabio Bispo sobre os respiradores inúteis comprados pelo estado de Santa Catarina que abriu as gavetas da incompetência e expôs o governador-bombeiro? Ou a reportagem sobre o mega vazamento dos dados feita pelo Intercept, contando o que ninguém quer que seja dito? São temas “complicados” que precisam ficar escondidos. Mas, fatalmente, serão os jornalistas da boa cepa aqueles capazes de cavoucar no lixo, expondo a miséria do poder. Isso mostra que o jornalismo segue vivinho da silva e segue sendo muito necessário. Agora, mais do que nunca, justamente por conta da selva fechada da desinformação que se multiplica como um monstro.

E é por entender isso claramente que me causa espécie ver o mundo sindical abrir mão do jornalismo. Justamente agora quando os movimentos estão fracos e a sociedade capturada pela mentira, seja essa viralizada nas redes ou a dos meios comerciais. Percebo que cada dia mais as entidades vão abrindo mão do trabalho sistemático do jornalista ou então usando esse profissional apenas como um produtor alucinado de conteúdo para as redes sociais. Que baita engano. Os jornalistas são seres que investigam, que fazem perguntas incômodas, que precisam de tempo para ler, pensar e elaborar os textos. Jornalista não é para ficar postando coisa no uatizapi ou no facebook. Isso pode ser função de outro trabalhador. Jornalista é para pensar a comunicação eficaz, para escrever reportagens, para tirar o véu do que se esconde.

Vejo que nesses tempos bicudos, quando a informação é coisa fugaz e - no mais das vezes  - mentirosa, quem está na frente é a direita. Sindicatos ligados à direita chegam a ter quatro jornalistas profissionais para produzir sua comunicação. Ou seja, empregam profissionais qualificados para fazer o trabalho da mentira e do engano. Já outros que se articulam à esquerda, tercerizam a comunicação ou contratam frilas acreditando que fazer um jornal mensal, burocrático e cheio de notícias velhas, pode ajudar o trabalhador a pensar sobre sua realidade. Contratar um jornalista, que atue organicamente junto a categoria, é sempre uma decisão difícil. “Ah, não temos verba para isso”. Bueno, então preparem-se para perder a batalha da comunicação.

Sempre é bom lembrar a peleia travada pelo velho compa Vitto Giannotti, que gastou sua vida nesse debate, sempre muito aplaudido, mas pouco seguido. Parece que ainda estamos lá atrás, nos anos 80, e parece que ainda precisamos de um profeta do jornalismo, ou seja, aquele faz, agora, o que tem de ser feito já e no futuro. Fica realmente inacreditável pensar que o mundo sindical ainda não se deu conta do que é esse tempo. Um tempo que precisa, mais do que nunca do jornalismo. Como trabalhadora, sinto-me abandonada e impotente. Não temos ação sindical de luta e não temos sequer uma boa briga comunicacional. Obvio que não se vence o sistema só com o jornalismo. Esse é um fazer profissional e não uma bandeira de luta. Mas tendo jornalismo nas entidades dos trabalhadores, mais chances teríamos de abrir as caixas de pandora do mundo do capital.

Nunca é demais lembrar que o grande herói do nosso tempo é um jornalista: Julian Assange, que mostrou ao mundo os crimes dos EUA e que por isso amarga prisão e tortura. É por isso que eu sigo, como o velho Diógenes com sua lanterna, tentando encontrar o jornalismo. Ondes andas, jornalismo? Apareça, e que seja do nosso lado, porque aqueles que estão vendados, precisam ver.


domingo, 31 de janeiro de 2021

Sobre os trabalhadores, a Comcap e a cidade

 


Não faz muito tempo, durante a ditadura militar, que foi até 1984, lutar por direitos dava cadeia na certa. E dando cadeia podia dar em desaparecimento, tortura e morte. Era um tempo duro e muitas das batalhas tinham de se fazer clandestinamente. Depois, com a tal da democratização lenta e gradual, as lutas puderam acontecer à luz do dia. E foram tantas, e tão imensas, e tão massivas. As greves reuniam milhares de trabalhadores e nasciam as Centrais Sindicais para organizar e impulsionar os movimentos em nível nacional. Tempo de profusão, de levantes e grandes conquistas. O medo ficara para trás e os trabalhadores diziam a sua palavra. Quem tinha medo então eram os patrões, acossados com tanta mobilização.

Depois, com a conquista de direitos, as coisas foram se acomodando, a tal ponto de o sindicalismo virar uma espécie de repartição, na qual a vida acontecia em horário comercial. As grandes greves foram rareando, as movimentações passaram a ser pontuais e o que eram batalhas passaram a ser mesas de diálogos, notas de repúdio, passeatas pacíficas, marchas festivas. Do lado de lá da luta, os patrões observavam, agora já sem medo. De certa forma tinham vencido.

Agora, atravessamos uma longa tormenta ultraliberal. Os direitos foram se perdendo, os salários baixando, os empregos desaparecendo e em meio a tudo isso o que se vê é um mundo sindical bastante domesticado e apático. Atravessamos um ano de pandemia sem que se visse qualquer ação mais efetiva por parte das grandes centrais sindicais, dos grandes partidos ditos de esquerda, e poucas foram as entidades que ousaram sair de seu conforto para exigir direitos aos trabalhadores. Sim, aconteceram lutas, aqui e ali, muito localizadas. Nem mesmo com a ação da ceifadora, colhendo vidas sem parar houve levantes. Apenas os gritos prisioneiros das redes sociais, praticamente inúteis.

Hoje, um ano depois do início da pandemia temos mais desemprego, pequenos negócios fechados, trabalhadores perdendo os poucos direitos que ainda tinham e vem aí o anúncio de mais reformas para destruir o serviço público que ainda resta. Tudo em nome do lucro de uma parcela muito pequena da população. Na desgraça, essa gente ganhou muita grana e continua ganhando. Não há misericórdia para os trabalhadores. Ninguém se importa. Que sobreviveu, sobreviveu. É o cada um por si e deus por ninguém. E o mais dramático é que essa tendência para o matadouro se expressou de maneira avassaladora nas eleições municipais, com a vitória de pessoas vinculadas às políticas de morte e de destruição.

Em Florianópolis não foi diferente. A capital catarinense sempre pendeu para o conservadorismo e nos últimos anos não fugiu do script. Foi capaz de eleger Angela Amin, por dois mandatos, Dário Berger por dois mandatos, depois César Souza, e por fim Gean Loureiro, reeleito com larga vantagem ainda em primeiro turno. O Gean que já vinha entregando a cidade para as empreiteiras, para o cimento, para o turismo predador. O Gean que assedia trabalhadoras, que usa o gabinete como motel, que maquia a cidade com asfalto ruim, que não constrói uma casa popular sequer. O Gean que trata mal os professores e os demais trabalhadores públicos. O Gean que sonha em lotear cada pequeno pedaço da cidade para grandes condomínios de luxo, tornando a nossa linda paisagem e a natureza que nos abençoou espaços de especulação, completamente vedados aos moradores menos endinheirados.

Agora, em pleno janeiro, ele enviou à Câmara de Vereadores um projeto que fatia a Comcap, autarquia municipal de limpeza. Na prática, abre portas e janelas para a privatização. Em pouco tempo algum edital amigo será anunciado e alguma empresa amiga será vencedora para cuidar do lixo da capital. E todo o saber fazer de uma vida, de gerações de trabalhadores, se perderá. Pagaremos mais por um serviço ruim. O argumento é de que a empresa dá prejuízo e os trabalhadores tem muitos privilégios. Cabe perguntar: empresa pública é para dar lucro ou para atender com qualidade a cidade? Investir numa empresa pública não é gasto, é justamente investimento em vida boa para todos. Também cabe perguntar: em que planeta trabalhadores têm privilégios? Trabalhadores são seres que vendem sua força de trabalho por muito menos do que ela vale. Qual é o privilégio que poderiam ter os trabalhadores da Comcap, esses que começam seu dia na madrugada, recolhendo lixo alheio e limpando a cidade? Uma gratificação? Um bônus? O quê?

Certamente que os garis da capital não recebem auxílio moradia, nem auxílio terno, nem verba para gasolina de seus carros particulares, muito menos passagens aéreas para visitar parentes. Não. Se têm algumas diferenças em seus contracheques são conquistas garantidas em longas e dolorosas lutas. Porque os trabalhadores não recebem nunca nada de graça. Tudo precisa ser arrancado no braço.

Pois esses mesmos homens e mulheres que durante todo esse ano de medo e pandemia estiveram nas ruas mantendo a cidade limpa, como anônimos heróis, agora são esculachados como se fossem os responsáveis pela drenagem do dinheiro público que sangra das veias abertas dos contribuintes. Alto lá, senhores e senhoras! Se querem saber quem são os vilões procurem nas pastas da Justiça, em operações da polícia federal, nas investigações de corrupção, que apontam claramente os nomes de “respeitáveis” empresários,  vereadores da cidade e até mesmo o do senhor prefeito. Nomes esses que com bons advogados se safam e seguem fazendo a sangria. Então, quando o sangue encharca as vias, eles procuram rapidamente algum bode expiatório. Por vezes são os professores, ou os eco-chatos, os trabalhadores do executivo, e agora os trabalhadores da Comcap. Essas acusações bem urdidas servem para desviar o rastro de sangue que deixam nos seus passos.

Assim, camuflados pela mídia comercial entreguista e boca-alugada, esses nobres ladrões vão espalhando as mentiras e criando uma realidade paralela. Uma realidade fantástica na qual trabalhadores são monstros cheios de privilégios. Agora, por conta de greve, legítima e justa, o prefeito tem o apoio do judiciário - sempre célere quando é para julgar a favor dos graúdos - e já deu início a um processo que pode acabar com demissão por justa causa dos “monstros privilegiados que deixam a cidade suja”. A notícia é dada na mídia como se fosse a salvação da lavoura. E a plebe rude grita “oba, oba” e “Pau no cu dos trabalhadores privilegiados”, bem ao estilo do elegante presidente da nação.

Enquanto isso, nos piquetes, nas assembleias e nas passeatas, os trabalhadores tentam passar a verdade dos fatos, sem conseguir. Não se espantem se vier a prisão de lideranças, a destruição financeira do sindicato e a demissão de alguns trabalhadores para servir como modelo à massa. Esse é o modus operandi da chamada classe dominante.  Empunham o medo e tratam de sacrificar os corpos dos trabalhadores no altar do capital. Abrem suas entranhas e dizem: olhem aí as vísceras dos privilegiados. E as gentes ao redor olham, sem nada ver, mas fingindo ver.

A verdade sobre a Comcap é uma só: esta é uma empresa pública que presta um serviço de alta qualidade, com trabalhadores qualificados que conquistaram direitos ao longo dos anos, justamente por sua qualidade e por sua capacidade de luta. O quadro da Comcap é um quadro temido pelos dirigentes, porque os trabalhadores são organizados e conscientes do seu papel. Essa é uma gente perigosa para os que dominam, e por isso precisam ter a crista abaixada. Portanto, o que vimos agora é mesma velha luta entre aqueles que sugam a energia das pessoas para enriquecer sem esforço, e os que vendem sua força de trabalho por não terem como seus, os meios de produção. A luta de classe. Isso não é uma ciranda. É peleia dura e tem consequências. Ora a gente perde, ora a gente ganha.

Os trabalhadores esperam que a prefeitura apresente uma proposta nessa segunda-feira. Talvez essa proposta não venha e venham as demissões. Talvez a batalha seja perdida e a Comcap seja privatizada. Se isso acontecer os trabalhadores, com muita dor encontrarão novos caminhos. Mas, a cidade, essa não. Essa perde para sempre e com ela, todos nós.

Por isso que conhecer a verdade é importante. Para que a cidade possa se juntar à essa luta e não permitir a destruição da Comcap. O serviço público, com todas as suas mazelas, ainda é o que temos de melhor e é o que garante que tanto o milionário da beira-mar, quanto o morador da comunidade empobrecida que fica lá onde o judas perdeu as botas, tenham seu lixo recolhido. Pensem nisso antes de acreditar na histeria borra-botas dos colunistas da televisão e das redes sociais.

A verdade está lá fora. A verdade está na assembleia dos trabalhadores, no sindicato, na boleia e na traseira do caminhão do lixo.

Todo apoio aos trabalhadores e trabalhadoras da Comcap. A luta é sempre vitória. É justamente nessa hora que nos transformamos no corpo necessário, o corpo da classe trabalhadora, que é nossa mais legítima morada. A caminhada desse domingo reuniu mais de cinco mil pessoas. Assim, unidos, vencemos.